Por DNonato – Teólogo do Cotidiano
O Brasil da década de 1970, embora já em transformação, ainda era profundamente marcado por um imaginário patriarcal, em que o homem era educado para dominar, e não para sentir. A masculinidade era medida por força e controle, e o amor confundido com posse. O “crime de honra” era tolerado, romantizado e, muitas vezes, legitimado. A Ditadura Militar (1964–1985), ao reforçar a lógica da obediência e do autoritarismo, encontrava eco dentro dos lares. O silêncio doméstico era parte da engrenagem repressiva. Narrativas como a de My Mistake emergem desse solo: o ciúmes e a dor da traição são tratados não como sentimentos a serem elaborados, mas como justificativas para a violência. A morte da esposa torna-se, assim, a consequência trágica de uma cultura que ainda confunde virilidade com brutalidade.
Sociologicamente, essa masculinidade hegemônica se alimenta da socialização patriarcal, que desde a infância ensina meninos a suprimir vulnerabilidades, a não chorar, a “ser forte” a qualquer custo. Esse modelo, sustentado por tradições familiares e por uma cultura que naturaliza o controle masculino, gera uma dicotomia fatal: a força se apresenta como poder sobre o outro e não como autocontrole ou empatia. Dados recentes confirmam a persistência dessa lógica: índices alarmantes de violência doméstica e feminicídio no Brasil revelam que esse padrão não foi superado; ao mesmo tempo, o elevado número de suicídios entre homens expõe o custo emocional dessa repressão.
Psicologicamente, a raiz do crime narrado em My Mistake está na incapacidade emocional de lidar com sentimentos intensos como ciúme, vergonha e rejeição. Quando o sujeito não encontra canais saudáveis para expressar sua dor, ela se converte em raiva e violência. A vergonha tóxica, que paralisa o sujeito na culpa e no isolamento, impede que haja reparação e crescimento. Sem ferramentas para elaborar o sofrimento, o homem é preso num ciclo que pode levar ao extremo da destruição — tanto do outro quanto de si mesmo.
Culturalmente, essa masculinidade violenta é muitas vezes reforçada por discursos religiosos e políticos conservadores que naturalizam a submissão feminina e romantizam o “controle” como expressão legítima de amor. O clericalismo e a fé vazia reproduzem, sem crítica, modelos autoritários e excludentes que aprisionam afetos e ampliam as violências simbólicas e reais. É urgente uma releitura ética das tradições espirituais que valorize a vulnerabilidade, a justiça e o amor libertador.
Essa lógica do “melhor matar que perder” não é exclusiva do Ocidente. Ela ressoa, por exemplo, na tradição japonesa do seppuku — o ritual samurai de suicídio como forma de preservar a honra após uma falha. Em diversos contextos culturais ao redor do mundo, a honra é colocada acima da vida, e a dor, em vez de ser elaborada, é encerrada num gesto final. O desafio está em promover culturas que valorizem a dignidade de permanecer inteiro diante da perda, capazes de viver a dor sem destruí-la.
Décadas depois, a música brasileira voltaria a ecoar os efeitos dessa masculinidade doente — mas, desta vez, pela voz feminina ferida, ainda que velada. Em 1986, a banda Nenhum de Nós lançava Camila, Camila, também baseada em fatos reais, que narra a história de uma jovem vítima de violência doméstica e psicológica. A letra é pungente: "E eu que tenho medo até de suas mãos / Mas o ódio cega e você não percebe... Da vergonha do espelho / Naquelas marcas... E eu que tinha apenas dezessete anos / Baixava a minha cabeça pra tudo..."
Se em My Mistake ouvimos a voz do homem que destrói e depois lamenta, em Camila escutamos, ainda que por entre silêncios, a voz da mulher que sobrevive à tentativa de apagamento. Ela não é assassinada fisicamente, mas é marcada em sua dignidade, no corpo e na alma. A juventude, a submissão, a vigilância constante: Camila é o retrato de tantas mulheres que não têm voz nem escolha, silenciadas por uma masculinidade que vigia, controla, machuca.Na sabedoria popular feminina, ecoa um ditado provocador: “mulher não trai, se vinga.” Longe de incentivar a retaliação, essa frase escancara a desigualdade estrutural. Em muitos contextos, o gesto da mulher que “trai” é, na verdade, uma resposta tardia a anos de humilhação e apagamento. Não é desejo de vingança, mas um grito por dignidade, uma reação à asfixia emocional. Porém, mesmo essa reação, quando mal compreendida, pode ser usada como justificativa para novas violências. O ciclo se fecha — e, tragicamente, se repete.
