O Evangelho de Mateus 5,33-37 é mais do que uma instrução moral acerca do uso da linguagem. Ele representa uma convocação radical à autenticidade, à fidelidade ao Reino de Deus e à transformação integral do ser humano em sua relação com a verdade. Jesus, ao afirmar: "Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. Tudo o que passar disso vem do Maligno", não está apenas proibindo o juramento em si, mas está revelando um princípio fundamental do discipulado cristão: a integridade interior como reflexo de uma adesão real ao Reino.
Na tradição judaica, os juramentos eram usados como garantia de veracidade, especialmente quando a palavra humana havia se tornado suspeita. A Lei mosaica já regulava os juramentos (cf. Lv 19,12; Nm 30,3; Dt 23,22), proibindo o uso do nome de Deus em vão e exigindo que fossem cumpridos. No entanto, o que vemos nos tempos de Jesus é um uso casuístico dos juramentos, permitindo que, dependendo da fórmula utilizada, a pessoa pudesse se esquivar da responsabilidade moral. Jesus denuncia esse sistema e aponta para algo mais profundo: uma sociedade onde a palavra não vale mais por si mesma está corrompida em sua base relacional.
Sob uma perspectiva hermenêutica, este trecho se insere no conjunto das "antíteses" do Sermão da Montanha (Mt 5,21-48), em que Jesus não revoga a Lei, mas a leva à plenitude (cf. Mt 5,17). O que está em jogo não é a letra da norma, mas o espírito que a anima. A ética do Reino é uma ética da transparência, da coerência entre o interior e o exterior, entre o discurso e a prática. Assim, a palavra que não reflete a verdade do coração é palavra vazia — e, portanto, cúmplice do Maligno.
Hoje, vivemos em um contexto onde a mentira se sofisticou. A duplicidade não se manifesta apenas no cotidiano interpessoal, mas também nas estruturas de poder político, religioso e midiático. A extrema-direita, por exemplo, tem se apropriado de símbolos religiosos e da linguagem cristã para legitimar projetos de poder autoritários e excludentes. Essa apropriação ideológica do cristianismo constitui, na prática, uma perversão da fé. Ao invocar o nome de Jesus para defender políticas que atentam contra os direitos humanos, a dignidade dos pobres, dos migrantes, das minorias e da criação, comete-se um pecado grave: instrumentaliza-se o Evangelho para fins mundanos.
Essa crítica está em consonância com a longa tradição profética das Escrituras. Os profetas denunciavam não apenas a idolatria religiosa, mas também a injustiça social (cf. Is 1,11-17; Jr 7,3-11; Am 5,21-24; Mq 6,6-8). Isaías acusa um povo que honra a Deus com os lábios, mas cujo coração está distante (Is 29,13). Jeremias censura o culto que ignora o cuidado com o órfão, a viúva e o estrangeiro (Jr 22,3). Miqueias resume: "Praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com teu Deus" (Mq 6,8).
O próprio Jesus retoma essa crítica contra o farisaísmo religioso, que privilegia a aparência em detrimento da verdade interior (Mt 23,25-28). A condenação aos que juram falsamente e usam a linguagem de forma hipócrita é também uma condenação à religião usada como fachada. Como bem afirmou o Papa Francisco, de saudosa memória, “não se pode servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24; cf. Evangelii Gaudium, n. 55). Francisco nos alertou sobre os riscos de uma fé aliada ao poder econômico e político, que perde sua dimensão profética e encarnada.
A Doutrina Social da Igreja, a partir de documentos como a Gaudium et Spes, a Evangelii Nuntiandi e a Laudato Si’, reforça essa visão: não há Evangelho sem compromisso com os pobres, com a justiça social e com a integridade da criação. O uso da linguagem, portanto, não é apenas uma questão ética, mas teológica e política. A palavra que sai da boca do cristão deve ser um reflexo da Palavra que se fez carne (Jo 1,14).
