Para que sejam um como nós somos um”
No âmago da oração sacerdotal de Jesus, ecoa um grito que atravessa os tempos e perfura as estruturas da indiferença. Esta não é uma súplica qualquer, mas o testamento espiritual do Filho, a oração do Verbo encarnado no limiar da cruz. Jesus, o Sumo Sacerdote (cf. Hb 4,14), não ora por si, mas pelos seus; não busca segurança, mas consagração; não anseia poder, mas comunhão. Sua intercessão é um amor radical que deseja ver seus discípulos unidos, consagrados na verdade, enviados ao mundo como antítese das suas lógicas de exclusão, mentira e violência.
O contexto joanino nos insere em uma teologia profundamente relacional e trinitária. Quando Jesus diz “como nós somos um”, ele se refere à perichóresis divina – a dança eterna de amor entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Essa unidade não é fusão ou dominação, mas reciprocidade amorosa. O ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,26-27), carrega em si a vocação à comunhão. A solidão, portanto, não é da ordem da criação, mas da ruptura. “Não é bom que o ser humano esteja só” (Gn 2,18) é uma afirmação ontológica e profética.
Ao rogar por unidade, Jesus denuncia as divisões que fragmentam o corpo místico de Cristo (cf. 1Cor 1,10-13). Essas divisões não são apenas eclesiológicas, mas também sociais, culturais e econômicas. A oração de Cristo desvela o risco das falsas pertenças: o legalismo sem vida (cf. Mt 23,23), o moralismo sem misericórdia (cf. Os 6,6), a religião cúmplice do poder (cf. Am 5,21-24) e o culto que se divorcia da justiça (cf. Is 1,11-17). Contra esses desvios, o Evangelho clama por uma santidade enraizada na verdade (Jo 17,17) – não a verdade ideológica, mas a aletheia, a verdade desvelada pela vida, pela cruz, pela ressurreição.
“Santifica-os na verdade; a tua Palavra é a verdade” (Jo 17,17).
Santificar-se na verdade é mergulhar na Palavra viva que não se deixa aprisionar em dogmas petrificados, mas se revela no clamor dos pobres, no gemido da criação (cf. Rm 8,22), na luta das mulheres, dos povos originários, das juventudes marginalizadas. É viver a kenosis (cf. Fl 2,6-8), o esvaziamento do próprio ego, para que o outro tenha vida e vida em abundância (cf. Jo 10,10). O verdadeiro discipulado é sempre caminho de desinstalação: “Se alguém quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Lc 9,23).
“Não peço que os tires do mundo, mas que os guardes do Maligno” (Jo 17,15).
Jesus não propõe uma espiritualidade alienada ou escapista, mas uma presença transformadora. A consagração na verdade nos chama a viver no mundo sem ser do mundo (Jo 17,14.16), o que significa rejeitar a mundanidade espiritual – aquele modo de viver a fé como aparência, prestígio ou controle. Essa mundanidade, tantas vezes denunciada por Francisco de Roma, manifesta-se nos clericalismos autorreferenciais, nos discursos religiosos que flertam com o ódio, e na aliança entre altar e armas. A extrema direita cristã, por exemplo, sequestra o nome de Deus para justificar muros, extermínios e privilégios, esquecendo que o Filho de Deus nasceu num estábulo e foi refugiado (cf. Mt 2,13-15).
Francisco, bispo de Roma, cuja memória profética permanece como farol neste tempo, alertava com vigor: “O clericalismo leva à funcionalização do leigo, tratando-o como ‘ajudante do padre’. Mas não é isso que Deus quer. A Igreja é o Povo de Deus. Não podemos continuar reproduzindo estruturas hierárquicas que sufocam a sinodalidade” (Discurso ao CELAM, 2017).
