terça-feira, 17 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 6,1-6.16-18

 



Quando Mateus 6,1-6.16-18 ressoa em nossos ouvidos,  na liturgia da 4ª-feira de cinzas e na 4ª-feira  dz 11ª semana do Tempo Comum,  é uma palavra afiada como espada (Hb 4,12) nos confronta. Jesus não oferece um mero conselho moral; ele lança uma denúncia Quando Jesus nos confronta nesse  evangelho. Ele não oferece um mero conselho moral; ele lança uma denúncia frontal contra um sistema religioso corrompido pela vaidade e o desejo de reconhecimento. 
Este texto, cerne ético do Sermão da Montanha, anuncia o Reino de Deus como contracultura, um caminho de justiça superior (cf. Mt 5,20), rompendo com uma religiosidade fortemente institucionalizada onde práticas como o jejum, a oração e a esmola haviam se tornado ferramentas de distinção social e autoexaltação. A crítica de Jesus, portanto, é profundamente enraizada numa realidade concreta: a religião usada como instrumento de prestígio e poder.

A palavra "hipócrita", no grego original (hypokritēs), significava literalmente “ator”, alguém que representa um papel. O uso desse termo não é inocente, pois Jesus denuncia uma espiritualidade teatral, onde o altar vira palco e a fé é usada como maquiagem para encobrir estruturas de dominação e conveniência pessoal. Essa mesma denúncia ecoa nos profetas: Isaías 1,13-17 rejeita os sacrifícios de mãos sujas de sangue; Amós 5,21-24 repudia os cultos vazios sem justiça; e Oséias 6,6 nos recorda que Deus prefere a misericórdia ao ritual. O problema não são as práticas, mas as intenções corrompidas. A oração verdadeira é silenciosa, o jejum autêntico é discreto, e a esmola legítima é secreta — porque o Pai “vê o que está oculto” (Mt 6,4.6.18).

Essa crítica de Jesus, tão particular ao seu contexto, ressoa em uma verdade universal. Afinal, do ponto de vista antropológico e histórico, todas as civilizações desenvolveram ritos que expressam relação com o sagrado. O jejum, por exemplo, já era praticado em contextos mesopotâmicos, egípcios e greco-romanos como forma de purificação, luto ou preparação espiritual. 

  • Entre os povos indígenas do Brasil, o jejum aparece em contextos iniciáticos, como preparação para rituais de cura, escuta do espírito ou contato com os encantados. A oração, nesses contextos, não é discurso, mas relação cósmica — diálogo com a natureza, com os ancestrais, com os mistérios. A esmola, por sua vez, se manifesta em formas comunitárias de partilha, em que o bem coletivo supera o individual.
  • As religiões de matriz afro-brasileira nos oferecem outro exemplo vigoroso de autenticidade: a oração é canto, dança, corpo que se doa. O jejum se dá nas restrições alimentares ligadas ao orixá ou ao processo ritual. A caridade, o axé que circula, é força de vida compartilhada. Essas práticas são vividas com reverência e verdade, sem a pretensão de parecer mais espirituais que outros. 
  • No judaísmo, de onde vêm as práticas que Jesus menciona, oração, jejum e esmola são parte inseparável da halachá, a caminhada do justo. O jejum de Yom Kippur é arrependimento profundo, a oração é mergulho na Palavra, e a tzedaká é justiça social. 
  • No Islã, o Ramadã é um grito coletivo de sobriedade e compaixão — jejum diário, orações comunitárias e caridade obrigatória.
  •  Nas religiões orientais, como o budismo e o hinduísmo, o jejum é disciplina do desapego, a oração é meditação, e a generosidade é um dos caminhos para a iluminação.

