- A liturgia secreta da saudade
Entre pousos que não chegam, preces que não ecoam e canções que não se calam. Há despedidas que não rompem o ar com gritos. Elas sangram por dentro, num silêncio que ensurdece a alma. O mundo, indiferente, gira em seu compasso habitual, como se a ausência fosse apenas um detalhe – mas, em quem fica, tudo se interrompe. O tempo perde o rumo, os dias se estilhaçam, recusando qualquer encaixe. Há presenças que se tornam insistentes na ausência: recusam-se a partir por completo. Acomodam-se nas dobras da memória, no cheiro que resiste, no nome que ainda embarga a voz. A saudade, então, deixa de ser lembrança. Torna-se corpo: carne, osso e espera. Uma espera que não cessa. Uma prece que ninguém ouve.
Algumas lacunas tornam-se morada. Há quem parta sem fechar a porta, sem dizer adeus – e, no entanto, permaneça. Habita o canto da casa onde o silêncio respira, na peça de roupa que não se teve coragem de lavar, na caneca deixada sobre a mesa, no café passado todas as manhãs, como se o outro ainda fosse voltar. É um ritual. Uma missa silenciosa. A canção que insiste em tocar justo quando se tenta esquecer – ou talvez quando mais se precisa lembrar.
Cada gesto, o café passado, a peça de roupa intocada, o nome sussurrado, compõe uma liturgia secreta. É missa cotidiana, celebrada não com hóstias, mas com lágrimas. Um rito sem rito, onde a saudade é ministra, e o amor, sacramento. Para quem vive nesse território da ausência, certas canções não são apenas trilha sonora: são espelhos. Revelam o que as palavras não alcançam. É assim com “Esperando Aviões” e “Onde Deus Possa Me Ouvir”, de Vander Lee – melodias que não apenas embalam a dor, mas a encarnam. Na primeira, a dor se traduz numa espera sem fim. Como alguém que se perde na solidão de uma pista deserta, aguardando pousos que nunca acontecem:
“Cada dia que passo sem sua presença
Sou um presidiário cumprindo sentença
Sou um velho diário, perdido na areia, esperando que você me leia. Sou pista vazia esperando aviões.”
É a imagem de quem permanece à margem do que um dia foi promessa. Um amor que não aterrissou. A ausência como um castigo, uma sentença silenciosa. A dor, aqui, não grita: ela sussurra, sem descanso, até esgotar o fôlego da alma.
Na segunda canção, a solidão se transforma em prece. Um clamor exausto, um grito abafado:
“Meu amor! Deixa eu chorar até cansar, me leve pra qualquer lugar, Aonde Deus possa me ouvir.”
Ali, a alma, ferida, se recolhe. Não há mais certezas, só o desejo de ser escutada. A fé não é triunfante – é trêmula, vacilante, e por isso mesmo, mais autêntica. É a fé dos que choram sozinhos no escuro, dos que não recebem respostas, mas continuam rezando. Mesmo entre os escombros.
Na tradição cristã, a memória não é apenas uma lembrança: é sacramento. “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19) é mais que repetição — é atualização do amor que se fez ausência para nunca mais partir. A saudade, nesse contexto, é uma eucaristia afetiva. Um altar íntimo onde o amor continua sendo celebrado. São Paulo, escrevendo aos Coríntios, oferece um lampejo desse amor que sobrevive à ausência:
“O amor é paciente, o amor é bondoso. Não inveja, não se vangloria, não se orgulha. Não maltrata, não procura seus próprios interesses, não se ira facilmente, não guarda rancor. O amor não se alegra com a injustiça, mas se alegra com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13,4-7).
Não é um amor idealizado ou de contos de fadas. É o amor dos que permanecem quando tudo se desfaz. Que resiste sem alarde. Que espera, mesmo em lágrimas. Que, mesmo sangrando, continua amando – sem exigência de retorno, sem garantias. Apenas ama.
Como o salmista que clama: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim?” (Sl 13,1), e como quem chora sem voz:
“Por que estás abatida, ó minha alma? Espera em Deus” (Sl 42,5), a alma que ama também se interroga: até quando esta espera? Mas, logo depois, se agarra à esperança que renasce da memória: “Todavia, lembro-me do que pode me dar esperança” (Lm 3,21).
Esperar, então, não é rendição.
É insistência.
É fidelidade.
É um ato de coragem afetiva.
A sabedoria ancestral dos povos indígenas compreende isso com ternura. Entre os Guarani, o amor é uma travessia. Quando alguém parte, não some – apenas segue para a Terra Sem Males. Lá, o reencontro é possível. A saudade se transforma em canto, e os afetos reencontram seu lugar. A separação, nessa cosmovisão, não é fim – é passagem sagrada.
As canções de Vander Lee – assim como outras que nos embalam a alma – não apenas narram a dor: elas a sentem conosco. Como “Por Enquanto”, de Renato Russo: “Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar Que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre sempre acaba?”
Ou “Saudade”, de Fagner: “Saudade, palavra triste quando se perde um grande amor…” Ou ainda “Coração Selvagem”, de Belchior: “ Mas quando você me amar, me abrace e me beije bem devagar, que é para eu ter tempo, tempo de me apaixonar.”
E há dias em que cada célula do nosso corpo parece esperar por um reencontro impossível. O desejo não é grandioso. É singelo: contar a alguém – que já não está – como temos sobrevivido. Dizer que seguimos. Que ainda esperamos. Que, apesar de tudo, continuamos amando. Talvez essa seja a prece mais verdadeira: que, de algum modo, essa pessoa retorne.
Nem que seja num sonho.
Nem que seja num cheiro.
Nem que seja num fragmento de canção.
Num sopro.
Porque talvez, e só talvez, em algum recanto onde Deus possa nos ouvir, ou onde o tempo devolva o que nos foi arrancado, alguém escute a música da nossa saudade e volte. Nem que seja por um instante. Nem que seja apenas no altar secreto do coração, esse espaço onde a fé se ajoelha junto com a dor e canta, mesmo sem voz, a esperança.
Mas que volte.
Porque o amor – o verdadeiro amor – não termina.
Ele crê.
Ele espera.
Ele suporta.
Ele canta, mesmo em silêncio.
Ele voa, mesmo sem asas.
Ele pousa, mesmo no invisível.
Talvez – e ainda talvez – o amor seja
o único avião que nunca cai, o único voo que jamais será cancelado, a única chegada certa no tempo de Deus.
“E Deus enxugará dos seus olhos toda lágrima.
Não haverá mais morte, nem luto, nem pranto, nem dor...” (Ap 21,4)
E se houver um céu, ou apenas o sopro da lembrança, é lá que tudo se reencontra. No silêncio das preces que ninguém mais ouve. No canto das músicas que só o coração compreende. Na eternidade preservada no instante em que nos lembramos...
E algo em nós ainda teimosamente acredita.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, uma pista vazia esperando que o amor possa me ouvir.
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