quinta-feira, 12 de junho de 2025

Um breve olhar sobre sobre Mateus 5,27-32.

 



O Evangelho de Mateus 5,27-32, proclamado liturgicamente na sexta-feira da 10ª semana do Tempo Comum nos anos ímpares e no sábado após a Quarta-feira de Cinzas, nos convida a revisitar com seriedade — mas também com misericórdia — a radicalidade evangélica proposta por Jesus diante do adultério e do repúdio. Jesus não suaviza a exigência do Reino. Ao contrário, Ele a aprofunda e a desloca do comportamento externo para o interior do coração: “Todo aquele que olhar para uma mulher com desejo impuro já cometeu adultério com ela em seu coração.” A proposta de Jesus é de conversão e não de exclusão; de cura e não de punição — uma visão de libertação que se contrapõe à opressão e à condenação.

Essa radicalidade, no entanto, tem sido mal interpretada por setores moralistas e clericais da Igreja que, ao longo da história, instrumentalizaram a moral sexual para controlar, excluir e condenar. Muitos desses grupos — especialmente os ligados à extrema-direita religiosa e política — usam esse trecho do Evangelho como arma para julgar os outros e reforçar uma doutrina de exclusão. Esquecem-se, porém, de que Jesus nunca usou a Lei para oprimir, mas para libertar.

O moralismo religioso tem se tornado uma caricatura da santidade, reduzindo a ética cristã à normatividade sexual e silenciando os pecados sociais — os verdadeiros adultérios contra o Evangelho: corrupção, exploração, injustiça, racismo, violência, ganância, misoginia, discriminação de gênero. Esses, sim, são pecados estruturais que ferem profundamente a dignidade humana e traem a aliança com Deus. E, no entanto, são frequentemente ocultados por líderes religiosos que preferem fazer guerra cultural em torno do corpo alheio enquanto escondem os pecados do sistema — e os abusos do próprio clero. Isso perpetua um outro adultério: trair o Cristo vivo para se aliar ao César da vez.

Entre os grupos mais vulnerabilizados por esse moralismo excludente estão os casais em segunda união. Estes irmãos e irmãs, muitas vezes afastados da participação sacramental e pastoral, carregam o estigma de um “adultério permanente”, como se o Evangelho não fosse caminho de reconciliação e acolhida. A interpretação legalista do texto de Mateus leva muitos a afirmar que não há salvação para quem se separou e formou uma nova família. Isso não é doutrina — é farisaísmo, pura e simplesmente.

O Papa Francisco, em Amoris Laetitia, rompe com essa lógica punitiva ao afirmar que “ninguém pode ser condenado para sempre, porque essa não é a lógica do Evangelho” (AL 297). A exortação convida a um discernimento pastoral atento, compassivo e pessoal, no qual se considera não apenas a norma, mas a história concreta, as limitações e as possibilidades de crescimento no amor de cada pessoa.

A fidelidade evangélica não se mede pela rigidez da lei, mas pela busca sincera da justiça, da misericórdia e da verdade. Como afirmou São João XXIII na abertura do Concílio Vaticano II: “Hoje a Igreja prefere usar o remédio da misericórdia ao invés de brandir as armas da severidade.”

Essa distorção moralista não nasce do Evangelho, mas do clericalismo — um sistema de poder piramidal e autorreferencial, que se apropria da Palavra para manter controle sobre os corpos, os afetos e as consciências, especialmente das mulheres. Sacrifica a compaixão em nome da ortodoxia, silencia a profecia com obediência cega. O resultado? Uma Igreja que fecha as portas a quem mais precisa: os pobres, os divorciados, os feridos, os pecadores — justamente os preferidos de Jesus.

Ao falar do adultério como realidade que começa no coração, Jesus desconstrói a moral aparente dos fariseus e aponta para uma conversão que é interior, mas também social. Ele não veio condenar a sexualidade, mas libertá-la do uso egoísta e opressor. A sexualidade, em sua plenitude e beleza, é dom de Deus — não deve ser reduzida a um campo de culpa e repressão. A perversão não está no desejo, mas na instrumentalização do outro, na negação da alteridade, na ruptura da justiça amorosa.