A mulher que reage à opressão, como Camila, carrega em si a força de Iansã — orixá dos ventos, da rebeldia e da justiça, na cosmologia afro-brasileira. Ela não destrói por vingança, mas se levanta para não morrer em silêncio. Sua “traição”, muitas vezes, é apenas um gesto desesperado de sobrevivência. Porque viver inteira, para muitas, já é um ato de guerra.
A arte, especialmente a música popular, tem sido um espaço de denúncia, lamento e resistência frente a essas violências. A confissão e o lamento, como em My Mistake e Camila, funcionam como espelhos que revelam feridas sociais e pessoais, convidando à empatia e à reflexão crítica. A arte, assim, não apenas registra, mas pode ser agente de transformação social e cultural.
É nesse ponto que se impõe a necessidade de um deslocamento ético: a dor não justifica a violência. A frustração, por maior que seja, não dá licença para destruir o outro. A verdadeira coragem não está em reagir, mas em conter. Não em punir, mas em elaborar.A maior coragem talvez seja essa: suportar o peso dos sentimentos da derrota, da perda, do amor rejeitado — mas seguir livre.
Não matar por fora e, sobretudo, não matar por dentro. Porque essa é a pior morte: aquela que damos a nós mesmos quando deixamos que a dor nos endureça, nos feche, nos destrua em silêncio.
Como diz um provérbio iorubá: “aquele que segura sua raiva é mais forte que o guerreiro que vence cem batalhas.” A bravura verdadeira é interior. Ela não se revela pela força da resposta, mas pela grandeza de quem, mesmo dilacerado, escolhe não dilacerar o outro. A liberdade mais profunda não consiste em não sofrer, mas em não fazer do sofrimento um altar para justificar a violência. Ser livre é atravessar a dor com inteireza, sem transformá-la em culpa projetada. É recusar-se a repetir o ciclo de feridas mal curadas.
O mito grego de Orfeu e Eurídice narra a descida desesperada de um homem ao submundo para resgatar a amada morta. Mas, ao romper a única condição imposta — não olhar para trás — ele a perde para sempre. A tragédia não está no amor, mas na incapacidade de confiar, de esperar, de elaborar a perda. O amor que não aceita seus limites pode se tornar destrutivo — mesmo quando nasce de um desejo legítimo.
É necessário reconhecer que há sempre escolhas. Da mais fácil — que é explodir, culpar, destruir — à mais difícil, que é aceitar o fim, aceitar que o outro não nos pertence, aceitar até mesmo que talvez nunca nos tenha amado. Isso dói. Mas é nessa dor que mora a possibilidade de liberdade. A coragem maior não está em matar, mas em continuar humano — mesmo ferido.
Mesmo quando não há morte física, há formas de matar simbolicamente: quando se silencia, se humilha, se apaga o outro. A cultura da vingança e da possessividade ainda permeia muitas relações afetivas, e isso exige uma reconstrução coletiva: da afetividade, da escuta, da maturidade emocional.
O erro narrado em My Mistake não começa com o disparo de uma arma: começa muito antes, nas estruturas culturais que confundem amor com controle, nas tradições que ensinam que perder é inaceitável, e que o outro deve ser extensão da própria vontade. A masculinidade que mata não nasce do nada — ela é cultivada no silêncio, legitimada pela religião sem alma, normalizada por discursos que santificam a posse como amor.
O verdadeiro arrependimento, se quiser ser caminho de redenção, precisa romper com esse ciclo. Precisa transformar vergonha em escuta, dor em aprendizado, perda em liberdade. Porque é possível amar sem dominar, sofrer sem ferir, perder sem destruir. E é essa possibilidade — ainda rara, ainda revolucionária — que precisa ser aprendida, ensinada, cultivada.
Que My Mistake e Camila não sejam apenas memórias musicais — mas espelhos incômodos de uma cultura que precisa urgentemente escolher entre amar ou dominar, entre sentir ou endurecer, entre a coragem de perder e a covardia de matar.
Nota: "Se você precisa gritar, controlar ou ferir, isso não é amor. É dor disfarçada. É hora de parar, olhar pra dentro e pedir ajuda — a psicólogos, a amigos de confiança. E, se for preciso, denuncie. Antes que se machuque mais e machuque quem você ama."
Amar não dever doer. E, quando dói, é hora de cuidar e se preciso pedir ajuda."
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