Ao meditarmos esse chamado, recordamos o prólogo do Evangelho de João, que revela a origem e a eternidade dessa comunhão: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus” (João 1,1). O Verbo, que é Jesus, não habita apenas a unidade trinitária, mas é a expressão viva e criadora desse amor. Assim, a oração de Jesus ecoa o “princípio” divino que sustenta toda a criação (João 1,3), convidando-nos a uma comunhão radical, que ultrapassa o tempo e as circunstâncias humanas.
Entretanto, essa união desejada por Jesus vai além de uma mera concordância ou convivência social superficial. Trata-se de uma imersão profunda no mistério do amor trinitário, onde a unidade se concretiza na caridade que edifica e reconcilia (cf. Efésios 4,4-6). O Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, afirma que o Espírito Santo é o “princípio e fonte da unidade da Igreja” — uma unidade sagrada, pela qual somos chamados a testemunhar no mundo. São Cipriano já nos alertava: “não pode haver Igreja onde não há unidade” (Carta 66). A comunidade dos fiéis deve refletir a comunhão viva entre o Pai e o Filho, através do Espírito (cf. 1 Coríntios 12,12-27). Contudo, esse convite de Jesus nos confronta com a dura realidade de uma cultura fragmentada. A antropologia nos ensina que o ser humano é essencialmente relacional (cf. Gênesis 2,18), criado para viver em comunhão. Quando essa vocação é negada — seja pelo individualismo desenfreado, pela lógica do lucro neoliberal ou pela exclusão social — a consequência é solidão, vazio e perda de sentido (cf. Salmos 68,7-8). A sociologia confirma que esses processos fragilizam os vínculos comunitários, gerando tensões, preconceitos e violências que, sob o pretexto de falsas seguranças, alimentam ideologias de exclusão e erguem muros de intolerância. Nesse cenário, a extrema direita manipula ansiedades para dividir, negando o fundamento evangélico da comunhão (cf. Mateus 25,40).
Na filosofia, esse drama existencial encontra eco na crítica à cultura do esquecimento do ser, que reduz o humano a mero recurso (cf. Heidegger). O Evangelho, ao contrário, nos chama a reencontrar o ser na comunhão, a realizar nossa identidade na relação com o outro, à imagem da comunhão trinitária (cf. Romanos 12,4-5). Teologicamente, a oração de Jesus em João 17 é o coração da sua missão: conduzir-nos à vida plena, que consiste em permanecer no amor recíproco entre o Pai e o Filho (cf. João 15,9-12). Essa vida não é um ideal abstrato, mas uma exigência concreta para a missão da Igreja, como nos lembrou o Papa Francisco em Evangelii Gaudium (n. 99), ressaltando que a Igreja “não pode estar fechada, dividida ou vivendo isolada”. Porém, diante desse chamado, denunciamos o vazio de fé que habita muitas práticas religiosas, onde os ritos perdem significado e a vivência do Evangelho se esvazia em discursos ideológicos desconectados do amor de Deus (cf. Isaías 29,13). O clericalismo, que o Papa Francisco combateu com vigor, essa chaga que paralisa a vida da Igreja, transformando-a em uma estrutura autoritária e excludente, em vez de uma casa de comunhão e serviço (cf. Mateus 23,1-12). A verdadeira autoridade cristã nasce do serviço humilde e da entrega, e não do poder ou da rigidez (cf. Marcos 10,42-45).
Assim, a oração de Jesus ilumina e denuncia o fechamento e a fragmentação que sufocam a Igreja e o mundo. Ela é um chamado urgente a resistir à cultura do medo, da exclusão e da intolerância, para construir uma comunhão que acolha a diversidade, fortaleça a escuta e viva a caridade, formando o corpo de Cristo em unidade (cf. 1 Coríntios 13). Que essa oração nos mova a sermos irmãos e irmãs que buscam o Reino da justiça, da paz e do amor (cf. Mateus 5,9), denunciando os poderes que se levantam contra a unidade e a vida plena, acolhendo a voz dos marginalizados e rompendo com o clericalismo que os silencia (cf. Mateus 25,40). Que a Igreja se torne, enfim, verdadeira casa de comunhão, testemunho vivo do amor trinitário para um mundo fragmentado e sedento de esperança.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado, semeador da unidade num mundo fragmentado.
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