A segunda leitura (Flm 9b-10.12-17) apresenta-nos uma carta curta, mas de enorme densidade, em que Paulo, já idoso e prisioneiro, intercede em favor de Onésimo. O apóstolo pede a Filémon que o acolha não mais como escravo, mas como irmão em Cristo. Esta leitura recorda que o amor cristão não é abstrato, mas encarnado em relações sociais concretas. O cristianismo não começou com tratados sobre dignidade humana, mas com gestos que subverteram estruturas: o escravo se torna irmão, o estrangeiro se torna próximo, o inimigo se torna objeto de oração. Num mundo romano estruturado na escravidão como base da economia, tal gesto era uma revolução silenciosa, mas profunda. A sociologia reconhece aqui a força de uma ética relacional que transforma a sociedade a partir de dentro, sem imposição de violência, mas pela mudança do coração. A antropologia vê no acolhimento de Onésimo a superação de fronteiras identitárias que classificavam seres humanos entre superiores e inferiores. A psicologia social destaca o poder libertador de ser reconhecido como sujeito e não como objeto. A teologia, em sua dimensão mais profunda, vê neste gesto um reflexo do próprio Cristo, que não nos chamou servos, mas amigos (Jo 15,15). A patrística, em Santo Inácio de Antioquia e em São João Crisóstomo, lembra que a comunidade cristã primitiva não poderia conviver com a desigualdade sem ser questionada em sua essência. E o Magistério da Igreja, em Fratelli Tutti (n. 22-24), reafirma que fraternidade é critério inegociável da fé, denunciando toda forma de exclusão e discriminação.
O Evangelho de Lucas (14,25-33) nos coloca diante da exigência radical do seguimento de Jesus. O cenário é o caminho: grandes multidões acompanham Jesus, mas ele não suaviza seu discurso para agradar ouvintes. Pelo contrário, coloca a exigência máxima: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo”. O verbo “odiar” aqui, como sabemos pela exegese e pela hermenêutica semítica, não indica aversão, mas prioridade. O discípulo é chamado a colocar Cristo acima de qualquer vínculo, até mesmo os mais sagrados na cultura judaica. Mateus interpreta a mesma exigência de forma explícita: “Quem ama pai ou mãe mais do que a mim não é digno de mim” (Mt 10,37). Marcos ecoa este chamado à renúncia em Mc 8,34-38: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Estes paralelos sinóticos reforçam que não se trata de um dito isolado, mas de uma exigência central do discipulado.
A radicalidade do texto choca porque questiona nossas seguranças mais íntimas. A psicologia nos ajuda a compreender que todo processo de maturidade exige a capacidade de diferenciar-se de vínculos de dependência; a fé não destrói os laços afetivos, mas os ressignifica, libertando-os da idolatria. A sociologia mostra que, no contexto da Palestina do século I, a família era centro da identidade, da economia e da religião; colocar o Reino acima dela era desafiar a própria estrutura social. A antropologia percebe aqui a inversão de valores que define o cristianismo primitivo: mais importante que a linhagem de sangue é a fraternidade no Espírito. A filosofia questiona, neste texto, a vida conformista, a busca de prazer imediato ou de segurança familiar e material como finalidade última; convida a um horizonte maior, de bem e de justiça universais. A teologia reconhece que se trata de um chamado a viver a mesma obediência de Jesus ao Pai, até a entrega total.
As parábolas da torre e do rei (Lc 14,28-32) ilustram que o seguimento de Jesus não é emoção passageira, mas decisão refletida. Construir sem calcular é arriscar-se ao ridículo; entrar em guerra sem prever forças é condenar-se à derrota. O discipulado não pode ser vivido no improviso nem na superficialidade. Historicamente, Lucas escreve a comunidades perseguidas, que precisavam avaliar seriamente se estavam dispostas a enfrentar rejeição, pobreza, hostilidade familiar e até morte por causa da fé. A hermenêutica nos leva a perceber que Jesus não quer fãs superficiais, mas discípulos conscientes. A patrística, em Santo Agostinho, lembra que “o amor que não chega até a cruz não é verdadeiro amor”.
