terça-feira, 8 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 10,1-7

 
“Chamados pelo nome, enviados com compaixão: contra o Evangelho do poder”

Nesta Quarta-feira da 14ª Semana do Tempo Comum, a liturgia nos oferece o Evangelho segundo Mateus (10,1-7), em que Jesus convoca os doze discípulos, chamando-os um por um, pelo nome, e os envia como sinal concreto da proximidade do Reino. Não se trata de um chamado genérico, massificado ou funcional. É um envio que nasce da intimidade, da escuta e da confiança. Cada nome pronunciado por Jesus carrega uma história, uma vulnerabilidade, uma promessa e uma missão.

O chamado não é para o estrelato religioso, nem para animar plateias digitais com frases de efeito ou milagres espetaculares. É envio para os caminhos poeirentos da Galileia, onde a dor dos esquecidos clama, onde a doença isola e onde os "perdidos da casa de Israel" esperam por pastores com cheiro de povo. A missão, como se verá, é sinal da compaixão encarnada, jamais do espetáculo. Ao contemplarmos esse momento do envio, somos também provocados: que tipo de presença temos sido no mundo? De que modo nossas palavras e gestos têm anunciado o Reino — ou nos distraído com outras agendas? Que Evangelho temos proclamado: o das Bem-Aventuranças ou o da autopromoção piedosa?

É nesta tensão entre chamado pessoal e envio comunitário, entre nome e missão, que se abre a meditação que segue.

No início do capítulo 10 de Mateus, Jesus não apenas convoca doze discípulos: ele os chama pelo nome — e, ao nomeá-los, os envia com um rosto. Esse gesto simples e íntimo carrega uma força teológica e antropológica profunda. Nomear é reconhecer a dignidade de alguém, afirmar sua identidade, sua história, seu corpo, sua alma. Na tradição bíblica, chamar pelo nome é investir sentido na existência do outro. Assim foi com Adão (Gn 3,9), com Moisés na sarça (Ex 3,4), com Samuel ainda menino (1Sm 3,4), e ecoa em Isaías: “Eu te chamei pelo nome, tu és meu” (Is 43,1). E em João 10,3: “As ovelhas escutam a sua voz. Ele chama cada uma pelo nome e as conduz para fora.” A autoridade de Jesus é a de quem conduz para fora — do cativeiro, do legalismo, da religião do medo. Sua voz não grita: convoca. Não impõe: atrai. E essa voz continua a ressoar hoje, chamando pelo nome aqueles que foram esquecidos pelas estruturas. O chamado de Jesus não é genérico, nem estatístico: é pessoal, afetuoso, comprometido. Deus não nos chama como números nem consumidores de sacramentos, mas como filhos e filhas com rosto, lágrimas e sonhos. Deus nos chama com o nome bordado na própria veste. Cada chamado é como uma costura de sentido feita com os fios da misericórdia sobre a carne ferida do mundo.

Esse chamado não brota do alto de uma torre doutrinária nem da lógica meritocrática. Surge da compaixão. No capítulo anterior, Jesus vê as multidões e se comove (Mt 9,36). O pré-texto hermenêutico da missão é a dor do povo — não o poder, não o prestígio, não a autopromoção. É da ferida que brota a missão. E é exatamente por isso que ela é incompatível com os projetos religiosos que transformam o Evangelho em palanque político, em vitrine espiritual ou em escada de ascensão social.

Mateus afirma que Jesus deu autoridade aos discípulos (Mt 10,1). Mas essa autoridade, não é o domínio sobre os outros, e sim o serviço à vida. Não é o poder que se impõe de fora, mas a força que brota de dentro, do ser tocado pela compaixão. Trata-se de expulsar os demônios que humilham os corpos, de curar as feridas que adoecem as almas, de libertar os corações tomados pela desesperança. Aqui não há espaço para o autoritarismo eclesiástico nem para o clericalismo que transforma o altar em trono. Trata-se de uma autoridade que nasce da compaixão e se expressa no cuidado. Como dizia João Crisóstomo: “Não é pelo poder que o pastor se impõe, mas pela vida que ele conduz.” A autoridade cristã é santidade visível, não cargo; é cuidado, não controle. O Evangelho é incompatível com qualquer forma de dominação — inclusive aquela que se disfarça de piedade, como vemos nas teologias do domínio e da prosperidade, que, no fundo, substituem o Reino de Deus por um império de interesses. É preciso nomear o que nos afasta do Evangelho: há uma teologia do sucesso que tem tomado o nome de Jesus em vão. Essa teologia, vestida com roupas novas, mas com o coração velho, afirma que Deus abençoa com riqueza, status, vitórias, aplausos. Prega um Cristo coach, um Deus investidor, um Reino com estética de shopping. Essa teologia, mesmo quando envernizada de carismatismo ou estética litúrgica tradicional, não passa de idolatria moderna: adora a si mesma, transforma o pobre em culpado e o rico em abençoado. Não há lugar nesse Evangelho para o Crucificado.

