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domingo, 14 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre 19, 25-27, Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores.

A contemplação da dor de Maria ao pé da cruz é celebrada na Memória da Bem-aventurada Virgem Maria das Dores, instituída liturgicamente para honrar a coragem e a fidelidade da Mãe de Jesus diante do sofrimento. Esta memória remonta à tradição devocional consolidada nos séculos XVII e XVIII, especialmente com a prática do culto das Sete Dores de Maria, que sublinha sua participação ativa e profética na história da salvação. Oficialmente, a Igreja celebra esta memória em 15 de setembro, proporcionando aos fiéis a oportunidade de refletir sobre a profundidade da dor materna unida à obediência e à fidelidade à vontade divina.

O texto de João 19,25-27 é proclamado em diversas celebrações litúrgicas, principalmente durante a Sexta-feira Santa, na Liturgia da Paixão, e em memórias marianas específicas, permitindo contemplar a fidelidade silenciosa de Maria e o cuidado fraterno que ela inspira no novo povo de Deus.

Maria, mãe de Jesus, representa o povo da antiga aliança que se manteve fiel às promessas divinas, aguardando o Messias com esperança ativa. Sua fidelidade ecoa figuras do Antigo Testamento: Ana orava ao Senhor com lágrimas, confiando na promessa que transcende a esterilidade e o sofrimento humano; Raquel chorava seus filhos buscando consolação divina; Miriã conduzia o povo com coragem no deserto, lembrando que Deus caminha com o seu povo; Jeremias clamava ao Senhor no meio da dor, enquanto Sofonias anunciava a restauração que viria mesmo na humilhação do povo. Isaías descreve o Servo sofredor, ferido por nossas transgressões, enquanto Gênesis 3,15 anuncia a descendência da mulher que derrotaria o mal, prefigurando Maria como nova Eva. Jeremias 31,15 ecoa o lamento materno, e os Salmos, em toda a sua riqueza, registram o sofrimento e a esperança: Salmo 22 descreve a angústia do justo, antecipando a cruz; Salmo 34 lembra que muitas são as aflições do justo, mas o Senhor o livra; Salmo 126 celebra a restauração e o retorno da esperança; Salmo 31 reforça a confiança em meio à perseguição; Salmo 73 evidencia que a fidelidade se revela apesar da prosperidade dos ímpios; e Salmo 130 recorda que o Senhor ouve o clamor do justo, transformando a dor em libertação. Lamentações 1 e 3 apresentam o remanescente fiel que persiste na esperança. Miquéias 5,2 aponta Belém como cidade do Salvador, e Habacuque 3,17-19 reforça a confiança no Senhor mesmo diante da escassez e do sofrimento. Isaías 7,14 e 9,5-6 anunciam a vinda do Emanuel, e o livro de Sabedoria destaca que Deus protege os humildes e transforma a dor em justiça. Eclesiastes lembra que há tempo para cada coisa, incluindo sofrimento e consolo, e que o temor do Senhor é princípio de toda sabedoria.

O discípulo amado representa o novo povo de Deus, formado não por laços de sangue, mas pela adesão consciente a Cristo. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, cumprindo a unidade descrita em Gálatas 3,28: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; todos são um em Cristo Jesus.” João revela que a fidelidade à promessa se realiza na comunhão e no cuidado mútuo, ligando passado e futuro, sofrimento e esperança, antigo e novo povo de Deus.

Nos sinóticos, Mateus 27,55 registra mulheres “de longe, observando”, Lucas 23,49 afirma que “permaneciam ali, observando”, e Marcos 15,40 lembra que eram aquelas que acompanharam Jesus desde a Galileia. Essas mulheres silenciosas e constantes revelam que a fidelidade não se mede pela visibilidade ou pelo protagonismo, mas pelo compromisso, pelo cuidado e pela presença persistente.

A experiência humana, integrando sofrimento e ação. Maria demonstra que a fidelidade é presença ativa, que não se limita ao lamento, mas que se manifesta na permanência e no cuidado. A sociologia e a antropologia destacam que, em contextos patriarcais, sua presença representa resistência cultural: Maria ocupa o espaço do cuidado, da memória e da transmissão da promessa, mostrando que o sofrimento vivido em comunhão gera solidariedade, justiça e transformação social.

O gesto de Jesus ao entregar sua mãe ao discípulo amado revela uma ética relacional profunda: a verdade do ser humano se manifesta na responsabilidade pelo outro. Esta é uma crítica direta às teologias da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé como mercadoria, que reduzem a experiência religiosa a lucro, status ou poder. Maria e o discípulo amado lembram que a fidelidade exige abertura, cuidado e compromisso, não espetáculo ou exibição de poder.

