quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo XXXIV

Quando nos perdemos de nós mesmos?
Há perdas que não cabem em caixões, nem se gravam em lápides. Algumas não têm data, flores ou despedida. São mortes em vida: quando, para agradar, deixamos de existir. Vamos nos apagando aos poucos, silenciando verdades, dobrando sonhos e guardando-os em gavetas — como se amar exigisse a nossa anulação. É um esvaziamento lento, quase invisível. Primeiro, calamos para evitar conflitos. Depois, vestimos máscaras para sermos aceitos. Até que o “nós” engole o “eu”, e a vida se torna um palco onde encenamos papéis que nos consomem. Perdidos na história dos outros, esquecemos onde começávamos. E, no esforço de não decepcionar, traímos a nós mesmos.

Algumas cicatrizes se veem na pele. Outras, corroem por dentro. A perda de si é a mais perigosa: silenciosa, sem gritos ou lágrimas. É quando a voz se dissolve, como um rio que abandona sua nascente tentando seguir o curso dos outros. Mas o amor verdadeiro não exige renúncia da identidade. Ele não apaga, acende. Não sufoca, aquece. No entanto, quantas vezes confundimos cativeiro com lar, submissão com entrega, permanência com amor?

Há um tipo de solidão que nasce mesmo acompanhados: quando a alma já foi embora, mas o corpo ainda está ali, cumprindo o papel esperado — sombra do nome que já não reconhece o próprio rosto. É uma morte que não tem velório nem flores. Acontece em vida: o corpo permanece, mas o ser já partiu. Respiramos, mas não vivemos. Os dias se repetem como folhas amassadas, o coração bate por hábito, não por desejo. O olhar, antes cheio de horizontes, torna-se opaco. O silêncio dentro já não é pausa, mas vazio. É estar presente e, ao mesmo tempo, ausente de si.

Todos nós sabemos quando esse momento chega. Talvez num café silencioso, com uma xícara fria nas mãos. Talvez diante do espelho, ao encarar um estranho com o nosso rosto. É o instante em que entendemos que estamos longe de nós, e, por isso, longe daquilo que nos mantém vivos.

Os mitos antigos nos lembram o que acontece quando nos afastamos de nossa essência. Narciso, seduzido pelo próprio reflexo, afogou-se no lago — como tantos de nós que hoje nos afogamos em telas e curtidas. Orfeu, no desejo intenso de salvar Eurídice, olhou para trás e a perdeu — como nós, quando nos gastamos para salvar os outros e esquecemos que também precisamos ser salvos. Marco Antônio entregou sua vida a Cleópatra e perdeu não só um império, mas a si mesmo — como nós, quando vivemos para alguém a ponto de morrer por dentro. E há Sísifo, empurrando eternamente sua pedra morro acima, apenas para vê-la rolar de volta. Somos Sísifo quando nos envolvemos em esforços que não escolhemos, em batalhas que não entendemos, em repetições que nos roubam a alma. A pedra não é apenas peso físico: é o silêncio sufocante do propósito perdido. O pior castigo não é a fadiga dos músculos, mas o esquecimento de quem somos e para onde vamos.

As tradições afro-brasileiras também nos alertam. Exu, senhor das encruzilhadas, avisa: quem ignora seu próprio caminho acaba preso no labirinto dos outros. Oxum, rio dourado, aparece aprisionada em jarros — até lembrar que nasceu para correr livre. Iansã, senhora dos ventos, já foi capturada pelo medo, mas reencontrou sua força quando deixou a tempestade levá-la de volta para si. Ogum, guerreiro incansável, por vezes se perde em guerras alheias, gastando o fio da espada em causas que não são suas.

Perder-nos de nós mesmos é viver num quarto sem janelas. O ar rareia, as cores se apagam, e o corpo se torna um estranho. O sorriso não chega à alma. O toque transforma-se em pedra fria. O rio interior corre raso, distante da nascente. É a guerra interna que todos travamos: querer e não poder, lutar e não vencer — até que algo ou alguém nos desperte. Mas há esperança. Podemos abrir a gaveta da alma, desamassar os dias, reescolher a trilha sonora da nossa história. Podemos abrir a janela para que o vento limpe os ombros e o sol aqueça o rosto. Podemos dançar, mesmo que ninguém veja. Podemos seguir o rio até a nascente e beber da água que não seca.

E aqui está o chamado urgente: não nos conformemos com um amor domesticado, que nos adestra para calar, para ceder sempre, para existir apenas na medida do desejo do outro. Recusemos a relação que exige presença física, mas nos rouba a alma. Rejeitemos os vínculos que guardam a aparência de cuidado, mas deixam o coração à míngua. Lembremos que o amor verdadeiro não apaga a nossa identidade, mas a revela e a expande.

Porque, no fim, a pior perda não é ver alguém partir. É permanecermos... e acordarmos diante do espelho encarando um estranho nos próprios olhos. Mas se tocarmos esse vidro frio e ouvirmos, lá no fundo, o murmúrio da nascente, ainda haverá tempo. Tempo de voltar. Tempo de ser. Tempo de sermos nós.

DNonato - Teólogo  do Cotidiano 

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  28. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXVIII
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  31.  Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo – XXXII
  32.  Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXI
  33.  Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXIII


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