Essa ordem de Jesus desestabiliza a lógica do comodismo. Ela é uma convocação à responsabilidade eclesial e pessoal. Jesus, que acabara de falar do Reino e de curar os doentes, não faz mágica para alimentar a multidão — convida à partilha. Os cinco pães e dois peixes, aparentemente insuficientes, tornam-se abundantes nas mãos daquele que não despreza o pouco oferecido com fé. Os doze cestos cheios que sobram falam de um Deus que não age por escassez, mas por superabundância da graça. A partilha é milagre quando brota da confiança e da solidariedade. A lógica do Reino não é a da acumulação, mas a do dom. Como dirá o profeta Isaías, no capítulo 55, o convite de Deus é para que todos venham à água e comam, mesmo sem dinheiro — porque a graça não é mercadoria, é gratuidade.
É importante perceber os símbolos e números presentes no texto.
- Os cinco pães aludem à Torá, fonte da vida e sabedoria de Israel
- Os dois peixes apontam para a totalidade da criação, o humano em sua integralidade.
- Os doze cestos que sobram remetem às doze tribos, ou seja, ninguém está excluído da mesa do Reino.
Essa multiplicação não é apenas de alimentos, mas de sentido, de comunhão, de esperança. É a pré-figuração da Eucaristia, como nos lembrará Paulo ao narrar: “Todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha” (1Cor 11,26). É o memorial do Cristo que se entrega, mas também da comunidade que se compromete. Por isso Santo Irineu dizia: “Nossa doutrina está de acordo com a Eucaristia, e a Eucaristia, por sua vez, confirma nossa doutrina”.
Essa cena ecoa o Banquete Messiânico prometido por Isaías: “O Senhor dos Exércitos dará neste monte, para todos os povos, um banquete de pratos suculentos, um banquete de vinhos refinados” (Is 25,6). A partilha não é apenas gesto ético, é sinal escatológico — antecipa a plenitude do Reino, onde não haverá mais fome nem lágrimas.
No contexto atual, a fome volta a ser um grito que atravessa nossas ruas, silenciado por discursos religiosos vazios e por líderes que abençoam o poder enquanto desprezam os pobres. Segundo a Rede PENSSAN, mais de 33 milhões de pessoas enfrentam a fome no Brasil. E não é por falta de alimentos, mas por excesso de injustiça, corrupção, concentração de renda e desprezo pelas políticas públicas. O pão está na mesa dos ricos, mas falta nos lares de milhões. E o milagre da multiplicação não virá do céu — ele começa quando rompemos o ciclo do egoísmo. Isaías já alertava que o jejum verdadeiro consiste em “partilhar o pão com o faminto, acolher os pobres sem abrigo, vestir o nu” (Is 58,6-7). E também o profeta Amós, com palavras duras, denuncia a religião descolada da justiça: “Odeio e desprezo as vossas festas, e com vossas assembleias solenes não tenho nenhum prazer. Mas corra o direito como as águas, e a justiça como um ribeiro perene” (Am 5,21.24). Ignorar esse apelo é fazer da religião uma caricatura: um culto que agrada aos homens, mas desagrada a Deus.
Diante dessa realidade, é inaceitável que alguns ministros ordenados — padres e pastores — se contentem em rezar, consagrar e enviar o povo de volta para casa com fome. Tornam-se como os discípulos que queriam dispensar a multidão. Pregam um Cristo espiritualizado e inofensivo, alienado da carne sofredora do povo. A Eucaristia que celebram se torna contraditória: é culto sem compaixão, liturgia sem justiça, fé sem obras (cf. Tg 2,14-17). E como recordava o Papa Bento XVI em Deus Caritas Est (§14), “um cristianismo do culto, sem consequências éticas, é uma caricatura”. O risco de se viver uma fé sem encarnação é o mesmo que Jesus denunciou nos fariseus: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8).
