sábado, 6 de setembro de 2025

Um olhar sobre Lucas 14,25-33 - 23º Domingo do Tempo Comum .

A liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum é a seguinte: Sabedoria 9,13-18; Salmo 89(90),3-4.5-6.12-13.14.17 (R. 1); Filémon 9b-10.12-17 e Lucas 14,25-33. Estas leituras, presentes na sequência dominical do Tempo Comum, propõem-nos um itinerário espiritual que atravessa a sabedoria, o amor prático e a exigência do discipulado radical. A cada ano, este conjunto de textos é lido para que a comunidade cristã se confronte com a coerência da fé, o compromisso com o Reino e o valor da renúncia consciente. É um convite a refletir sobre o preço do seguimento de Cristo, a reconhecer as armadilhas do conforto, do egoísmo e da superficialidade, e a discernir com clareza entre os valores efêmeros do mundo e a primazia do Reino.
O  23º Domingo do Tempo Comum coloca-nos diante de um itinerário que atravessa a sabedoria como dom de Deus, a concretude do amor que se traduz em relações transformadas e a radicalidade do discipulado exigido por Jesus. Não é um conjunto de textos isolados, mas um mosaico espiritual que, a cada ano, a Igreja propõe para que a comunidade cristã se confronte com a coerência de sua fé. Esta liturgia é proclamada dentro da caminhada contínua do Tempo Comum, quando os evangelhos sinóticos — neste ciclo, Lucas — nos apresentam os ensinamentos de Cristo no caminho para Jerusalém, onde a entrega total da cruz se revelará como ápice da fidelidade ao Reino. A memória das leituras neste domingo reaparece também em contextos litúrgicos onde se sublinha a sabedoria como guia de discernimento (como nas celebrações do Espírito Santo), a fraternidade como critério de comunidade (nas memórias de santos pastores e missionários), e a renúncia como sinal de santidade (em festas de mártires e testemunhas radicais da fé).
O livro da Sabedoria (9,13-18), leitura inaugural, coloca-nos diante de uma confissão de limite humano. Quem poderá compreender os desígnios de Deus? A sabedoria bíblica não é apenas cálculo ou prudência pragmática; é dom divino, luz que desce do alto e conduz a humanidade para além do imediato. Salomão, aqui evocado, não pede riquezas, vitórias ou fama, mas pede sabedoria, consciência de que governar e viver sem discernimento é condenar-se à ruína. É significativo que este texto seja proclamado no início da liturgia: recorda que ninguém pode medir o custo do discipulado sem antes pedir a Deus a luz para ver além das aparências. A sabedoria que vem de Deus questiona a lógica do sucesso e da glória humanas, tão difundidas em nossos dias pelo consumismo e pelas redes sociais, e orienta para a justiça, a verdade e o bem. A psicologia reconhece, neste horizonte, o valor da autorreflexão, a maturidade de discernir motivações autênticas e libertar-se das pressões do meio social; a filosofia prática sublinha que apenas uma vida examinada pode ser verdadeiramente humana, como já dizia Sócrates. A antropologia lembra que toda cultura tende a criar símbolos de poder, prestígio e status, mas a sabedoria de Deus rompe tais construções para abrir espaço ao Reino.

A segunda leitura (Flm 9b-10.12-17) apresenta-nos uma carta curta, mas de enorme densidade, em que Paulo, já idoso e prisioneiro, intercede em favor de Onésimo. O apóstolo pede a Filémon que o acolha não mais como escravo, mas como irmão em Cristo. Esta leitura recorda que o amor cristão não é abstrato, mas encarnado em relações sociais concretas. O cristianismo não começou com tratados sobre dignidade humana, mas com gestos que subverteram estruturas: o escravo se torna irmão, o estrangeiro se torna próximo, o inimigo se torna objeto de oração. Num mundo romano estruturado na escravidão como base da economia, tal gesto era uma revolução silenciosa, mas profunda. A sociologia reconhece aqui a força de uma ética relacional que transforma a sociedade a partir de dentro, sem imposição de violência, mas pela mudança do coração. A antropologia vê no acolhimento de Onésimo a superação de fronteiras identitárias que classificavam seres humanos entre superiores e inferiores. A psicologia social destaca o poder libertador de ser reconhecido como sujeito e não como objeto. A teologia, em sua dimensão mais profunda, vê neste gesto um reflexo do próprio Cristo, que não nos chamou servos, mas amigos (Jo 15,15). A patrística, em Santo Inácio de Antioquia e em São João Crisóstomo, lembra que a comunidade cristã primitiva não poderia conviver com a desigualdade sem ser questionada em sua essência. E o Magistério da Igreja, em Fratelli Tutti (n. 22-24), reafirma que fraternidade é critério inegociável da fé, denunciando toda forma de exclusão e discriminação.

O Evangelho de Lucas (14,25-33) nos coloca diante da exigência radical do seguimento de Jesus. O cenário é o caminho: grandes multidões acompanham Jesus, mas ele não suaviza seu discurso para agradar ouvintes. Pelo contrário, coloca a exigência máxima: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. O verbo “odiar” aqui, como sabemos pela exegese e pela hermenêutica semítica, não indica aversão, mas prioridade. O discípulo é chamado a colocar Cristo acima de qualquer vínculo, até mesmo os mais sagrados na cultura judaica. Mateus interpreta a mesma exigência de forma explícita: “Quem ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37). Marcos ecoa este chamado à renúncia em Mc 8,34-38: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Estes paralelos sinóticos reforçam que não se trata de um dito isolado, mas de uma exigência central do discipulado.

