quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXVI

É preciso morrer algumas vezes para, no fim, termosuma morte digna
De verdade, ninguém quer morrer — seja por medo, seja por comodismo. A vida não é um paraíso, mas também não é um inferno completo para que se deseje deixá-la assim, de imediato. Nos relatos de familiares de suicidas, nunca ouvimos que queriam morrer, mas que desejavam apagar a dor da frustração por quem se tornaram, ou por aquilo em que foram transformados.
Olhemos para os grandes da história: Gandhi, Luther King, Che Guevara, Lampião, e até Jesus de Nazaré (deixando um pouco de lado a questão religiosa). Pense também nos primeiros cristãos que receberam a morte como uma coroa, ou nos homens-bomba que se imolam pelo mundo. A morte é consequência de uma escolha — do método de vida que temos. Alguns morrem pela vida dos outros; outros matam junto com sua própria morte. Nem toda entrega é fruto do amor — há quem confunda sacrifício com destruição.
"Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo que cai na terra não morre, fica só; mas, se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24)     
Morrer é também um ato de fecundidade — quando não é fruto do desespero, mas da entrega radical. Morre quem se doa, quem rompe com o egoísmo, quem ousa amar até o fim. 
Ela tem muitos nomes: Azrael,
Anhangá, Apollyon, Tanatos, Śmierć, Pesta, Iamaraja… Na maioria, ela fala de um fim definitivo. As religiões, por sua vez, trazem suas lógicas dogmáticas: no fim, se ressuscita para o prêmio ou castigo; ou se volta em outro corpo, por carma; ou reencarna. Mas, com certeza, ninguém quer morrer. 
Nas culturas indígenas brasileiras, a morte é o retorno ao chão, à terra que nutriu o corpo, enquanto o espírito caminha para junto dos ancestrais que continuam a sonhar. Nas religiões afro-brasileiras, o retorno ao Orum é passagem para a ancestralidade que guia a vida. No judaísmo, a alma volta a Deus, aguardando a ressurreição e o juízo final. Em cada fé, a morte é ponte — e não muro.
Se a morte é ponte, por que tantos vivem como se fosse muro?
Morrer não é apenas o fim biológico, mas uma passagem simbólica, um chamado à transcendência. Todos morremos em muitos momentos — no fim de uma amizade, na perda de um amor, no desmoronar de um sonho. Somos mortos e matamos, vítimas e carrascos, na mesma vida.
E morrer de amor?
Só o amor tem poder de ressuscitar os mortos-vivos — aqueles que continuam caminhando, mas sem propósito, sem vínculos, sem entrega. Morrer para o medo é abrir espaço para um amor mais maduro. Morrer para o orgulho é reabrir a porta da reconciliação. 
Uma mãe que vê seu filho sofrendo ou morto sente junto aquela dor; um amigo sofre junto ao amigo; amantes morrem abraçados, mas não se deixam — porque se o amor é real, resiste. Morremos também como sociedade, quando naturalizamos a fome, a violência, o racismo e a destruição da terra. Cada indiferença é uma morte. Cada silêncio diante do sofrimento do outro é uma punhalada na esperança coletiva. Morre também aquele que cuida, que não aparece, que renuncia em silêncio para que outro tenha vida. A vida real está cheia dessas pequenas cruzes — e dessas discretas ressurreições. Mães que deixam de dormir, trabalhadores que se gastam sem reconhecimento, amigos que escutam sem exigir nada em troca: todos morrem um pouco, para que o outro viva melhor. E é nesse esvaziamento que brota o milagre da comunhão.
Estamos loucos para acabar com a dor no nosso egoísmo, loucos para viver o novo, mas infelizmente só recebemos facadas de quem julgávamos amigos. Morre sem sentido quem faz da vida algo sem sentido, quem se acovarda, rejeitando o amor que toca a alma.
 É nessa dor e nessa esperança que a canção de Bob Dylan ressoa, contando a história de um xerife que diz para sua mãe que está “batendo na porta do céu” (Knockin' on Heaven’s Door). Uma linguagem alegórica para narrar o fim de uma vida, mostrando que nada do que ele usou — suas armas, sua autoridade — servirá ali. Ali, a mãe representa a companheira, a amiga, aquelas pessoas que nos acompanham quando chega nossa hora de bater na porta do céu.
O xerife do Dylan entrega suas armas. E nós?
O que ainda seguramos com força? Orgulho?
Mágoas? Medos?
Quando a porta do céu se abre, seja no fim da vida ou no renascimento de uma nova etapa, não se entra carregado. Só entra quem aprende a deixar ir. No fim, o que importa não é o que carregamos, mas o que conseguimos deixar ir. Morrer é aprender a soltar. Morremos para que o amor possa nascer, e nascemos para que a morte nos ensine a viver.
E você, que está lendo essas palavras, que mortes ainda resiste?
Que amores ainda se recusa a viver?
Que portas ainda precisa abrir para entrar de vez na vida?
A vida é breve. Morremos quando calamos o afeto. Morremos quando adiamos a reconciliação. Morremos toda vez que dizemos “depois” ao amor.
Mas também nascemos: quando perdoamos. Quando soltamos o passado. Quando ousamos recomeçar.
No fim, somos todos sementes jogadas à terra. Uns resistem à morte e apodrecem sozinhos. Outros se deixam romper, e brotam em vida multiplicada. Que nossas mortes não sejam em vão. Que sejam férteis.
Morrer, no fim, é só o começo — para quem viveu de verdade. Porque a vida, afinal, é isso: o aprendizado constante de morrer para o que fomos, para que possamos nascer para o que ainda somos capazes de ser.

DNonato
Graduado em História, teólogo do cotidiano, querendo viver.



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