segunda-feira, 2 de junho de 2025

Um breve olhar sobre João 17,1-11a


O texto de João 17,1-11a nos convida a mergulhar na essência da missão de Jesus e a repensar o papel da Igreja e do cristão no mundo atual. Longe de ser uma oração de fuga ou de elevação mística, ela se revela um clamor profundamente encarnado, que ecoa no limiar da cruz, em favor dos discípulos e de todos os que, por meio deles, crerão. É um convite à vida eterna, compreendida como a comunhão com o Deus verdadeiro e com a verdadeira humanidade, em contraposição à morte existencial gerada por sistemas iníquos e ideologias idolátricas.

Quando Jesus declara "Pai, chegou a hora", ele se refere a um momento que vai além do tempo cronológico. É o kairós, o tempo da plenitude da revelação, da glorificação que, paradoxalmente, se concretiza na cruz. Essa glorificação não se alinha aos critérios mundanos de poder e triunfo, mas se manifesta no amor que se doa até o fim, como atesta João 13,1. Nesse contexto, a vida eterna é definida como o "conhecer" o único Deus verdadeiro e Jesus Cristo (João 17,3). O verbo grego gignósko aqui não se refere a um conhecimento intelectual ou dogmático, mas a uma experiência vital de relação e aliança. Conhecer a Deus é amar como Ele ama, viver como Jesus viveu, traduzindo esse amor em gestos concretos de justiça, como o cuidado com os marginalizados e a luta contra a opressão.

A revelação do verdadeiro Deus é incompatível com os falsos deuses que surgem do mercado, do nacionalismo religioso, do autoritarismo travestido de moralidade. Pensemos no consumo desenfreado que define o valor das pessoas por bens materiais, no nacionalismo religioso que ergue muros e justifica a xenofobia em nome de uma suposta fé, ou no autoritarismo que, sob o manto da "moralidade" ou da "família tradicional", oprime minorias e silencia vozes dissonantes. Qualquer divindade que legitime a violência, exclua o diferente, sustente desigualdades ou exija sacrifícios humanos é, em sua essência, um ídolo. A oração de Jesus, portanto, é um grito profético contra os "deuses do Império", sejam eles os romanos do passado ou os neoliberais do presente, impulsionando-nos a uma solidariedade ativa com os que sofrem.

A exegese de João 17 revela que Jesus não pede que seus discípulos sejam retirados do mundo, mas que sejam guardados do Maligno (João 17,15). O "mundo" aqui não se refere ao planeta ou à humanidade, mas ao sistema organizado contra Deus, à lógica estrutural do pecado: a ordem injusta, a política excludente, a religião sem misericórdia. Os discípulos são chamados a estar presentes no mundo, inseridos, mas não cúmplices; testemunhas, não alienados. Isso exige discernimento e resistência, transformando a oração em ação que contesta as estruturas de pecado.

A história da Igreja, como aponta a sociologia da religião, mostra como o cristianismo institucional frequentemente cedeu à tentação do poder. O clericalismo, criticado pelo Papa Francisco, é um exemplo disso, transformando o serviço em privilégio e a profecia em silêncio cúmplice. Em contraste, Jesus entrega sua "glória" — a manifestação de Deus em sua vida e morte — a um grupo de discípulos frágeis e marginais, formando uma comunidade que é um corpo em missão, não uma fortaleza doutrinal. Essa missão se manifesta na capacidade de acolher o diferente e de ser voz para os silenciados, agindo de forma concreta em defesa da vida.

A antropologia crítica nos lembra que o ser humano se constitui na relação. Ninguém se salva sozinho, ninguém se realiza isolado. A oração de Jesus clama pela unidade: "para que sejam um como nós somos um" (João 17,11). No entanto, essa unidade não é uniformidade ou adesão cega à autoridade religiosa, mas comunhão no amor, na liberdade e na verdade. Como afirmou Santo Irineu, "A glória de Deus é o homem vivo, e a vida do homem é a visão de Deus". Qualquer projeto eclesial que suprima a liberdade, reduza a fé a obediência cega ou sustente estruturas de opressão trai a oração de Jesus, e falha em manifestar a verdade do Evangelho na vivência da fraternidade.

