O coração humano é esse campo de batalha constante entre o desejo e a consciência, entre o que sentimos e o que julgamos sentir. Sentir prazer ou alegria é essencial para que nos sintamos integrados à realidade concreta da vida. Contudo, somos nós os responsáveis pelas nossas escolhas — certas ou erradas. Ainda assim, é comum atribuirmos os caminhos que trilhamos aos caprichos do Divino ou do destino. No entanto, é crucial lembrar: somos nós que moldamos o amanhã, que construímos nossa história e que realizamos aquilo que está ao nosso alcance.
Frequentemente, olhamos para os acontecimentos e responsabilizamos os outros — ou as circunstâncias da vida — pelas dores que experimentamos, quando, na verdade, cada situação emerge das decisões que tomamos. Ao revisitarmos nossa própria trajetória, encontramos sonhos, aventuras e o desejo legítimo de sermos felizes com o que temos e com o que somos. Apesar disso, persistimos em culpar o outro. Afirmamos que este ou aquele compreende melhor o que se passa em nosso íntimo, como se o que sentimos pudesse ser mensurado ou corrigido por alguém externo.
Poucas coisas nos desestabilizam tanto quanto a tentativa alheia de nos ensinar a sentir o que já sentimos — mesmo involuntariamente — ou quando vivenciamos a emoção de um sentimento que, teoricamente, não deveria existir. Somos, portanto, responsáveis pelas nossas dores, nossas alegrias e, sobretudo, pelo mal que causamos ao próximo. Aprendi essa lição há muitos anos, quando precisei escolher entre silenciar meus sentimentos ou correr o risco de não ser compreendido. Vale evocar as palavras de um santo que reconheceu, em meio à sua missão, os próprios conflitos interiores: “Não entendo o que faço. Pois não faço o que desejo, mas o que odeio.” (Romanos 7,15). Essa dualidade nos define: desejamos o bem, mas tantas vezes praticamos o contrário.
Em certos momentos, somos chamados a decidir — e a escolha nos coloca entre o bem e o mal. Por ignorância ou por prazer, permitimo-nos ser guiados pelo desejo de fazer nossa própria vontade, sem nos importarmos com sua justiça. O anseio é simplesmente sermos livres, inclusive das regras que estabelecemos para nós mesmos. Que possamos cultivar em nós um único desejo: praticar o bem — sempre o bem maior.
Desconhecemos os motivos de certas escolhas, assim como a origem de tanta mágoa ou rancor. Contudo, sabemos que um sentimento rejeitado pode se transformar em dor profunda em um futuro próximo, uma dor talvez irreparável. Rejeitar um sentimento verdadeiro assemelha-se a silenciar uma criança que tenta nos indicar onde sente dor. Ela se cala... mas a dor persiste.
O passado é irrevisível. O relógio não retrocede após a hora marcada e o instante perdido. Quisera Deus que pudéssemos, como um Super-Homem de alma ferida diante da morte da amada, voar na tentativa desesperada de fazer o tempo retroceder — unicamente para evitar a dor da perda, tal como Hércules lamentou a perda de sua família ou Orfeu a de Eurídice. Essa fantasia inevitavelmente nos desperta uma ponta de inveja nobre, se é que tal sentimento existe.
Essa imagem ecoa nosso desejo humano fundamental de corrigir o passado, de desfazer as escolhas que nos trouxeram sofrimento ou causaram dor a outros. Se possuíssemos esse poder extraordinário de viajar pelas linhas temporais, talvez revisitássemos aqueles momentos cruciais em que nos encontramos na encruzilhada entre o desejo egoísta e a consciência, entre a palavra áspera proferida e o silêncio compassivo. Essa fantasia de controle temporal nos confronta, em última análise, com a imutabilidade do já vivido e a importância de assumirmos integralmente as consequências de cada decisão, pois, desprovidos de superpoderes, resta-nos apenas a capacidade presente de construir um futuro diferente, aprendendo com as cicatrizes do ontem.
Em nossa realidade, o relógio, implacável, jamais gira ao contrário depois da hora marcada e do momento perdido. Quando o tempo silencia, o que nos resta é a quietude da saudade.
Leia também: A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XV
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*DNonato – Leigo católico, graduado em História, sem superpoderes, mas com amor bastante para continuar tentando.
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