A Justiça que Transforma: “Se a vossa justiça não for maior que a dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus.” (Mt 5,20)
Este trecho do Sermão da Montanha é uma crítica frontal ao legalismo religioso e uma convocação radical à justiça verdadeira — uma justiça que nasce do amor, da reconciliação e da coerência de vida. Jesus não propõe uma moral superior nos moldes farisaicos, mas uma ruptura epistemológica: não basta parecer justo — é preciso ser justo. Aqui, Jesus se revela como profeta, à semelhança de Amós (cf. Am 5,24) e Isaías (cf. Is 1,17), que denunciam a religião cúmplice da opressão e anunciam a conversão ao Deus que deseja misericórdia, não sacrifícios (cf. Os 6,6). A “justiça maior” que Jesus exige (Mt 5,20) é uma crítica contundente à religião institucionalizada, ao clericalismo que transforma o templo em mercado e o altar em palco. Denuncia, ainda hoje, os que manipulam a fé como ferramenta de dominação ideológica, sobretudo aqueles que a colocam a serviço da extrema direita e dos interesses do capital. Este farisaísmo contemporâneo se manifesta na piedade de fachada, na defesa seletiva da “família tradicional”, enquanto se criminalizam os pobres, excluem-se os diferentes, devastam-se as florestas e se militariza a fé.
Jesus se opõe ao uso instrumental da Lei. O mesmo Jesus que cura no sábado (cf. Mc 3,1-6), que toca os impuros (cf. Mc 1,40-45), que dialoga com samaritanos (cf. Jo 4,1-42), que denuncia os “sepulcros caiados” (cf. Mt 23,27), agora nos adverte: não basta não matar. É preciso não odiar, não insultar, não desejar a destruição do outro. O assassinato começa no coração — no olhar que despreza, na palavra que fere, no silêncio que exclui. Como afirma a Primeira Carta de João: “Quem odeia seu irmão é um homicida” (1Jo 3,15). Essa palavra de Jesus desarma toda religião baseada na performance exterior. A reconciliação torna-se critério essencial da espiritualidade:
“Vai primeiro reconciliar-te com teu irmão” (Mt 5,24).
A Eucaristia se torna vazia quando não brota de uma vida reconciliada. O culto é mentira quando celebrado entre ódios e muros. Como escreveu o Papa Francisco, de saudosa memória, na Evangelii Gaudium (n. 71): “A piedade desconectada da justiça é uma falsificação do Evangelho.”
Essa visão ecoa na filosofia contemporânea, particularmente na ética da alteridade de Emmanuel Lévinas, para quem o rosto do outro é o lugar da revelação de Deus. A sociologia crítica, como a de Pierre Bourdieu, nos ajuda a compreender como o campo religioso pode ser manipulado para manter privilégios, proteger hierarquias e perpetuar violências simbólicas — como se vê nas alianças entre setores religiosos e o bolsonarismo, ou em projetos de poder que negam os direitos humanos em nome de um “deus” patriarcal e beligerante.
A espiritualidade evangélica, no entanto, caminha na contramão dessa idolatria do poder. Jesus apresenta uma ética da ternura, da não violência, da paz ativa: “Felizes os que promovem a paz” (Mt 5,9).
Sua justiça é a dos pequenos, dos pacificadores, dos que perdoam, dos que têm fome e sede de justiça (cf. Mt 5,6). O Reino não pertence aos fortes, mas àqueles que se deixam tocar e transformar pela graça.
Não se pode celebrar a liturgia eucarística sem antes buscar a reconciliação com quem foi ferido. A liturgia se profana quando separada da justiça: “Eu não suporto vossas assembleias” (Am 5,21), “Ainda que multipliqueis as orações, não vos escutarei. Suas mãos estão cheias de sangue!” (Is 1,15).
Essas palavras são mais atuais que nunca, ressoando a profecia de Dom Oscar Romero, que advertia contra “missas injustas” e “semanas santas que não se praticam”. Para ele, a Eucaristia era o sacramento do Cristo que se faz presente nos sofrimentos dos pobres — e celebrá-la sem compromisso com a justiça era profanar o mistério da fé. A missa celebrada por mãos sujas de racismo, misoginia, homofobia ou indiferença aos pobres é idolatria. É idolatria política quando se benze a tortura e se canoniza a violência de Estado. Essa Palavra, proclamada na Quaresma e no Tempo Comum, nos lembra que a conversão não é um evento pontual, mas um modo de viver. A justiça do Reino se constrói no cotidiano: no gesto que acolhe, na palavra que edifica, na decisão de romper com o sistema de morte. O seguimento de Jesus exige uma justiça que desafia o status quo. Ele foi condenado pelos religiosos e políticos de seu tempo, porque sua justiça revelava a injustiça institucionalizada.
A proposta de Jesus é política — não no sentido partidário, mas no sentido mais profundo: ela reorganiza as relações sociais a partir dos pobres, dos excluídos, dos indesejados. É o oposto da religião dos fariseus e dos poderes que dizem “Senhor, Senhor”, mas negam o Cristo nos famintos, nos presos, nos indígenas, nos LGBTQIA+, nos favelados.
Hoje, mais do que nunca, essa Palavra clama por profetas. Gente como Dom Helder, Dom Pedro Casaldáliga, Irmã Dorothy, e tantos anônimos da fé que anunciam com a vida:
Não há Eucaristia sem justiça.
Não há fé sem reconciliação.
Não há Cristianismo verdadeiro sem compromisso com os últimos.
“Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.” (Mt 5,9)
DNonato - Teólogo do Cotidiano, com os pés no chão do povo e o coração no Evangelho de Jesus Cristo.
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