Santo Irineu observa que Cristo “recaptura a humanidade inteira”, e a união com Ele transforma toda a criação, mostrando que a fidelidade de Maria é ato de restituição e reconciliação universal. Orígenes enfatiza que Maria, junto à cruz, revela a profundidade do amor divino e a potência da obediência que gera vida. São João Crisóstomo destaca que o discípulo amado assume responsabilidade e comunhão, evidenciando que a salvação não é individual, mas relacional. Santo Ambrósio identifica Maria como figura do novo Éden, onde o sofrimento se transforma em esperança e a fidelidade em testemunho da promessa. Tertuliano ressalta a dimensão ética do cuidado mútuo, indicando que Maria e o discípulo amado antecipam a missão da Igreja como corpo unido e solidário. 

Historicamente, a presença de Maria ao pé da cruz revela a centralidade das mulheres na preservação da memória e da tradição, subvertendo estruturas de poder que tentam silenciá-las. Sua fidelidade silenciosa confronta diretamente as teologias que prometem riqueza, dominação ou prestígio em vez de vida, solidariedade e amor ao próximo. Os documentos da Igreja reforçam a dimensão comunitária e profética: Lumen Gentium descreve Maria como modelo de fé, esperança e caridade; Redemptoris Mater destaca que ela se une ao sofrimento de Cristo, tornando-se mãe de todos, convocando à solidariedade; o Papa Francisco enfatiza que a Igreja cresce no serviço humilde, alertando contra o clericalismo que transforma a fé em status ou exclusão. O Antigo Testamento amplia a meditação: além dos Salmos e Isaías, os profetas menores como Naum, Sofonias, Amós, Habacuque, Oséias e Joel denunciam injustiças e lembram que Deus protege os humildes e remanescentes fiéis. Jeremias 31,31-34 revela a nova aliança que se cumpre em Cristo; Ezequiel 36 anuncia a purificação e renovação do coração. Provérbios, Eclesiastes e Sabedoria enfatizam discernimento, paciência e temor do Senhor. No Novo Testamento, Lucas 2,34-35 anuncia a espada que traspassará a alma de Maria; Mateus 2,13-18 lembra a fuga para o Egito e o massacre dos inocentes; Atos 1,14 registra Maria com os discípulos em oração após a Ascensão; Romanos 8,35-39 afirma que nada separa os fiéis do amor de Deus; 1Coríntios 12,12-27 reforça a imagem do corpo unido, no qual Maria e o discípulo amado simbolizam cuidado e unidade; Hebreus 12,1-2 lembra de perseverar na fé olhando para Jesus; Apocalipse 12 apresenta a mulher vestida de sol, símbolo de Maria, acompanhando o drama da história da salvação; Filipenses 2,5-11 revela a união de obediência e humildade que Maria encarna; Colossenses 1,24-27 mostra a Igreja como corpo de Cristo, onde cada sofrimento é redentor e comunitário. O Apocalipse projeta a dimensão escatológica: “Eis que a tenda de Deus está com os homens” (Ap 21,3). Maria simboliza essa tenda que acolhe a humanidade em sofrimento, antecipando a comunhão plena com Deus. Sua fidelidade transforma a dor em esperança, a morte em vida, preparando a consumação do plano divino.

Refletindo sobre João 19,25-27, percebemos que a Boa Nova de Jesus Cristo não se realiza na exibição, no lucro, na dominação ou na fé individualista. Ela se manifesta na fidelidade concreta, na presença junto aos crucificados da história, no cuidado pelo outro e na comunhão que transcende gerações. Maria das Dores permanece como sinal de esperança e resistência, e o discípulo amado como modelo de responsabilidade compartilhada, lembrando-nos que a verdadeira herança da promessa não se mede em riquezas, poder ou reconhecimento, mas na capacidade de permanecer, sofrer e amar com fidelidade.

A união entre antigo e novo povo, entre sofrimento e promessa, entre mãe e filho, revela que a história da salvação é contínua e relacional: os fiéis de ontem e de hoje se encontram na cruz e são chamados a viver a fidelidade não como ritual vazio, mas como prática transformadora da vida. Somos convidados a olhar para nossas próprias cruzes, para os sofrimentos alheios, e reconhecer que cada gesto de cuidado, cada permanência no sofrimento e cada ato de solidariedade é uma participação na missão de Cristo.

O texto de João 19,25-27 situa-se no momento culminante da paixão de Cristo, no Calvário, quando o Filho é pregado à cruz e a morte se aproxima. João apresenta a cena com um cuidado minucioso, diferente dos sinóticos: ele enfatiza a presença das mulheres e a relação entre Jesus, sua mãe e o discípulo amado, revelando camadas teológicas profundas. O evangelista descreve: “Junto da cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena.”