Jesus envia os discípulos às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mt 10,6). Ele não os lança ao mundo com ambições colonizadoras — como tantas missões na história fizeram, convertendo povos à força e confundindo Evangelho com civilização — mas os devolve ao próprio povo, ao seu chão, aos seus dramas. O Evangelho não tem bandeira nacional, nem projeto de hegemonia religiosa. Onde há colonização, não há Boa Nova. Onde há supremacia, não há discipulado. O Cristo missionário foi refugiado — não imperador. A pedagogia divina começa pelo próximo, pelo irmão, pelo vizinho ferido. E aqui também ressoa uma crítica necessária àqueles que sonham com missões na África, na Ásia, nos “grandes campos”, mas ignoram a dor de quem dorme sob a marquise do templo, de quem passa fome no ponto de ônibus, de quem sofre violência doméstica na casa ao lado. A missão não é fuga. É enraizamento. É fidelidade ao chão. O verdadeiro missionário não precisa de passaporte: ele precisa de compaixão. Como recorda a Conferência de Aparecida, “a missão é paradigma de toda a vida eclesial” (DAp, 370). Missão é comunhão, não expansão; é o Evangelho feito pele.

Nos sinóticos, a radicalidade da missão se repete (Mc 6,7-13; Lc 9,1-6). Levar quase nada, depender da hospitalidade, anunciar a conversão. Não há luxo, não há glamour, não há espetáculo. Há simplicidade. Mas o que vemos hoje são muitos “missionários” que recusam esse caminho: constroem impérios, acumulam riquezas, desfilam em programas de TV, vivem cercados por seguranças e filtros de Instagram. 

E o que anunciam? 

Um evangelho-mercadoria, que promete bênçãos para quem “faz aliança com Deus”, como se o amor divino fosse produto de contrato, e não de graça. Não basta ter milhões de seguidores se não se é seguidor do Crucificado. A missão não é show com plateia, nem performance para agradar multidões. Não é discurso viral, é vida entregue. A missão não se mede por engajamento, mas por compromisso. Em tempos de fé-espetáculo, muitos confundem carisma com carisma de palco. Pensam que missão é presença digital, que espiritualidade é filtro, e que discipulado se mede por curtidas. O Reino não precisa de influencers — precisa de testemunhas.

Jesus, no entanto, forma um grupo plural. Pedro, Mateus, Simão, Judas — diferentes, contraditórios, humanos. A missão é feita de diversidade, não de padronização. O Reino de Deus não homogeneíza. Respeita os temperamentos, valoriza as histórias, acolhe a diferença. O problema das igrejas não é a variedade de dons, mas a imposição de modelos clericalizados de ser cristão. Há mulheres proféticas sendo silenciadas por estruturas patriarcais. Há jovens com sede de justiça sendo acusados de rebeldia por padres autoritários. Há leigos e leigas vivendo o Evangelho nas ruas, mas sendo excluídos do altar por não “vestirem adequadamente”. Isso é religião do controle. Não é Boa Nova.

O Concílio Vaticano II, pela Lumen Gentium (n. 33), reforça que os leigos são chamados à santificação do mundo “a partir de dentro”. Não como figurantes da missa, mas como sujeitos da missão. Isso desmonta a religião que se esconde atrás do rito para não se comprometer com a vida. O clericalismo — denunciado com vigor pelo Papa Francisco — é a caricatura da Igreja do Evangelho: cria distância entre o povo e seus ministros, transforma o altar em balcão, a missão em privilégio. É contra isso que o Evangelho nos envia.

E nos envia hoje. Psicologicamente, a missão é um ato de cura mútua. Pedagogicamente, é um exercício de empatia. Filosoficamente, é uma escolha ética. Antropologicamente, é um retorno à nossa vocação de comunhão. O Reino de Deus não acontece num paraíso futuro, mas na encarnação presente. Onde há pão partilhado, onde há ferida curada, onde há opressor confrontado, aí o Reino pulsa.

Por isso, o anúncio do Reino não pode ser cúmplice das estruturas de opressão. Não pode pedir silêncio diante da injustiça. Não pode abençoar a violência nem justificar o poder dos dominadores. A missão de Jesus é incompatível com a extrema direita religiosa, com sua cruz vazia de amor e seu Cristo sem povo. A missão do Evangelho é ferida, é cruz, é serviço. Não é palco, nem palco político, nem altar enfeitado por vaidades.

Se escutamos esse Evangelho hoje, é porque ainda há multidões sem pastor. Ainda há ovelhas perdidas. Ainda há nomes esquecidos que precisam ser chamados de novo. E talvez sejamos nós os chamados. Com nossas contradições e limitações, mas também com nosso desejo sincero de amar como Jesus amou. O nome esquecido é também o trauma não acolhido, a identidade ferida, a vocação abortada pelas violências da história. Quando Deus chama, Ele resgata mais que a pessoa: resgata a história da pessoa. Missão é também dizer ao outro: “Teu nome ainda tem lugar no coração de Deus.”

É hora de ir. Mas ir com o nome que Deus nos deu, e não com os títulos que o mundo impõe. Ir com o coração ferido, mas cheio de compaixão. Ir não como donos da verdade, mas como quem foi encontrado pelo Amor. Porque só quem foi chamado pelo nome é capaz de anunciar o nome que salva: Jesus.

E sem carregar bolsas cheias de doutrinas vazias, sem precisar de passaporte para mostrar piedade. A missão começa onde estamos. No olhar que escuta. No gesto que liberta. No sim que se transforma em caminho.

Essa é a missão.

Esse é o Evangelho!



✍🏼 DNonato – Teólogo do Cotidiano

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