Celebramos, neste ano, os 1700 anos do Concílio de Niceia (325–2025), o primeiro grande esforço da Igreja para afirmar a unidade da fé num tempo de disputas doutrinais e fragmentações internas. Ali, professou-se que o Filho é “Deus de Deus, Luz da Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro”, consubstancial ao Pai. A oração de Jesus por unidade, agora celebrada em chave sinodal, recorda que a verdadeira ortodoxia nasce da comunhão, não da imposição. A fidelidade ao Concílio de Niceia hoje não se mede por dogmas frios, mas pela prática de uma fé viva, enraizada no amor e na missão. Entre os dias 1º e 8 de junho de 2025, comunidades cristãs de todo o Brasil se reunirão para celebrar a Semana de Oração pela Unidade Cristã (SOUC), promovida pelo CONIC, sob o tema “Crês nisso?” (Jo 11,26). Inspirada no diálogo entre Jesus e Marta, a Semana nos chama a uma fé que rompe as sepulturas do medo, da intolerância e do sectarismo. A oração de Jesus é, portanto, profética: revela o projeto do Reino e desmascara os impérios. Ela nos reconcilia com a missão: “Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17,18).
A Igreja, Povo de Deus em marcha, é chamada a ser fermento no meio da massa (cf. Mt 13,33), luz nas trevas da história (cf. Jo 1,5), sal que conserva a dignidade humana (cf. Mt 5,13). Sua vocação é a de denunciar o racismo estrutural, o feminicídio, a homofobia, a devastação da Casa Comum (cf. LS 2), e anunciar um novo céu e uma nova terra (cf. Ap 21,1) – onde as lágrimas dos crucificados serão enxugadas pela mão de Deus (cf. Ap 21,4)
Como bem afirmou o Documento de Aparecida: “A santidade não afasta do mundo, mas nos faz mais humanos e mais próximos dos outros, especialmente dos que sofrem” (DAp 148).
E Medellín foi ainda mais incisivo:
“Não se pode amar a Deus que não se vê, se não se ama o irmão que se vê. A miséria de grandes massas humanas é um escândalo que clama ao céu” (Medellín, Justiça, n. 1-2)
Ser enviado ao mundo é tornar-se sinal de esperança nas periferias existenciais. É escutar os clamores dos Lázaros de hoje (cf. Lc 16,19-31), visitar os encarcerados (cf. Mt 25,36), lutar pelos direitos dos sem-terra e sem-teto, defender os povos indígenas da expropriação colonialista. É amar como Jesus amou (cf. Jo 13,34), perdoar como Ele perdoou (cf. Lc 23,34), e resistir ao Maligno com a força da Palavra (cf. Mt 4,1-11). A espiritualidade cristã autêntica é sempre encarnada, política no sentido mais evangélico: comprometida com a vida, a justiça, a paz e a misericórdia.
Como recordava Francisco, cuja voz ainda ressoa: “O grande inimigo da espiritualidade não é o ateísmo, mas o mundanismo espiritual, que se disfarça de religiosidade e vive da aparência, sem tocar a carne sofredora de Cristo nos irmãos” (Gaudete et Exsultate, 37).
A unidade pela qual Jesus ora não é mera uniformidade doutrinal, mas uma sinfonia de vozes que se harmonizam no Espírito. Trata-se de um corpo de muitos membros (cf. 1Cor 12,12-27), de uma Igreja em saída (cf. EG 20), que rompe com os esquemas de poder e faz da mesa comum o lugar da revelação pascal. A mesa é sempre lugar de encontro, de perdão, de partilha – como em Emaús (cf. Lc 24,30-32), como nas comunidades primitivas (cf. At 2,42-47), como nas aldeias esquecidas do Brasil profundo. A oração de Jesus é também denúncia e convocação. Denúncia de um cristianismo sem cruz, sem cruzamento com os dramas humanos. Convocação a uma fé viva, profética, reconciliada com a história, mas inconformada com a injustiça. Fé que não busca a Deus no espetáculo, mas no cotidiano sofrido do povo. Fé que reconhece que o Espírito sopra onde quer (cf. Jo 3,8), inclusive fora dos muros eclesiásticos, nas culturas populares, nos clamores dos oprimidos, nas lutas por libertação.
Que sejamos um. Não por força, mas por graça. Não por doutrina imposta, mas por amor compartilhado. Não por estruturas rígidas, mas pelo Espírito que sopra sobre os ossos ressequidos (cf. Ez 37,1-14) e faz reviver a esperança.
“Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17,18).
Que essa missão nos consagre como povo santo, em marcha, na contramão da indiferença, unidos na escuta do Verbo, na defesa dos pobres e na santidade que transforma o mundo desde as periferias.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, Discípulo do Verbo na poeira dos caminhos. Fermento de comunhão na massa sofrida do mundo. Na contramão da indiferença, a favor do Reino.
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