“Como o Pai me amou, assim eu vos amei. Permanecei no meu amor.” (Jo 15,9)
Esse não é um conselho piedoso. É uma convocação insurgente. É como se Jesus dissesse: "Permanecei na contramão, quando o ódio for lei. Permanecei na partilha, quando a lógica for o acúmulo. Permanecei no abraço, quando tudo gritar pelo muro. Permanecei no amor, quando a religião servir ao trono e não à cruz."
Aqui, o amor não é ideia abstrata. É carne, é corpo, é chão. O amor de Jesus sangra com os feridos de Gaza, com os indígenas expulsos de suas terras, com os pobres humilhados pelas filas do osso e pelas filas da fé. É o amor que arde e se doa, como o fogo da sarça (Ex 3,2), que consome sem destruir. Amar, para Jesus, é permanecer fiel quando tudo desaba. É continuar levantando caídos, mesmo quando a estrutura inteira empurra para o chão.
“Eu vos disse isso para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plena.” (Jo 15,11)
Mas que alegria é essa, que nasce no meio do conflito? É a alegria do Cristo que chora, mas não desiste. É a alegria de quem carrega a cruz não por prazer, mas por fidelidade. É a alegria que se encarna na memória de Irmã Dorothy Stang, que andava pelos igarapés da Amazônia com a Bíblia em uma mão e os direitos dos pobres na outra. Foi assassinada por anunciar que a terra é dom de Deus, não mercadoria para poucos. Suas últimas palavras foram: “Este é o Evangelho de Jesus Cristo.” Ela permaneceu no amor — até a morte. Essa é a alegria plena que brota quando o Reino acontece: no gesto de partilha, no abraço ao doente, no perdão que desmonta o ódio.
Desde o Gênesis, sabemos: “Não é bom que o ser humano esteja só” (Gn 2,18). A solidão imposta é violência. O Evangelho denuncia toda lógica que divide, segrega, hierarquiza. A antropologia bíblica nos lembra que não existimos fora da relação. E toda relação que não passa pelo amor, torna-se dominação. O neoliberalismo, com sua meritocracia cruel, mata antes de matar. Primeiro retira o nome; depois, a dignidade; por fim, a vida. Jesus, ao dizer “permanecei no meu amor”, está dizendo: “Permanecei humanos. Permanecei livres. Permanecei inteiros, mesmo que tudo vos tente destruir.”
A Igreja não é templo de poder, mas espaço de serviço. O clericalismo — essa doença que transforma o ministério em privilégio — mata a profecia e neutraliza o Evangelho. Jesus lavou pés, não ergueu tronos. Quem usa a batina como escudo para a vaidade, trai o Crucificado. E ainda mais perigosa é a religião vendida ao mercado. A religião que unge políticos armados de ódio. A religião que troca a cruz pela carteira assinada com os donos do poder. A religião que transforma fiéis em massa de manobra e o dízimo em moeda de chantagem. Essa religião, dizia o profeta Amós, é farsa: “Odeio vossas festas, não suporto vossas assembleias. Em vez disso, corra o direito como água e a justiça como torrente perene” (Am 5,21.24).
Permaneceu no amor também Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador. Não começou profeta — mas foi tocado pelas dores do povo. Quando viu que a cruz era carregada pelos camponeses assassinados, pelos corpos largados nas valas comuns, Romero desceu do palácio e subiu ao altar da vida. Denunciou a injustiça, condenou os tiranos, foi ameaçado por dentro e por fora da Igreja. Pregou o Evangelho até o fim — e foi morto no altar, enquanto celebrava a Eucaristia. Seu sangue se misturou ao vinho. Tornou-se semente. Ele também permaneceu no amor.
Francisco, o bispo de Roma que agora repousa no seio dos pobres de Deus, viveu o Evangelho com os pés sujos de mundo. Denunciou a “economia que mata”, abraçou os migrantes, lavou os pés de presidiários, gritou contra o clericalismo, enfrentou os fariseus de farda e terno. E mesmo cercado de lobos, permaneceu no amor. Num tempo em que igrejas se tornavam balcões e pastores se faziam CEOs, Francisco ousou lembrar que Jesus nasceu entre animais, morreu entre bandidos e ressuscitou entre covardes. E mesmo assim, não desistiu da humanidade.
“Este é o meu mandamento: amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 15,12)
Amar como Ele amou é recusar-se a aceitar o mundo como está. É plantar beleza onde reina o concreto. É dizer não ao racismo, ao machismo, à homofobia, ao fascismo. É não permitir que a religião seja cúmplice do ódio. É viver como sarça viva: ardendo, resistindo, iluminando.
E se for preciso perder tudo para não perder o amor — então que tudo se perca. Porque só o amor permanece. Só o amor liberta. Só o amor salva.
“Se não tiver amor, nada sou.” (1Cor 13,2)
DNonato - Graduado em História, teólogo do cotidiano
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