Essa resposta de Jesus não é um mero desvio de assunto; é uma convocação a uma maturidade espiritual que rompe com a lógica da comparação e da competitividade. Numa sociedade marcada pelo narcisismo, pela cultura do desempenho e pela obsessão com status e influência – também presentes nas estruturas eclesiásticas e religiosas –, o seguimento de Jesus nos chama a nos libertar da vaidade de querermos saber mais sobre o outro do que sobre o nosso próprio caminho.
Mas vale recordar: tudo isso se passa ao redor de uma fogueira acesa pelo próprio Jesus (Jo 21,9). Não é um detalhe trivial. No simbolismo bíblico, o fogo é presença divina, memória da aliança, lugar de epifania e purificação. E essa fogueira da manhã, acesa na luz do dia, dialoga diretamente com outra fogueira: a da noite escura da negação (Jo 18,18). Ali, Pedro aquecia-se no pátio do sumo sacerdote, envolto pelas sombras da noite, tomado pelo medo, pela insegurança, pela pressão social. Ao redor do fogo, negou conhecer Aquele a quem prometera fidelidade até o fim.
Agora, ao amanhecer, Pedro se encontra novamente diante de uma fogueira — mas desta vez, não nas trevas da covardia, e sim na claridade da graça. A noite da traição dá lugar à manhã da reconciliação. O fogo que antes aquecia um coração dividido, agora aquece um coração restaurado. Jesus não o confronta com acusações, mas o reconfigura com amor. E o lugar da queda se torna o lugar do recomeço. A psicologia existencial nos ajuda a compreender que a memória do trauma só é curada quando revisitamos o espaço ferido com um novo sentido. A cena da fogueira matinal revela esse processo espiritual e humano de ressignificação.
A pedagogia do Ressuscitado é profundamente simbólica e terapêutica: ele não anula o passado, mas o integra, purifica e transfigura. É no mesmo espaço simbólico que a dor é visitada para se tornar graça. Pedro não apaga a noite que viveu, mas a transforma com o sol da presença de Cristo ressuscitado. Onde antes houve medo, agora há missão. Onde houve negação, agora há apascentamento.
Na raiz da pergunta de Pedro ecoa uma tentação antiga e humana: a de medir nosso valor em relação ao outro. A antropologia nos mostra como o desejo mimético (René Girard) gera rivalidade, conflitos e até violência, quando desejamos não apenas o que o outro tem, mas desejamos ser o outro. A pergunta “E este, que será dele?” carrega não apenas curiosidade, mas a insegurança de quem ainda mede sua própria dignidade pela comparação. O Evangelho, porém, propõe outra lógica: cada discípulo é chamado a seguir Jesus a partir de sua própria história, vocação e resposta. Não há lugar para competição entre irmãos e irmãs no discipulado.
O discípulo amado representa o seguimento silencioso, fiel e contemplativo, que reconhece Jesus no partir do pão, que permanece aos pés da cruz e que não se coloca em evidência, mas testemunha com profundidade. Pedro, por sua vez, representa o seguimento ativo, comunitário, pastoral. Ambos são necessários à Igreja, e nenhum é superior ao outro. A diversidade de carismas e vocações só é fecunda quando está submetida ao único critério do amor: “como eu vos amei” (Jo 13,34).
Na tradição da Igreja, esse trecho final do Evangelho de João é também uma exortação à humildade e à fidelidade. A resposta de Jesus a Pedro desmonta qualquer tentação de clericalismo, autoritarismo ou pretensão de controle sobre os desígnios divinos. É uma crítica radical às hierarquias eclesiásticas que, em nome de Deus, julgam, comparam e subjugam. O verdadeiro pastoreio é o que se exercita na horizontalidade do serviço e não na verticalidade do poder. O Papa Francisco insistia que “não se pode ser pastor com os modos dos chefes do mundo, que oprimem e dominam”, mas com os modos do Servo que lava os pés dos seus.
Esse texto, portanto, interpela a Igreja e os cristãos em tempos de populismos religiosos, fundamentalismos teológicos e alianças espúrias com a extrema direita. A Igreja que se põe ao lado do poder para garantir seus privilégios trai o Evangelho. A religião que silencia diante das injustiças, que relativiza a dor dos pobres e defende o armamento da população em nome de uma suposta segurança, não segue Jesus – segue César. O Evangelho, ao contrário, é um projeto de fraternidade, cuidado, justiça e entrega de vida.
Na véspera da Solenidade de Pentecostes, esse Evangelho nos coloca diante do sopro do Espírito que sopra onde quer (Jo 3,8), e que sopra também ao redor da fogueira. Pentecostes não é espetáculo de fogo de artifício, mas labareda que queima as máscaras do ego e acende o dom da verdade. O Espírito não se derrama sobre estruturas de dominação, mas sobre comunidades que, como ao redor daquela fogueira, partilham pão, escutam a Palavra e reencontram o sentido da missão.
João 21,24-25 encerra com uma nota poética e poderosa: “Há ainda muitas outras coisas que Jesus fez. Se fossem todas escritas, penso que nem o mundo inteiro poderia conter os livros que se escreveriam.” Essa afirmação é mais que hipérbole literária: é um convite à abertura do coração para a inesgotável experiência do Cristo vivo na história, nas culturas, nos povos e nas margens. O seguimento de Jesus não se encerra num livro, numa doutrina ou numa fórmula moral; ele continua acontecendo em cada gesto de amor, em cada denúncia profética, em cada lágrima consolada.
A teologia latino-americana, especialmente nas intuições das Conferências do CELAM (Medellín, Puebla, Aparecida), nos lembra que o Evangelho se torna verdade na vida do povo, sobretudo dos pobres e descartados. João escreve para dar testemunho (Jo 21,24), não para fundar um tribunal religioso ou uma casta espiritual. O Evangelho não é um compêndio de regras morais ou rituais, mas o anúncio da Vida que vence a morte, do amor que derruba muros, da justiça que se encarna na história concreta dos povos.
Portanto, ao concluir a leitura do Evangelho de João, deixemo-nos confrontar por essa pergunta sagrada: “Tu, segue-me”. Em tempos de espetacularização da fé, de pastores-celebridades e de Igrejas-empresa, essa convocação nos devolve ao essencial: seguir Jesus não é conquistar aplausos ou posições, mas perder-se no amor, entregar-se na gratuidade, viver na verdade e testemunhar o Reino.
O que importa não é o caminho do outro, mas a fidelidade no nosso. Que nosso olhar não se perca na comparação, mas permaneça fixo naquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida. Que o Espírito nos conduza, como comunidade pascal, a ser sinal vivo do Cristo ressuscitado na história – e não meros repetidores de fórmulas mortas.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, Inspirado no Evangelho, na Teologia da Libertação e na fidelidade ao povo de Deus em sua peregrinação esperançosa.
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