Mas não se trata apenas de crítica. Trata-se de conversão. Porque a verdadeira comunhão só se dá quando nos deixamos tocar pelas feridas do outro. A “fome de Deus”, de que tanto falamos, não se separa da fome de pão, de dignidade, de reconhecimento. Há uma profunda ligação entre o espiritual e o material, entre o culto e a vida. A antropologia nos ensina que o comer é um gesto de pertencimento, um elo entre os corpos e as culturas. A psicologia social fala em solidariedade afetiva: uma empatia ativa que rompe o isolamento e recria vínculos. E é exatamente por isso que Jesus escolhe o pão — simples, cotidiano — para se tornar presença permanente no meio de nós. Como dizia São João Paulo II, “o cristianismo é a religião da encarnação”, e não há Eucaristia autêntica onde o corpo do irmão é ignorado.
A psicologia também nos ajuda a compreender que a fome, em suas muitas formas, provoca angústia, desorientação, apatia. A fome não é só ausência de nutrientes — é ausência de sentido, de esperança, de vínculo. E quando falta pão, falta também confiança. Por isso, alimentar alguém não é apenas um ato de caridade: é um gesto de cura, é devolver ao outro a certeza de que ele importa. É dar à pessoa o que nenhuma doutrina sozinha pode dar: dignidade. A Eucaristia, nesse sentido, torna-se sacramento terapêutico — cura a solidão, a indiferença, o abandono. Ela não é prêmio para os perfeitos, mas remédio e sustento para os fracos, como bem frisou o Papa Francisco.
Na Bíblia, há outras multiplicações — como as narradas em Mateus 15 e Marcos 8 — mas todas apontam para o mesmo horizonte: o Reino de Deus se manifesta quando há partilha. E em todas elas, a iniciativa de Jesus contrasta com a inércia dos discípulos. No deserto, Deus alimentou o povo com o maná (Ex 16), mas o fez como ensaio para que aprendessem a confiar. No livro de Reis, Eliseu multiplica pães para cem homens (2Rs 4,42-44), sinal de que Deus age por meio de seus profetas. E hoje, quem serão os profetas que romperão o ciclo da indiferença? Onde estão os que anunciam e vivem a lógica do Reino, desafiando os mecanismos da exclusão?
Os documentos da Igreja são claros. O Concílio Vaticano II, na Lumen Gentium, afirma que “a Eucaristia é fonte e cume de toda a vida cristã” (LG 11), o que significa que tudo converge para ela, e tudo deve dela derivar. E o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, recorda que “o culto separado da promoção da justiça é inaceitável” (EG 183). A Eucaristia nos educa para a comunhão, mas também para a missão. Comungar é comprometer-se. É tornar-se pão para os outros. É assumir as dores dos crucificados da história. A Igreja não é fim em si mesma; é sacramento do Reino, e o Reino não é feito de teorias, mas de práticas que libertam. Como bem afirma Amoris Laetitia (§108):
“A Eucaristia exige a integração da dimensão social”.
É preciso lembrar, como dizia Santo Agostinho, que “ninguém comunga este corpo sem antes comungar o corpo místico de Cristo” — ou seja, os irmãos. Celebrar Corpus Christi não é apenas carregar Jesus pelas ruas, mas reconhecê-lo nos rostos esquecidos, feridos, invisibilizados. O mesmo Cristo que adoramos no altar está também no chão da vida, esperando que o reconheçamos como Ele mesmo nos alertou: “Tive fome e não me destes de comer...” (Mt 25,42). A procissão verdadeira é a que continua depois da missa, no cuidado com os que caíram à beira do caminho. É a liturgia que se estende nas calçadas, nas filas do hospital, nas periferias, nos centros de acolhida. É a Igreja em saída, que não teme se sujar nas ruas do mundo.
Ao final, o apelo de Jesus ecoa como um grito que não pode ser silenciado: “Dai-lhes vós mesmos de comer.” É um imperativo que não admite terceirização, nem desculpas, nem adiamentos. Não haverá milagre enquanto o pão estiver trancado em nossos celeiros, enquanto a fé for um discurso sem prática, enquanto a Igreja for um refúgio para os acomodados e não um abrigo para os necessitados.
Corpus Christi nos lembra que o milagre é possível. Mas ele começa quando abrimos as mãos, o coração, os olhos. Quando deixamos de nos esconder atrás da religiosidade e assumimos o Evangelho como estilo de vida. Quando, ao partilhar o pão, nos tornamos nós mesmos Eucaristia viva. Só assim a festa fará sentido. Só assim a procissão será autêntica. Só assim a Igreja será fiel ao seu Senhor.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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