Certa vez, um pobre índio nahua¹ teve um sonho. Um sonho de ser imensamente feliz² — sonho que lhe foi despertado por uma bela morena de olhos de jabuticaba. O encontro entre os dois foi algo divino, uma daquelas coincidências que só a força do querer consegue explicar. Como todo homem, todo filho da terra, ele descobriu que decifrar os desejos e as manias de uma mulher é tarefa árdua. Quando se encontravam, os minutos viravam segundos, e os segundos se prolongavam como horas — mergulhavam num tempo suspenso, onde o tempo, paradoxalmente, era seu maior inimigo.
Passaram de amigos a amantes e, com o tempo, de amantes tornaram-se apenas conhecidos — incapazes de se olharem nos olhos e assumirem o desejo contido de recomeçar. Ela, como já foi dito, permanece acorrentada aos seus próprios grilhões, sem coragem de sonhar ou de ousar acreditar que o amor, sim, é capaz de nos realizar. Senhora de si mesma, senhora do destino do pobre mortal que um dia ousou amá-la.
Mas por quê? Como pode um sentimento tão nobre ser abandonado, abortado ou simplesmente deixado à deriva? Somos assim: desejamos o sublime, o divino, mas não conseguimos perdoar as falhas do ser amado. Somos ágeis em apontar defeitos, lentos em reconhecer nossas próprias escolhas frágeis, nossas vontades volúveis. E, mesmo assim, não deixamos de julgar, de alegar que o outro não é “nosso tipo” — como se o amor pudesse ser moldado por padrões ou expectativas.
Quando foi que desaprendemos a essência do amor? Quando foi que deixamos de entender que amar é aceitar o outro como ele é — inteiro, com luzes e sombras, com virtudes e tropeços? Só quando somos capazes de acolher o outro em sua inteireza é que podemos, enfim, nos aceitar também. E, nesse abraço, nos tornamos melhores. E, sendo melhores, tocamos o divino. E, nesse toque, o perdão brota — simples, sincero — e se revela como a mais pura prova de amor.
Não somos máquinas. Não somos programados para amar ou para odiar. Somos humanos — e, como tais, convidados a cultivar esse sentimento nobre que nos aproxima de Deus. Não se vive pela metade. Não se ama pela metade. Não há meia felicidade. A vida exige inteireza: ou somos, ou não somos; ou vivemos, ou apenas passamos.
Esperar um milagre no outro exige, antes, cultivar esse milagre em si mesmo. Só assim se desperta, no outro, o milagre do amor. Tudo o que vivemos tem um preço. Cada escolha traz uma consequência — são leis naturais, imutáveis, como na física, na química, na própria alma da existência.
Não se pode alegar ignorância diante do que se sente. Não se foge da verdade do coração — ela nos persegue em silêncio, como sombra ao entardecer. Não se abandona o eu que ainda pulsa, nem o outro que, mesmo em silêncio, ainda habita o peito. Mas a morena... ah, a morena tem esse dom estranho de viver como se fosse possível ignorar tudo isso. Vive como se o amor fosse apenas uma canção que se canta uma vez — e depois se cala.
No fim de tudo, quem escolhe sua própria felicidade é você. Mas diga-me: como ser verdadeiramente feliz, sabendo o que se fez ao outro? Como negar uma segunda chance a quem poderia ter sido mais do que amigo, mais do que conselheiro — alguém capaz de doar-se inteiro?
Assim como na canção de La Barca, “nos dijimos adiós...”, mas o adeus, talvez, tenha sido apenas de palavras. Porque, no fundo, onde o amor ainda resiste, o barco segue esperando o mar certo, o vento justo, o momento de retornar.
DNonato
Teólogo do cotidiano, Graduado em História
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¹ Nahua: designação para diversos povos indígenas do México, descendentes dos astecas, que falam línguas da família náuatle. Guardam uma rica herança cultural e espiritual da Mesoamérica pré-colombiana.
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