terça-feira, 15 de julho de 2025

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo XXXIII

 



A coragem de não implorar
Algumas músicas são espelhos estilhaçados. “My Mistake”, do grupo Folha, não se ouve — se sente na pele, como queimadura, esse texto nasce  irmão do texto  Quando amar se confunde com matar: escutas críticas de My Mistake

Uma musica que  narra uma cena  brutal: um homem mata a mulher que o traiu. Não é ficção distante — é reflexo do que acontece todos os dias, em casas, quartos e corações onde o amor virou cárcere, e a dor, sentença. Ele diz que foi um erro. Mas a verdade é que o erro começou muito antes do tiro — começou no instante em que confundimos amor com posse, desejo com direito, ausência com ofensa pessoal.

Essa confusão adoece por dentro. Muitas vezes, já nos ferimos antes mesmo de sermos feridos — ao entregar nossa dignidade a um amor que nunca existiu. A pergunta que fica é: quantas vezes já matamos a nós mesmos por alguém que não nos quis? Quantas vezes sufocamos a própria alegria, apagamos a nossa luz interior, imploramos por um afeto que sabíamos — no fundo — que nunca viria?

Insistimos em manter aceso o que já se apagou. Não queremos matar o que sentimos — queremos deixar viver, inclusive a dor, sem nos deixarmos definhar por ela. Queremos sobreviver sem adoecer. Amar sem implorar. Partir sem carregar culpa. E, sobretudo: não nos ferir em nome de ninguém. Nem sempre o amor nasce dos dois lados. Às vezes, é preciso coragem para reconhecer que o outro nunca nos amou — nem no começo, nem no meio, nem no adeus. Só no nosso sonho.

Aceitar essa realidade — que há tempos que não são mais nossos — pode ser brutal, mas também libertador. Porque não há sabedoria maior do que a de reconhecer a hora de parar. De não insistir em quem já foi embora — ou nunca esteve. De respeitar o silêncio que se instala onde antes havia promessa. De não tentar manter acesa uma chama que só nos queima.

 “Há um tempo de abraçar e um tempo de afastar-se dos abraços.” (Eclesiastes 3,5)

O tempo de se afastar chega sem alarde. A ausência do amor do outro pode nos ferir, sim — mas insistir em permanecer onde somos ignorados fere muito mais. A dignidade floresce quando deixamos de nos oferecer como oferta onde não há altar. Amor verdadeiro, ainda que doído, não sequestra ninguém. E o respeito próprio começa quando deixamos de entregar o coração a quem não sabe — ou não quer — recebê-lo.

Respeitar-se é, portanto, aprender a deixar ir. Mesmo quando dói. Mesmo quando a vontade grita por um olhar, por um gesto, por qualquer migalha de permanência. Mesmo quando tudo em nós ainda quer ficar. Porque a liberdade começa quando entendemos que nem toda ausência é abandono — às vezes, é livramento.

A chance mais importante é a que damos a nós mesmos: a de não mendigar presença, de não adoecer por alguém que não sabe, ou não pode, nos amar. Quem sabe quem é, não implora para ser visto. Sabedoria do axé — como ensinam as mães de santo: o orixá que é nosso, vem. O que não vem, não nos pertence. E não precisamos nos curvar diante do que nunca foi nosso.

A filosofia dos antigos estoicos também nos ajuda a compreender isso: a verdadeira liberdade não está no que nos acontece, mas em como escolhemos responder. Amar sem ser amado não nos torna fracos — ao contrário, nos coloca diante de um campo de batalha interior, onde a luta é pela preservação de nossa inteireza. Como dizia Marco Aurélio: “Tudo o que nos fere por fora só nos atinge se abrirmos a porta por dentro.”

E essa porta muitas vezes é escancarada pela carência. Quando buscamos no outro a validação do que somos, corremos o risco de cair no espelho de Narciso — não por vaidade, mas por desespero. O mito grego não denuncia o amor próprio, mas o desejo de ver nosso amor refletido a qualquer custo. E quem se afoga nesse espelho não encontra profundidade — apenas estilhaços. Não é reflexo: é dor travestida de imagem.

A escolha mais difícil nem sempre é caminhar ao lado de alguém. Às vezes, é reconhecer que o outro nunca caminhou conosco. E, mesmo assim, seguir. Sem amargura. Sem mágoa. Com cicatrizes, sim — mas sem sangrar pelo descuido de nós mesmos. Porque a pior traição não vem de fora, mas de dentro: quando insistimos em permanecer onde já fomos deixados.

Vivemos em um tempo que romantiza a insistência, que transforma humilhação em prova de amor, que glorifica a ideia de “lutar até o fim”. Mas há lutas que só nos machucam. E dizer “basta” com amor por si é um ato revolucionário. É declarar: não me sacrifico mais em altares que não me acolhem.Vivemos sob uma indústria da carência — uma pedagogia disfarçada que nos ensina a confundir obsessão com fidelidade, humilhação com entrega, abandono com vocação ao sofrimento. Mas amor não é insistência cega. Amor é também discernimento. E discernir é libertar-se.