Neste horizonte, torna-se necessário confrontar as distorções de fé que hoje se infiltram na vida cristã. A teologia da prosperidade transforma o Evangelho em negócio, reduzindo o seguimento de Jesus a uma barganha de bênçãos e riquezas. A teologia do domínio distorce a missão da Igreja em instrumento de poder político e ideológico, contrária à lógica do serviço e da cruz. O individualismo esvazia a dimensão comunitária e solidária da fé, reduzindo-a a experiência subjetiva sem compromisso com os outros. A fé como mercadoria aparece no culto-show, nas plataformas digitais de pregadores que buscam aplausos e likes, mais interessados em fama do que em coerência com o Evangelho. O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Magistério — especialmente pelo Papa Francisco na Evangelii Gaudium (n. 102) —, reduz a missão da Igreja à lógica da casta clerical, esquecendo que todo poder na Igreja só tem sentido no serviço humilde.
O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n. 22, 63-66), recorda que a dignidade da pessoa humana, a justiça social e a fraternidade não são opcionais, mas núcleo da fé cristã. A Evangelii Gaudium (n. 78-79) insiste que a opção pelo Evangelho não pode ser reduzida à busca de conforto, mas exige compromisso com os pobres, com a justiça e com a missão. A Fratelli Tutti (n. 215) denuncia a indiferença e o fechamento em guetos e convida a uma amizade social que ultrapassa fronteiras. A patrística, em São João Crisóstomo, recorda que “não compartilhar com os pobres os próprios bens é roubá-los e tirar-lhes a vida”.
A cruz, no evangelho deste domingo, não é um acidente a ser suportado, mas critério do discípulo autêntico. Carregar a cruz é assumir, conscientemente, que o caminho de Jesus passa pela renúncia de si mesmo, pela superação do ego, pela entrega generosa. Psicologicamente, trata-se de autotranscendência: sair do narcisismo e abrir-se ao outro. Sociologicamente, significa subverter estruturas injustas por meio do serviço e da partilha. Antropologicamente, revela que a plenitude humana não está em acumular, mas em doar-se. Filosoficamente, questiona o hedonismo e o utilitarismo que dominam o mundo. Teologicamente, é a participação no mistério pascal de Cristo, onde vida e morte se encontram e a ressurreição se anuncia.
O discípulo autêntico não é aquele que busca aplausos, nem o que se conforma com o sistema, mas aquele que, iluminado pela sabedoria, transformado pelo amor e fortalecido pelo Espírito, vive coerentemente sua fé, mesmo diante de perseguições e contradições. É profeta que denuncia a corrupção da fé pelo dinheiro, pelo poder e pela vaidade; é testemunha que constrói comunidades de fraternidade e justiça.
A liturgia deste domingo, portanto, não nos apresenta um caminho fácil, mas um caminho de clareza. A sabedoria da primeira leitura nos dá a capacidade de discernir o que é efêmero e o que é eterno; a carta a Filémon nos recorda que o amor transforma estruturas sociais; o evangelho de Lucas nos desafia à radicalidade do seguimento. O preço do discipulado é real, mas a recompensa é vida em plenitude, já aqui, na construção do Reino.
Seguir Jesus é tomar decisões conscientes, é calcular não no sentido de cálculo egoísta, mas de responsabilidade madura. É renunciar não para perder, mas para ganhar liberdade. É deixar-se conduzir não pelo conforto do mundo, mas pela sabedoria que vem de Deus. É amar não de forma superficial, mas de forma concreta, transformando relações e estruturas. É carregar a cruz não como fardo, mas como caminho de vida.
Neste horizonte, o chamado de Jesus permanece atual e profético: quem não renunciar a tudo não pode ser seu discípulo. Esta palavra não é ameaça, mas convite à liberdade verdadeira. A fé não é mercadoria, não é espetáculo, não é instrumento de poder. É caminho de amor, de justiça, de fraternidade. O discípulo que aceita este chamado não se deixa seduzir por aparências, mas caminha com coragem, discernimento e fé consciente, construindo aqui e agora sinais do Reino que não passa.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.