quinta-feira, 22 de maio de 2025

Um breve olhar em João 15,12-17

"Já não vos chamo servos, mas amigos!" (Jo 15,15)

Vivemos tempos em que a linguagem da fé tem sido manipulada para justificar ideologias de ódio, exclusão e poder. O nome de Jesus – aquele que lavou os pés dos discípulos e perdoou os que o crucificaram – é tragicamente invocado como símbolo de supremacia, arma de guerra cultural e estandarte de opressão. Mas o Evangelho de João nos confronta com um Cristo radicalmente diferente: Ele nos chama de amigos. Não servos subalternos, não soldados de cruzadas modernas, mas amigos. Ele compartilha conosco os segredos do Pai (Jo 15,15) e nos confia um mandamento inegociável: "Amai-vos uns aos outros como eu vos amei" (Jo 15,12).

Esse amor não é opção devocional. É critério de autenticidade cristã. O amor de Cristo não se expressa em sentimentalismo ou em devoções isoladas, mas em gestos concretos de justiça, compaixão e solidariedade. “Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos seus amigos” (Jo 15,13). É um amor que não se contenta com esmolas ou com orações piedosas enquanto o mundo sangra. É um amor que exige entrega, resistência e coragem profética.

Mas o que temos testemunhado é a banalização desse mandamento. Em nome de Cristo, têm-se construído muros, propagado discursos armamentistas, naturalizado desigualdades e sacramentado injustiças. Uma parte da Igreja, fascinada pelo poder e temerosa de perder influência, silencia frente ao sofrimento dos pobres, alinha-se à extrema direita e aceita calada a perversidade de políticas públicas que exterminam os vulneráveis. Em nome de uma moral seletiva, cala-se diante da fome, da violência contra mulheres, do genocídio negro, da destruição ambiental e do massacre dos povos originários. Usa-se o nome de Deus, mas nega-se sua face nos crucificados da história.

E aqui é preciso dizer com toda clareza: Jesus nunca foi bispo, padre ou diácono. Nunca usou mitra, estola ou casula. Não celebrou em templos ornamentados nem distribuiu bênçãos revestido de aparato sacral. Seu altar foi a mesa dos pecadores. Sua liturgia, o toque nos intocáveis. Seu templo, o corpo dos excluídos. Sua estola, a toalha com que lavou os pés dos discípulos. Seu gesto mais revolucionário foi chamar-nos de amigos – e isso basta.

Essa verdade deve nos questionar profundamente: por que tanto apego ao clericalismo? 

Por que tanta idolatria da vestimenta, do protocolo, da autoridade sacralizada? 

O Papa Francisco nos  falou   na Evangelii Gaudium, 102:

“o clericalismo é uma das maiores tentações da Igreja”, pois sufoca a dimensão profética do povo de Deus"

 Uma Igreja fascinada pela pompa, mas indiferente à dor do povo, trai seu Senhor. Uma Igreja que se isola em sacristias e tronos de púrpura, mas não escuta o grito do oprimido, já não é comunidade de discípulos, mas castelo de privilégios. Jesus escolheu o caminho da encarnação. Nasceu pobre, viveu migrante, morreu condenado político. Sua amizade é convocação para uma fé encarnada, uma espiritualidade de chão e de cruz. Como nos lembra o Documento de Aparecida, “a opção preferencial pelos pobres está implícita na fé cristológica naquele Deus que se fez pobre por nós” (DAp, 392). Não se trata apenas de um gesto de caridade, mas de um posicionamento diante da história. Amar como Cristo é comprometer-se com a libertação dos marginalizados, é romper com estruturas injustas, é ser voz onde há silêncio, luz onde há trevas, denúncia onde há opressão.

Portanto, não há verdadeira amizade com Jesus sem compromisso com os crucificados de hoje. O que Ele nos pede é radical: não religiosidade de fachada, mas amor até as últimas consequências. Não devoção vazia, mas prática libertadora. Não alianças com os poderosos, mas comunhão com os últimos. Ser amigo de Jesus é ser presença do Reino no meio de um mundo que idolatra o lucro e sacrifica vidas no altar do mercado.

A prática religiosa que apenas repete fórmulas, mas não se deixa tocar pelo sofrimento humano, é estéril. O profeta Amós já denunciava: “Detesto vossas festas religiosas... que a justiça corra como um rio!” (Am 5,21-24). O próprio Jesus afirmou: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8). Quantas vezes nossas liturgias, nossas homilias, nossos templos, estão longe do coração de Deus porque estão longe do povo, da dor, da luta?

Jesus nos escolheu – não para a autopreservação – mas para dar fruto (Jo 15,16). Fruto de profecia, de serviço, de resistência. Ele nos amou até o fim e nos pede o mesmo. Sua cruz não é adorno, mas denúncia contra todo sistema de morte. O seguimento a Ele não é carreira eclesiástica, é entrega existencial. Ele não nos chamou para sermos donos da religião, mas servidores da vida. Não para sermos senhores da moral, mas companheiros dos que sofrem.

Amar como Ele nos amou significa, hoje, enfrentar os discursos que transformam o Evangelho em ideologia de extrema direita. Significa desmascarar o uso político da fé, denunciar o clericalismo que sufoca a liberdade dos leigos e questionar a liturgia que se torna espetáculo. Amar como Jesus é viver com os pés sujos de caminhada, com o coração doído de compaixão, com as mãos calejadas de serviço.

Não há maior amor que este: dar a vida pelos seus amigos. Que não nos contentemos com uma fé ritual, mas assumamos a radicalidade do Evangelho. Que sejamos amigos do Cristo pobre, crucificado e ressuscitado. Amigos do povo. Amigos da justiça. Amigos da verdade.

Amemos como o Senhor nos amou – com coragem, com denúncia, com entrega. Porque o amor, quando é de Deus, jamais se acomoda. Ele nos queima. Ele nos move. Ele nos lança ao mundo para transformá-lo.



DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, querendo  ser amigo de Jesus 


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