Este detalhe já revela múltiplas dimensões. Primeiro, Maria não está sozinha; ela está cercada por mulheres que representam a continuidade do antigo povo, a memória das promessas e a fidelidade que não se abate diante da dor. A menção das demais mulheres indica a dimensão comunitária do sofrimento, mostrando que a cruz não é uma experiência individual, mas compartilhada. A presença de Maria Madalena, aquela que seguiu Jesus desde o início de seu ministério, simboliza os discípulos que permanecem mesmo quando tudo parece perdido, ecoando a perseverança de figuras do Antigo Testamento que mantiveram esperança diante da adversidade, como Ana, Débora e Abigail.

Em seguida, João destaca o gesto de Jesus: “Vendo sua mãe e perto dela o discípulo a quem amava, disse à mãe: Mulher, eis aí teu filho. Depois disse ao discípulo: Eis aí tua mãe.” Esta simples declaração contém uma densidade teológica impressionante. Jesus, no momento da própria morte, organiza relações humanas, transfere responsabilidades e cria vínculos que ultrapassam os laços biológicos. Ele entrega sua mãe à proteção do discípulo amado e, ao mesmo tempo, confere a todos os seguidores de Cristo a responsabilidade de acolher Maria como mãe, indicando que a comunidade de fé nasce da comunhão e do cuidado mútuo.

O termo “mulher”, usado por Jesus, é carregado de significado. Não é uma forma distante, mas uma expressão de respeito profundo, que a reconhece como figura de fé e testemunho. Ao chamá-la “mulher”, Jesus remete à linguagem simbólica da Escritura: a mulher é figura do povo de Deus, do remanescente fiel, da nova Eva que participa ativamente na obra de salvação, cumprindo a promessa de Gênesis 3,15.

O discípulo amado, por sua vez, representa todos os que aderem a Cristo em liberdade e fé. Ao receber Maria como mãe, ele incorpora o antigo povo na nova aliança, tornando-se mediador da continuidade entre promessa e cumprimento, entre Antigo e Novo Testamento. Este gesto profético antecipa a missão da Igreja: cuidar, proteger, educar na fé, viver a comunhão.

João descreve a cena com economia de palavras, mas cada elemento é simbólico. A posição junto à cruz indica proximidade e fidelidade. A ordem das palavras mostra intencionalidade: primeiro Maria, depois o discípulo. A dor de Maria é central, mas não é descrita em termos de sofrimento passivo; ela é ativa na contemplação, na fidelidade e na entrega à vontade de Deus. Este foco revela o papel de Maria como mediadora e modelo de adesão ao plano divino, cumprindo a função do remanescente fiel do Antigo Testamento, que manteve esperança e obediência em meio às adversidades. O evangelista não menciona dor física, mas a dor espiritual e emocional é implícita e profunda. A espada que atravessa a alma de Maria, anunciada em Lucas 2,35, se cumpre aqui: cada gesto de Jesus a toca, cada palavra exige dela fidelidade ativa. Maria permanece firme, testemunhando que a fé não é fantasia ou conforto, mas compromisso que se mantém mesmo diante da morte.

A cena de João 19,25-27 também serve como crítica implícita a qualquer compreensão distorcida da fé. Ela denuncia a fé como mercadoria, a religião como poder ou espetáculo, o individualismo que ignora o sofrimento do outro. Jesus, ao criar vínculos de cuidado, subverte as lógicas de dominação e prosperidade, indicando que a verdadeira salvação se manifesta na presença, na solidariedade e na comunhão.

O texto revela ainda um profundo aspecto antropológico e psicológico: Maria representa a capacidade humana de permanecer junto ao sofrimento sem ceder à desesperança; o discípulo amado mostra a dimensão relacional da vida humana, na qual cada um é responsável pelo outro. Historicamente, a narrativa evidencia o papel das mulheres como guardiãs da memória, mantenedoras da fé e sustentáculo da comunidade, desafiando estruturas patriarcais que tentam silenciá-las.

Assim, João 19,25-27 não é apenas relato histórico: é catequese teológica e ética, modelo de espiritualidade, referência comunitária e convite à ação. Cada palavra, cada gesto, cada presença ilumina a relação entre sofrimento, promessa, fidelidade e cuidado, convidando o leitor a assumir seu papel no corpo de Cristo, mantendo a esperança, a solidariedade e a fidelidade ao plano divino.

A contemplação de Maria ao pé da cruz nos desafia: não é suficiente professar fé ou repetir palavras; é preciso viver, sofrer, amar e permanecer. É preciso transformar o lamento em esperança, a dor em ação e a fidelidade em testemunho. João 19,25-27 nos lembra que a Boa Nova de Jesus se realiza na presença ativa, na responsabilidade compartilhada e na continuidade da promessa de Deus, revelando o caminho de uma fé orgânica, profética, comunitária e verdadeiramente libertadora, que não se limita ao sagrado, mas se derrama no mundo, tocando a vida dos mais vulneráveis, reconstruindo comunidades e restaurando corações.

DNonato - Teólogo do Cotidiano