Todos nós sabemos quando esse momento chega. Talvez num café silencioso, com uma xícara fria nas mãos. Talvez diante do espelho, ao encarar um estranho com o nosso rosto. É o instante em que entendemos que estamos longe de nós, e, por isso, longe daquilo que nos mantém vivos.
Os mitos antigos nos lembram o que acontece quando nos afastamos de nossa essência. Narciso, seduzido pelo próprio reflexo, afogou-se no lago — como tantos de nós que hoje nos afogamos em telas e curtidas. Orfeu, no desejo intenso de salvar Eurídice, olhou para trás e a perdeu — como nós, quando nos gastamos para salvar os outros e esquecemos que também precisamos ser salvos. Marco Antônio entregou sua vida a Cleópatra e perdeu não só um império, mas a si mesmo — como nós, quando vivemos para alguém a ponto de morrer por dentro. E há Sísifo, empurrando eternamente sua pedra morro acima, apenas para vê-la rolar de volta. Somos Sísifo quando nos envolvemos em esforços que não escolhemos, em batalhas que não entendemos, em repetições que nos roubam a alma. A pedra não é apenas peso físico: é o silêncio sufocante do propósito perdido. O pior castigo não é a fadiga dos músculos, mas o esquecimento de quem somos e para onde vamos.
As tradições afro-brasileiras também nos alertam. Exu, senhor das encruzilhadas, avisa: quem ignora seu próprio caminho acaba preso no labirinto dos outros. Oxum, rio dourado, aparece aprisionada em jarros — até lembrar que nasceu para correr livre. Iansã, senhora dos ventos, já foi capturada pelo medo, mas reencontrou sua força quando deixou a tempestade levá-la de volta para si. Ogum, guerreiro incansável, por vezes se perde em guerras alheias, gastando o fio da espada em causas que não são suas.
Perder-nos de nós mesmos é viver num quarto sem janelas. O ar rareia, as cores se apagam, e o corpo se torna um estranho. O sorriso não chega à alma. O toque transforma-se em pedra fria. O rio interior corre raso, distante da nascente. É a guerra interna que todos travamos: querer e não poder, lutar e não vencer — até que algo ou alguém nos desperte. Mas há esperança. Podemos abrir a gaveta da alma, desamassar os dias, reescolher a trilha sonora da nossa história. Podemos abrir a janela para que o vento limpe os ombros e o sol aqueça o rosto. Podemos dançar, mesmo que ninguém veja. Podemos seguir o rio até a nascente e beber da água que não seca.
E aqui está o chamado urgente: não nos conformemos com um amor domesticado, que nos adestra para calar, para ceder sempre, para existir apenas na medida do desejo do outro. Recusemos a relação que exige presença física, mas nos rouba a alma. Rejeitemos os vínculos que guardam a aparência de cuidado, mas deixam o coração à míngua. Lembremos que o amor verdadeiro não apaga a nossa identidade, mas a revela e a expande.
Porque, no fim, a pior perda não é ver alguém partir. É permanecermos... e acordarmos diante do espelho encarando um estranho nos próprios olhos. Mas se tocarmos esse vidro frio e ouvirmos, lá no fundo, o murmúrio da nascente, ainda haverá tempo. Tempo de voltar. Tempo de ser. Tempo de sermos nós.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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