A radicalidade do texto choca porque questiona nossas seguranças mais íntimas. A psicologia nos ajuda a compreender que todo processo de maturidade exige a capacidade de diferenciar-se de vínculos de dependência; a fé não destrói os laços afetivos, mas os ressignifica, libertando-os da idolatria. A sociologia mostra que, no contexto da Palestina do século I, a família era centro da identidade, da economia e da religião; colocar o Reino acima dela era desafiar a própria estrutura social. A antropologia percebe aqui a inversão de valores que define o cristianismo primitivo: mais importante que a linhagem de sangue é a fraternidade no Espírito. A filosofia questiona, neste texto, a vida conformista, a busca de prazer imediato ou de segurança familiar e material como finalidade última; convida a um horizonte maior, de bem e de justiça universais. A teologia reconhece que se trata de um chamado a viver a mesma obediência de Jesus ao Pai, até a entrega total.

As parábolas da torre e do rei (Lc 14,28-32) ilustram que o seguimento de Jesus não é emoção passageira, mas decisão refletida. Construir sem calcular é arriscar-se ao ridículo; entrar em guerra sem prever forças é condenar-se à derrota. O discipulado não pode ser vivido no improviso nem na superficialidade. Historicamente, Lucas escreve a comunidades perseguidas, que precisavam avaliar seriamente se estavam dispostas a enfrentar rejeição, pobreza, hostilidade familiar e até morte por causa da fé. A hermenêutica nos leva a perceber que Jesus não quer fãs superficiais, mas discípulos conscientes. A patrística, em Santo Agostinho, lembra que “o amor que não chega até a cruz não é verdadeiro amor”.

Neste horizonte, torna-se necessário confrontar as distorções de fé que hoje se infiltram na vida cristã. A teologia da prosperidade transforma o Evangelho em negócio, reduzindo o seguimento de Jesus a uma barganha de bênçãos e riquezas. A teologia do domínio distorce a missão da Igreja em instrumento de poder político e ideológico, contrária à lógica do serviço e da cruz. O individualismo esvazia a dimensão comunitária e solidária da fé, reduzindo-a a experiência subjetiva sem compromisso com os outros. A fé como mercadoria aparece no culto-show, nas plataformas digitais de pregadores que buscam aplausos e likes, mais interessados em fama do que em coerência com o Evangelho. O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Magistério — especialmente pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium (n. 102) —, reduz a missão da Igreja à lógica da casta clerical, esquecendo que todo poder na Igreja só tem sentido no serviço humilde.

O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n. 22, 63-66), recorda que a dignidade da pessoa humana, a justiça social e a fraternidade não são opcionais, mas núcleo da fé cristã. A Evangelii Gaudium (n. 78-79) insiste que a opção pelo Evangelho não pode ser reduzida à busca de conforto, mas exige compromisso com os pobres, com a justiça e com a missão. A Fratelli Tutti (n. 215) denuncia a indiferença e o fechamento em guetos e convida a uma amizade social que ultrapassa fronteiras. A patrística, em São João Crisóstomo, recorda que “não compartilhar com os pobres os próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida”.

A cruz, no evangelho deste domingo, não é um acidente a ser suportado, mas critério do discípulo autêntico. Carregar a cruz é assumir, conscientemente, que o caminho de Jesus passa pela renúncia de si mesmo, pela superação do ego, pela entrega generosa. Psicologicamente, trata-se de autotranscendência: sair do narcisismo e abrir-se ao outro. Sociologicamente, significa subverter estruturas injustas por meio do serviço e da partilha. Antropologicamente, revela que a plenitude humana não está em acumular, mas em doar-se. Filosoficamente, questiona o hedonismo e o utilitarismo que dominam o mundo. Teologicamente, é a participação no mistério pascal de Cristo, onde vida e morte se encontram e a ressurreição se anuncia.

O discípulo autêntico não é aquele que busca aplausos, nem o que se conforma com o sistema, mas aquele que, iluminado pela sabedoria, transformado pelo amor e fortalecido pelo Espírito, vive coerentemente sua fé, mesmo diante de perseguições e contradições. É profeta que denuncia a corrupção da fé pelo dinheiro, pelo poder e pela vaidade; é testemunha que constrói comunidades de fraternidade e justiça.

A liturgia deste domingo, portanto, não nos apresenta um caminho fácil, mas um caminho de clareza. A sabedoria da primeira leitura nos dá a capacidade de discernir o que é efêmero e o que é eterno; a carta a Filémon nos recorda que o amor transforma estruturas sociais; o evangelho de Lucas nos desafia à radicalidade do seguimento. O preço do discipulado é real, mas a recompensa é vida em plenitude, já aqui, na construção do Reino.

Seguir Jesus é tomar decisões conscientes, é calcular não no sentido de cálculo egoísta, mas de responsabilidade madura. É renunciar não para perder, mas para ganhar liberdade. É deixar-se conduzir não pelo conforto do mundo, mas pela sabedoria que vem de Deus. É amar não de forma superficial, mas de forma concreta, transformando relações e estruturas. É carregar a cruz não como fardo, mas como caminho de vida.

Neste horizonte, o chamado de Jesus permanece atual e profético: quem não renunciar a tudo não pode ser seu discípulo. Esta palavra não é ameaça, mas convite à liberdade verdadeira. A fé não é mercadoria, não é espetáculo, não é instrumento de poder. É caminho de amor, de justiça, de fraternidade. O discípulo que aceita este chamado não se deixa seduzir por aparências, mas caminha com coragem, discernimento e fé consciente, construindo aqui e agora sinais do Reino que não passa.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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