Neste espírito de comunhão e de escuta da oração de Jesus por unidade, celebramos de 1º a 8 de junho de 2025 a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, com o tema “Crês nisto?” (João 11,26)A pergunta dirigida por Jesus a Marta, diante do túmulo de Lázaro, ressoa como interpelação à fé de nossas comunidades: cremos, de fato, no poder da vida sobre a morte, da comunhão sobre a divisão, da fraternidade sobre o sectarismo? A unidade cristã, tão cara ao coração de Cristo, não pode ser postergada ou reduzida a gestos protocolares: ela deve ser buscada com coragem, humildade e abertura ao Espírito. Numa época marcada por polarizações religiosas e instrumentalizações da fé, este tempo ecumênico é chamado a ser profecia de reconciliação e testemunho do Reino.

A unidade pela qual Jesus ora é a comunhão na diversidade, como nas primeiras comunidades que tinham "um só coração e uma só alma" (Atos 4,32), mesmo entre diferentes culturas, línguas e histórias. A Igreja, como "sacramento universal da salvação" (LG 48), é chamada a ser sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o gênero humano, e não um "bunker doutrinal ou partido ideológico". Isso implica uma fé que se traduz em atos de inclusão e defesa da dignidade humana.

Na história da Igreja, sempre que o Reino de Deus foi confundido com o poder temporal, o Evangelho foi mutilado. Diante do avanço de uma extrema direita que manipula símbolos religiosos para justificar exclusão, violência e preconceito, a oração de Jesus nos convoca à vigilância. Não há neutralidade possível: "quem não está comigo, está contra mim" (Mateus 12,30). O discurso de ódio travestido de piedade não resiste ao crivo do Evangelho. A cruz de Cristo não é símbolo de domínio, mas de solidariedade com os crucificados da história, exigindo de nós uma posição clara e ativa contra a injustiça.

A oração de Jesus ganha vida nos mártires da fé e da justiça, como Dom Oscar Romero e Irmã Dorothy Stang, onde a glória de Deus brilha como resistência e amor. O Papa Francisco, ao propor uma Igreja sinodal, convida ao caminhar e discernir juntos, escutando, dialogando e acolhendo. A oração pela unidade é também um apelo à sinodalidade, como caminho eclesial que brota do próprio coração trinitário e que nos impulsiona a construir pontes, não muros. Documentos como Evangelii Gaudium e Fratelli Tutti denunciam o risco de uma religião funcional ao sistema. O Papa Francisco, em Laudato Si’, aponta para uma espiritualidade cristã que propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de se alegrar profundamente sem se obcecar pelo consumo. Isso só é possível quando a Igreja se molda pela lógica do Evangelho, e não pela lógica do mercado ou da geopolítica. É a santificação na verdade que nos liberta das mentiras e da idolatria que sustentam esses sistemas.

João 17 é também um convite à esperança escatológica. A glória de Deus já se manifesta na vida de Jesus, mas ainda está em processo. A Igreja, como casta meretrix — santa e pecadora —, é chamada a encarnar a oração de Jesus na história concreta, resistindo ao mundo sem sair dele, permanecendo unida sem ser alienada, vivendo a verdade sem instrumentalizá-la. Isso significa ser um povo que, por meio de suas ações, demonstra que a "tua Palavra é a verdade" (João 17,17), libertando-nos das narrativas falsas que promovem a opressão.

Em tempos de polarização, clericalismo, perseguições aos pobres e abuso da fé para fins políticos, a oração sacerdotal de Jesus deve ser nossa bússola. Que sejamos um povo inserido no mundo, mas não submisso a ele. Um povo livre, não domesticado. Um povo em comunhão com o Deus que dá a vida e com o ser humano que a compartilha. Que nossa fé não seja uma bolha de conforto, mas fermento de justiça e sal de resistência. Que nossa Igreja não seja trincheira de defesa, mas tenda aberta ao sopro do Espírito. Que esta oração nos desperte da anestesia espiritual. Que sejamos uma comunidade pascal no meio da noite, portadores de uma luz que não se impõe, mas se oferece. Em cada gesto de amor e em cada palavra de verdade, que a glória do Crucificado-Ressuscitado se manifeste.

-------------------

DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, na escola do Mestre que ora por nós, para que sejamos verdadeiros diante de Deus e irmãos no mundo.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.