Por DNonato¹
Assim que funciona: somos seres criados para a felicidade. Mas, na caminhada, por não possuirmos o dom da vidência, mesmo quando avisados, costumamos duvidar. No peito mora uma emoção que não se explica. Por isso, fazemos escolhas erradas. Somos assim: duvidamos do improvável, do impossível e de tudo mais que brilha aos nossos olhos, revelando, depois, nossas decisões estúpidas.
Olhamos para nossa história e nos lembramos da nossa trilha sonora, embalada por canções que falavam de amor e de uma presença real que nos transformava em duas crianças num corpo de adulto. Sim, um corpo, pois assim sentíamos. Contudo, descobrimos que era preciso crescer. Um de nós brincava de ser feliz na vida do outro. E, quando rezávamos, pedíamos a Deus que fosse feita a Sua vontade, Ele, que habita o eterno e conhece a verdadeira felicidade.
Mas, com uma honestidade que ainda nos confronta, a memória persiste daquele prazer que incendiava a pele, um turbilhão de sensações que por vezes toldava a razão, mas que invariavelmente deixava um eco vazio na alma. Era um fogo que aquecia a superfície, sem jamais alcançar a profundidade do peito, onde um frio constante parecia residir. Experimentamos a vertigem dos encontros fugazes, o arrepio momentâneo do toque, o suspiro breve da satisfação física, mas tudo isso se dissipava como fumaça, sem deixar o calor duradouro de uma conexão genuína. No coração, restava apenas a sensação de incompletude, um espaço oco que a intensidade do corpo jamais conseguiu preencher, como se nos agarrássemos à casca vibrante de um fruto, ignorando a polpa nutritiva que poderia nos saciar de verdade.
E foi nessa mesma priorização do efêmero, nessa recusa em buscar a profundidade, que se firmou a postura daquele que... A pessoa que sempre preferiu, de forma egoísta e radical, as escolhas erradas, nunca esteve disposta a partilhar sua essência, seu ser inteiro. Viveu uma vida ilusória, onde o sentimento não importava. E agora vive na dor dessas mesmas escolhas, guiadas por conselhos de quem jamais experimentou a vida como nós a vivemos.
Diante desse quadro, dessa constatação das escolhas e suas consequências, inevitavelmente nos voltamos para dentro, confrontados por indagações cruciais:
Olhamos tudo isso e nos perguntamos: Será que, em meio aos erros e desilusões, não há também um valor intrínseco naquilo que aprendemos sobre nós mesmos e sobre a natureza humana? Será que a própria experiência, por mais dolorosa que tenha sido em certos momentos, não nos transformou de alguma forma essencial, conferindo um novo significado à pergunta: valeu a pena?
Será que essa nossa sofisticada capacidade de construir intrincados contratos sociais e desenvolver uma lógica racional, que tanto nos orgulha como espécie, ironicamente nos afasta daquela forma mais pura e instintiva de reconhecimento e respeito mútuo que observamos em certas criaturas? Os animais, desprovidos da nossa elaborada teia de intelecto, parecem, em suas interações mais elementares, exibir uma consideração fundamental pelo outro, talvez guiados por uma sabedoria emocional que precede a razão. A nossa "prática de ignorar a pessoa do outro", seja por egoísmo, conveniência ou pela crença em uma superioridade racional, não nos degrada a um nível onde a própria essência da conexão e da empatia se torna turva, colocando-nos, em certos aspectos cruciais do sentir, em uma posição inferior àqueles que vivem desimpedidos pelas armaduras da nossa própria racionalidade?
Por que, quando um animal nos elege para depositar sua lealdade e afeto, a escolha parece emanar de um lugar tão puro, de uma necessidade visceral de conexão e segurança, desprovida de segundas intenções ou cálculos estratégicos? Observamos a fidelidade inabalável de um cão, o ronronar afetuoso de um gato — gestos que parecem brotar de uma sabedoria emocional essencial. Em contraste, nós, seres humanos, com nossa sofisticação intelectual e nossa capacidade de dissimulação, tantas vezes maculamos a "arte do sentimento" com egoísmo, manipulação e uma desconcertante incapacidade de manter a mesma coerência e entrega que vemos no reino animal. Será que a simplicidade de suas necessidades emocionais os conduz a escolhas mais autênticas e duradouras, enquanto a complexidade dos nossos desejos nos torna mestres na arte da desumanidade sentimental?
Essas perguntas ecoam em nosso íntimo, expondo as contradições entre nossos anseios mais profundos e as escolhas que, por vezes, fazemos. E talvez seja nessa busca incessante por preencher um vazio, nessa tentativa de encontrar sentido, que acabamos por supervalorizar... Valorizamos o prazer do corpo, o luxo, o poder. Como toda droga, o sentimento tóxico também exige desintoxicação. Não se trata de substituir um amor por outro ou viver a ilusão de uma libertação inexistente. Trata-se de olhar para trás e reconhecer: vivemos, erramos, sentimos. Foi real. E sim, valeu a pena.
- Por que não nos perdoamos pelos erros?