Vivemos tempos em que as fake news, os discursos de ódio e a manipulação da fé são amplamente utilizados para legitimar injustiças. A fidelidade ao Evangelho exige que nos posicionemos com clareza: nosso “sim” ao Reino de Deus deve implicar um “não” corajoso a todas as estruturas de mentira, opressão e idolatria. O Apóstolo Tiago ecoa Jesus ao afirmar: “Que o vosso sim seja sim, e o vosso não, não, para que não caiais em condenação” (Tg 5,12). Paulo, em Efésios 4,25, exorta: “Por isso, deixai a mentira e falai a verdade cada um com o seu próximo, porque somos membros uns dos outros.”
Importa reconhecer que as fake News — embora hoje impulsionadas por algoritmos e redes digitais — não são uma invenção da era da internet. Desde os tempos bíblicos, a mentira organizada foi usada como instrumento de poder e opressão. Os profetas eram frequentemente alvos de difamações e campanhas de descrédito por denunciarem as injustiças dos reis e sacerdotes (cf. Jr 20,7-10). Jesus, ele próprio, foi vítima de fake news políticas e religiosas ao ser acusado falsamente de blasfêmia e subversão contra Roma (cf. Lc 23,1-2). Ao longo da história, vimos o uso sistemático da calúnia para manipular as massas, legitimar perseguições — como na Inquisição, no antissemitismo cristão e na propaganda fascista — e silenciar vozes proféticas. Hoje, essas mentiras vêm embaladas em discursos religiosos e travestidas de verdade divina, mas continuam a servir aos mesmos interesses: manter o poder, oprimir os vulneráveis e desfigurar a imagem de Deus nos rostos humanos. Nesse sentido, a palavra se torna ato profético. Dizer a verdade em uma sociedade marcada pela mentira é uma forma de resistência. Como João Batista, somos chamados a preparar o caminho do Senhor com coragem (Lc 3,4-14), mesmo quando isso implica confronto com Herodes ou com o templo. O Evangelho não pode ser neutro diante da injustiça. O silêncio cúmplice, o discurso morno ou a ambiguidade frente ao mal são formas de traição à verdade de Cristo.
O clericalismo, igualmente, contribui para essa deformação da fé. Quando a autoridade religiosa se distancia da vida do povo, fecha-se em uma sacralidade autorreferencial e legitima poderes opressores, ela trai o Cristo Servo. O Papa Francisco denunciou o clericalismo como uma das maiores pragas da Igreja contemporânea (cf. Carta ao Povo de Deus, 2018). A verdadeira autoridade cristã é serviço, não dominação (cf. Mc 10,42-45). Por isso, é urgente uma espiritualidade da verdade e da coerência. O batismo nos configura a Cristo, que é Caminho, Verdade e Vida (Jo 14,6). Ser discípulo é viver com transparência, com retidão, com integridade. Não basta frequentar celebrações ou ostentar símbolos religiosos: é preciso encarnar o Evangelho no cotidiano, nas relações, nas escolhas políticas, no cuidado com os pobres e com a criação.
Como nos alerta o Apocalipse: “Conheço as tuas obras: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, porque és morno, estou para vomitar-te da minha boca” (Ap 3,15-16). O tempo da ambiguidade passou. É hora de assumir com coragem a vocação profética de dizer "sim" ao Reino e "não" a tudo que o contradiz.
Eis o tempo de levantar a voz como trombeta, denunciar a hipocrisia revestida de religiosidade, de romper com alianças cúmplices e proclamar a justiça do Reino. Que sejamos profetas da Palavra e da ação, testemunhas fiéis do Cristo que não pactua com a mentira, com a violência institucionalizada nem com a opressão justificada por discursos piedosos. É tempo de decisão. É tempo de coragem. É tempo de profecia.
Que o Espírito Santo, Espírito da Verdade (Jo 16,13), nos conduza em fidelidade e ousadia.
Amém.
DNonato – Teólogo do Cotidiano, em algum momento já foi vítima de fake news
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