Aprender a dizer “chega” não é desistência. É sabedoria. É coragem de se amar. Como dizem os mais velhos: ninguém segura quem aprende a andar com os próprios passos. Entre os povos indígenas do Brasil, o amor é escuta e fluidez. Não se prende o outro. Não se força permanência. O amor é relação de troca que respeita o tempo e o caminho de cada um.

Sim, a dor não some de imediato. Mas muda de pele. De ferida aberta, vira trilha secreta. Lembrança. Aprendizado. Às vezes, força. É pela dor atravessada com consciência que, um dia, nos reencontramos inteiros. Porque a dor, quando aceita, não nos destrói: nos revela. Ela mostra o quanto ainda esperamos reconhecimento de fora, o quanto ainda acreditamos que só valemos se formos amados por alguém.

Mas há um outro perigo silencioso: tornar-se cúmplice da própria dor. Há quem confunda cicatriz com identidade. Quem passa a viver preso à narrativa de ter sido rejeitado, como se isso fosse tudo o que é. Mas não somos aquilo que nos negaram. Somos também a possibilidade que brota depois — e a coragem de continuar sendo, mesmo sem testemunhas.

O amor que não volta pode deixar buracos. Mas é no modo como cuidamos desses vazios que se revela nossa alma. Há quem encha o vazio com raiva. Outros, com obsessão. Mas existe um caminho mais difícil — e mais sagrado: o do silêncio curativo, que não grita, não implora, não se justifica. Apenas aceita o que foi, honra o que sentiu, e segue com a leveza possível.

Essa leveza não é negação. É maturidade. E exige de nós uma espiritualidade que não dependa da presença do outro para florescer. Há orações que nascem no chão do abandono. E há fé que se fortalece quando não há mais quem nos segure pela mão. Porque há uma hora em que o outro não vem — e é nesse exato ponto que descobrimos o caminho de volta para nós.

Vivemos em uma cultura que nos faz crer que estar só é fracasso. Que o valor da pessoa depende de ser escolhida. Mas o Evangelho subverte isso: Jesus, em diversos momentos, se retirava. Escolhia o deserto. Aceitava o não. Chorava sozinho. E, mesmo assim, permanecia inteiro. Porque a missão de amar não é depender do retorno — é permanecer fiel à própria fonte.

A espiritualidade da inteireza é essa: amar sem se desmanchar, doar sem se anular, sentir sem se abandonar. Ela nos ensina que o coração pode sim ser partido — mas não precisa ser perdido. Que podemos chorar — sem precisar rastejar. Que podemos sofrer — sem precisar implorar para continuar existindo no afeto do outro.

Há quem pense que dignidade é frieza. Mas dignidade, aqui, é um nome alternativo para amor próprio. Não o amor narcísico, inflado, cínico. Mas o amor cultivado no silêncio, no respeito de si, na aceitação do tempo e na confiança de que o que é verdadeiro jamais exigirá que sangremos por migalhas. E quando voltamos a nós — não por desistência, mas por lucidez — uma outra cura começa: a de viver com inteireza mesmo em ausências. A de respirar sem depender do retorno. A de existir sem depender de aprovação. A de amar — inclusive a si — sem precisar mais implorar por um amor que não vem.

Amar alguém que não nos ama é duro. Mas continuar nos amando, apesar disso, é o que nos cura. Porque só cicatriza o que foi aceito. E só se cura o que já deixou de nos comandar. Dor sentida é humana. Dor idolatrada, prisão. E quando escolhemos sentir, sem implorar, sem adoecer, sem morrer,  é aí que começa a mais rara das liberdades: aquela que não espera ser amada para existir, ser inteira, ser livre.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

Não precisa de uma sequência  para essa leitura, escolha ou faça a sua 

  1. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo.
  2. A Questão do Sentimento e Respeito a si mesmo II
  3. A Questao de sentimento  e o Respeito  por si mesmo III
  4. A Questão do Sentimento, Respeitsi mesmo IV
  5. Questão do sentimento, Respeito a si mesmo V
  6. Questão do sentimento, respeito a si mesmo VI
  7. Questão do sentimento, respeito por si mesmo VII
  8. Questão do Sentimento, respeito si mesmo VIII
  9. Questão de sentimento e Respeito a si mesmo IX
  10. Questão do Sentimento, Respeito por si mesmo X
  11. Questão do Sentimento, Respeito por si mesmo XI
  12. Questão de sentimento Respeito por si mesmo XII
  13. Questão do Sentimento, Respeito por si mesmo XIII
  14. Questão de sentimento respeito por si mesmo XIV
  15. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XV
  16. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XVI
  17. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo ​XVII​​​
  18. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XVIII.
  19. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XIX.
  20. A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XX.
  21. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXI
  22. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXII
  23. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXIII
  24. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXIV
  25. A Questão  do sentimento  e o Respeito  por si mesmo - XXV
  26. A questão do Sentimento e o respeito por si mesmo XXVI
  27. A Questão  de sentimento  e Respeito  por si mesmo  XXVII..
  28. A Questão do sentimento e o respeito a si mesmo XXVIII
  29.  A Questão  do Sentimento  e Respeito  a si mesmo  XXIX
  30. A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXX
  31.  Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXI
  32.  Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo – XXXII

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