Contudo, a sociologia da religião já mostrou — desde Durkheim a Bourdieu — que a fé pode ser tanto instrumento de libertação quanto de dominação. No Brasil contemporâneo, vemos essa fé sequestrada por lideranças que a utilizam como capital político. A extrema-direita brasileira invadiu o sagrado: jejuns manipulados por políticos corruptos, orações nas redes usadas como marketing de guerra cultural, e caridades exibidas com câmeras na mão. O nome de Jesus é invocado não para salvar, mas para excluir. Transformaram o altar em palanque e o Evangelho em doutrina de ódio. Essa fé não liberta; ela oprime, revelando-se a religião de Caifás, não a de Jesus.

A psicologia, por sua vez, nos ajuda a compreender esse narcisismo religioso. O ego que busca aplauso se traveste de piedade. O jejum é usado para autopunição neurótica ou para exibir força de vontade. A oração vira monólogo do ego com o espelho. A esmola, feita para os likes, é caridade colonizadora. Mas o verdadeiro encontro com Deus desmascara, descentra e transforma. Jung dizia: “Quem olha para fora sonha; quem olha para dentro desperta.” A verdadeira espiritualidade não é estética, mas ética. Ela nos obriga a encarar nossos abismos e os rostos dos que sofrem.

A teologia bíblica — fiel à tradição dos profetas e de Jesus — não pode compactuar com o cristianismo de fachada. A oração cristã nasce da escuta da Palavra e da solidariedade com os crucificados da história. O jejum cristão é recusa concreta aos ídolos do consumo, do egoísmo, da indiferença. A esmola cristã é profecia contra a miséria institucionalizada. O Papa Francisco é contundente ao dizer que "não há verdadeira piedade sem justiça" (EG 186) e que “a fé que não se traduz em defesa dos pobres é ideologia sem alma” (FT 275). O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes 1, afirma que o sofrimento da humanidade deve ecoar no coração da Igreja. E não há sofrimento maior hoje do que ver o nome de Deus usado para legitimar o racismo, o machismo, a homofobia e a desigualdade.

A filosofia, ademais, nos lembra que a verdade religiosa precisa ser crítica. Paulo Freire nos ensinou que a educação — e a fé — precisam ser libertadoras, não domesticadoras. Nietzsche, apesar de crítico da religião, denunciava a moral de rebanho e a fé sem coragem. Kierkegaard clamava por uma fé que não fosse espetáculo, mas risco existencial. Simone Weil escreveu que “a atenção pura é a forma mais rara e generosa de oração”. Todos esses ecos nos recordam: o Evangelho é convite ao abismo de Deus, não ao conforto do palco.

Em tempos de “culto-show”, de missas que viram apresentações, de padres que se comportam como celebridades e de pastores que vendem bênçãos como produtos, Mateus 6 nos devolve à essência. A fé não precisa de aplausos. Deus não está nos holofotes, mas no quarto fechado, no rosto do pobre, no pão dividido em silêncio. O Pai que vê no oculto não se impressiona com redes sociais, mas com o coração quebrantado. Se nossa religião virou entretenimento, então perdemos o Cristo. Se nossas igrejas se parecem mais com shoppings do que com comunidades de partilha, então é hora de voltar ao deserto.

Que essa palavra nos incomode. Que não sejamos cúmplices da fé domesticada que se vende aos interesses do mercado, do moralismo vazio ou do autoritarismo político. Rasguemos não as vestes, mas o coração (cf. Jl 2,13). Deixemos cair as máscaras piedosas que escondem o orgulho, a indiferença e o desejo de controle. É tempo de conversão verdadeira. É hora de limpar o templo — começando pelo nosso interior. Não há mais espaço para uma religião de aparência, para um cristianismo sem cruz, sem justiça e sem compaixão. A Palavra foi lançada: oração, jejum e esmola — não como performance, mas como a prática encarnada de quem busca o Reino. Voltemos ao Evangelho, retornemos ao silêncio, reencontremos os pobres. A fé que salva é a que se ajoelha diante de Deus e se levanta para servir ao próximo. Sejamos sal da terra e luz do mundo, não aplauso da plateia. A hora é de profecia. E o tempo, é agora.



DNonato — Teólogo do Cotidiano, servo do Evangelho e filho da Igreja.


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