Num mundo onde a infidelidade estrutural ao Reino se expressa em sistemas que exploram corpos, destroem famílias pela fome e perpetuam violências cotidianas, a Igreja precisa levantar sua voz profética. No entanto, parte dela permanece calada — ou cúmplice —, encantada com o poder, com alianças políticas espúrias e com a idolatria da tradição.

É urgente uma pastoral que olhe para os casais em segunda união não com os olhos de um tribunal, mas com os olhos de Jesus diante da mulher adúltera (cf. Jo 8,1-11): “Ninguém te condenou? Eu também não te condeno. Vai, e não peques mais.” Esse gesto nos ensina que a fidelidade maior é à dignidade humana, e que a justiça do Reino se realiza não na condenação, mas na reintegração. Casais em segunda união muitas vezes demonstram maturidade afetiva, compromisso, amor profundo, dedicação aos filhos — sinais claros de uma nova vida que deve ser acolhida e discernida, não rechaçada sumariamente. Como recorda o Concílio Vaticano II em Gaudium et Spes (n. 24): “O ser humano só se realiza plenamente no dom sincero de si mesmo.” A sexualidade e o matrimônio são espaços onde esse dom se concretiza. Negar esse dom é negar a força reconciliadora da graça.

Portanto, a leitura de Mateus 5,27-32, celebrada nas liturgias da 10ª semana do Tempo Comum dos anos ímpares e no sábado após a Quarta-feira de Cinzas, deve ser entendida não como uma ameaça punitiva, mas como um convite radical à integridade amorosa, à responsabilidade relacional e à misericórdia ativa.

A Igreja não pode ser guardiã do moralismo, mas deve ser serva do Evangelho, profética diante dos poderes que violentam a dignidade humana e maternal diante das fragilidades dos seus filhos e filhas. Uma Igreja que se cala diante das injustiças sociais, mas grita contra os pecadores frágeis, é cúmplice dos fariseus de ontem e de hoje.

O Evangelho exige mais: exige justiça com ternura, verdade com caridade, fidelidade com liberdade. E, sobretudo, exige uma conversão pastoral que devolva a cada pessoa — inclusive aos casais em segunda união — o direito de participar plenamente da vida e do amor de Deus, sem medo, sem vergonha, sem exclusão.

O moralismo clerical não apenas oprime os corações, mas constrói uma Igreja que é fortaleza de exclusão, e não hospital de cura. A palavra de Jesus — “Aquele que estiver sem pecado, atire a primeira pedra” (cf. Jo 8,7) — precisa ser vivida com a mesma coragem com que se deve denunciar os abusos clericais que violentam corpos e consciências. A Igreja que deseja ser fiel ao Evangelho precisa ser radicalmente misericordiosa, atenta aos sinais dos tempos — especialmente à desigualdade estrutural que oprime milhões e perpetua uma religiosidade vazia, que serve mais aos poderosos do que ao Reino de Deus.

Nos documentos do Magistério, como Evangelii Gaudium (n. 235), o Papa Francisco insiste: é preciso uma conversão pastoral preocupada em gerar frutos de misericórdia, cuidado com os pobres e inclusão dos feridos. Ao contrário da rigidez de uma moral que separa, a Igreja deve viver o amor que une, a graça que cura, a justiça que liberta. Na visão ecumênica que deve orientar a Igreja, a busca pela unidade não se faz pela uniformidade de pensamento, mas pela acolhida mútua. A reflexão sobre o adultério deve, portanto, ser ampliada para além da condenação de atos isolados, considerando a estrutura social que envolve cada pessoa, suas histórias de dor, seus processos de cura e reintegração.

O Reino de Deus — onde os últimos serão os primeiros — exige que a Igreja seja esse lugar de acolhida para todos, sem exceção.

O desafio é grande, mas o caminho da misericórdia e da justiça nunca foi fácil. Que a Igreja, à luz do Evangelho de Mateus, se permita transformar-se, não apenas na celebração de ritos, mas na construção de uma comunidade que seja verdadeiramente sal da terra e luz do mundo.

Isso exige coragem profética — a mesma de Jesus —, que nos exorta a não temer os poderosos, a desafiar o clericalismo e a moral sexual excludente, e a denunciar, com firmeza e clareza, toda religiosidade que, em vez de aproximar de Deus, distancia os pobres da esperança do Reino.



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DNonato – Teólogo do Cotidiano, Na esperança de uma Igreja libertadora, misericordiosa e profética


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