- Por que não celebramos os acertos?
- Por que não conseguimos viver o hoje?
São perguntas que nos fazemos todos os dias ao levantar e ao deitar. Elas nos consomem por dentro. Mas a resposta é simples: ainda somos aquela criança com medo do escuro, com medo do futuro, esquecidos de que a oração termina com a súplica: “Livrai-nos do mal”. E Deus, que habita o eterno, cuida de cada um de nós de forma especial.
E então, como na canção "Pais e Filhos"², misturamos fé e dor, tocamos o sagrado com mãos profanas. Como Judas³, que entregou com um beijo aquele a quem dizia amar. Como os gladiadores⁴, como William Wallace⁵, como Jesus⁶ — derrotados aos olhos do mundo, mas símbolos eternos de coragem, fé e sacrifício.
Na sombra dos nossos desejos, há também o eco do prazer erótico, intenso, muitas vezes egoísta, que nos expôs como em uma confissão íntima. Santo Agostinho⁷ já dizia: “Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova...”, e em nós, essa beleza do sentir também chegou tarde, marcada por cicatrizes.
O amor, como nos ensinou Paulo⁸, tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta — mas isso exige maturidade, exige alma. “Ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos... se não tivesse amor, nada seria.”
E como em "Monte Castelo"⁹, carregamos as palavras da Bíblia na boca e as contradições no peito. Somos esse amálgama de fé e instinto, de oração e gozo, de carne e eternidade.
Vivemos também os nossos amores impossíveis, como o Super-Homem¹⁰, dividido entre Lana Lang e Lois Lane — uma história entre o que se deseja e o que se pode ter. Amores que parecem inalcançáveis desde a origem. E como ele, passamos a vida tentando salvar os outros, enquanto sufocamos o que sentimos.
Somos, no fundo, esse paradoxo entre Ícaro¹¹ e a Fênix¹². Provamos o sabor do voo, aquele êxtase de quem se entrega sem medir altura, sem temer o sol. Mas há sempre um despertar na queda — o momento em que as asas derretem e nos confrontamos com o chão da realidade.
E renascer... ah, renascer é mais difícil do que cair. Exige silêncio, humildade e o autoperdão das escolhas que fizemos ou que deixamos fazer por nós. Mas só quem aceita as cinzas consegue, um dia, novamente, arder.
E mesmo quando rezamos, mesmo na introspecção mais sincera, sentimos aquela dívida da saudade: o que nos consumiu ainda queima dentro, como se o tempo não fosse capaz de apagar totalmente o cheiro da antiga chama.
Porque só quem já caiu experimentou o gosto acre da trama no impacto com o chão. Só quem já se consumiu inteiro pode renascer com verdade. E só quem renasce com verdade é capaz de, enfim, viver o carpe diem¹³ — não como fuga, mas como fé. Fé no agora. Fé em si. Fé no eterno que nos reconstrói
Leia também: Questão de sentimento e orespeito por si mesmo XVII
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¹ DNonato: Teólogo do cotidiano | Historiador de vivências, Padre sem ordem / sem batina, sacerdote pelo batismo. Foi soldado de saúde, enfermeiro e padioleiro. Fala duro, mas seu coração é frágil e ferido, com asas de cera e em reconstrução no voo da vida.
² Pais e Filhos – Canção da Legião Urbana que fala sobre relações familiares, incompreensão, perdas e suicídio.
³ Judas Iscariotes – Um dos doze apóstolos de Jesus, que o traiu com um beijo por trinta moedas de prata.
⁴ Gladiadores – Escravos ou homens livres que lutavam entre si ou contra feras no Coliseu romano, muitas vezes em nome de um espetáculo brutal.
⁵ William Wallace – Líder escocês do século XIII que lutou contra a dominação inglesa. Traído e executado, tornou-se símbolo da liberdade.
⁶ Jesus Cristo – Figura central do Cristianismo, condenado à morte, traído e crucificado; para os cristãos, sua morte e ressurreição redimem a humanidade.
⁷ Santo Agostinho – Teólogo e filósofo cristão do século IV. Em suas “Confissões”, expressa seu amor tardio por Deus e a beleza da fé.
⁸ 1 Coríntios 13 – Trecho bíblico conhecido como “Hino ao Amor”, escrito por São Paulo aos coríntios.
⁹ Monte Castelo – Canção da Legião Urbana que mistura Coríntios 13 e o poema “Soneto de Fidelidade”, de Vinicius de Moraes.
¹⁰ Super-Homem – Herói dos quadrinhos dividido entre o amor por Lana Lang (passado) e Lois Lane (presente). Seu dilema amoroso representa o embate entre destino e desejo.
¹¹ Ícaro – Personagem da mitologia grega que tentou voar com asas feitas de cera e penas. Ao se aproximar demais do sol, suas asas derreteram e ele caiu.
¹² Fênix – Ave mítica que, ao morrer queimada, renasce das próprias cinzas; símbolo de renovação.
¹³ Carpe diem – Expressão latina que significa “aproveite o dia”, celebrando a urgência e plenitude do agora.
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