«Simão, filho de João, tu amas-Me?» (Jo 21,15)
A pergunta de Jesus a Pedro, feita três vezes diante do lago da Galileia, ecoa não como uma cobrança, mas como uma convocação existencial. Não há julgamento explícito, não há exigência por impecabilidade. Há, sim, a interpelação que brota do amor que restaura, que confia, que envia. Pedro, o mesmo que negara o Mestre na noite da paixão, agora é reerguido pela presença viva do Ressuscitado. E, com a voz embargada pela memória da própria fraqueza, responde: «Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que te amo». Não justifica o passado. Não promete fidelidade com arrogância. Apenas confessa, com humildade, o que resta quando tudo falha: o amor. Este é o ponto de partida da missão e do discipulado: não o mérito, mas a confiança no amor. Não a perfeição, mas a entrega. Cristo não pergunta por diplomas, funções, doutrinas ou prestígio. Pergunta por amor. E o amor verdadeiro, como ensina São Paulo, é paciente, é bondoso, não se vangloria, não se orgulha (cf. 1Cor 13,4). É esse amor que faz da Igreja uma comunidade de irmãos, não uma estrutura de dominação. Quando o Ressuscitado diz a Pedro: «Apascenta as minhas ovelhas», entrega-lhe a missão pastoral não como exercício de poder, mas como serviço que brota da experiência de ter sido amado e perdoado.
Pedro, restaurado pelo olhar de Cristo, se converte também em símbolo de uma Igreja constantemente chamada à conversão. Como escreveu ele mesmo: “Vós também, como pedras vivas, formais um edifício espiritual, um sacerdócio santo, a fim de oferecer sacrifícios espirituais agradáveis a Deus por Jesus Cristo” (1Pd 2,5). Não há Igreja sem pedras frágeis. Não há comunidade sem humanidade ferida. O discipulado é feito de altos e baixos, não de linhas retas. É peregrinação na história, com quedas, medos e recomeços. Assim foi com Pedro. Assim é conosco.
Nosso tempo exige uma escuta nova dessa pergunta de Jesus: «Tu me amas?» O amor que se espera não é sentimento estético, nem devoção superficial. É amor comprometido com a justiça, com os pobres, com a verdade do Evangelho. Em tempos de ascensão de ideologias autoritárias que se disfarçam de religião, essa pergunta adquire tom profético. A extrema-direita, ao instrumentalizar a fé, transforma o Evangelho em ideologia de exclusão. Banaliza a cruz, esvazia a caridade e distorce a missão de Jesus. É urgente dizer com clareza: não é cristão aquele que odeia, que arma, que discrimina, que despreza os pequenos e que se curva aos poderosos.
A Igreja não pode ceder à sedução do poder. O clericalismo, denunciado com vigor pelo Papa Francisco até seu último respiro, permanece como uma das maiores tentações e enfermidades eclesiais. “O clericalismo anula o batismo do povo de Deus”, dizia ele. Coloca os ministros acima da comunidade, cria castas e sacraliza estruturas injustas. Como afirmava o Documento de Puebla, “a pior discriminação é aquela que exclui o pobre do acesso à espiritualidade”. O Evangelho não tolera castas, mas funda fraternidade. E onde há fraternidade, há sinodalidade: escuta, discernimento, corresponsabilidade.
É esse o caminho reafirmado agora, com vigor renovado, pelo Papa Leão XIV, que dá continuidade ao espírito do Concílio Vaticano II e à ousadia evangélica de Francisco. Leão XIV vem recordando à Igreja que a missão não se realiza a partir do centro, mas a partir das periferias; não no isolamento palaciano, mas na partilha com os esquecidos da terra. Sua palavra retoma o coração da fé cristã: Deus não está nos bastidores do poder, mas nas bordas do mundo, onde a carne ferida de Cristo continua a ser crucificada.
A teologia nos ensina que Deus se revela na história, e a antropologia cristã nos mostra que o humano é lugar teológico. Logo, todo projeto que despreza a dignidade humana e reduz o outro a inimigo contradiz frontalmente a revelação de um Deus que é amor (cf. 1Jo 4,8). O amor a Cristo se mede pelo amor aos seus — especialmente aos que foram marginalizados, silenciados ou esquecidos. Por isso, a missão da Igreja não pode ser cúmplice de regimes violentos nem de discursos que demonizam os pobres, os migrantes, as mulheres, os indígenas, os LGBTQIA+ ou os trabalhadores. A fidelidade cristã não está garantida pela doutrina, mas pelo seguimento. Não basta confessar com os lábios; é preciso viver como Ele viveu. Como escreveu Bento XVI: “No início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa” (Deus Caritas Est, 1). E essa Pessoa nos pergunta, todos os dias: «Tu me amas?» O amor é, pois, critério de autenticidade e de discernimento. Fora do amor, tudo é ruído.
Hoje, renovamos nossa resposta: “Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te amo.” Mas sabemos também que esse amor nos compromete. Como Igreja sinodal, missionária e profética, não podemos amar Jesus sem amar o mundo que Ele amou até o fim (cf. Jo 13,1). O amor vivido e confessado exige de nós coragem para denunciar injustiças, para servir sem honrarias, para dar a vida com generosidade.Sigamos, como Pedro, não por causa da força de nossas promessas, mas sustentados pela fidelidade de um Deus que nos ama até quando O negamos. O Ressuscitado caminha conosco, refaz as pontes quebradas, acende fogueiras na praia e nos convida novamente: “Segue-Me” (Jo 21,19). A pergunta d’Ele não cessa. E a resposta, que damos com a vida, faz da nossa fragilidade lugar de graça, da noswsa pobreza, lugar de envio, e do nosso amor, ainda vacilante, a pedra sobre a qual Ele segue construindo a sua Igreja.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, À sombra da Palavra, à escuta do Espírito, a caminho com o Povo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.