Mateus 3,1-12 é proclamado em diversas liturgias do ciclo A, sempre no contexto adventício, porque ninguém prepara o nascimento do Messias sem antes desinstalar estruturas acomodadas e ilusões religiosas. No 2º Domingo do Advento, a Igreja nos faz ouvir João para que possamos reencontrar o fio crítico da nossa fé, lembrando-nos de que o Messias esperado não é a confirmação dos nossos caprichos, mas o desmonte das nossas idolatrias. João não aparece onde o status religioso esperaria encontrá-lo; surge no deserto, lugar simbólico da purificação e da escuta, lembrando Israel do caminho do Êxodo, quando o povo experimentou Deus sem estruturas de poder, sem templos de mármore, sem garantias externas. O deserto é, portanto, a crítica viva ao culto sem vida, ao ritualismo vazio, à fé que se acomoda em palácios – e por isso João veste roupas rústicas, alimenta-se do que a criação oferece, não negocia com autoridades e não se deixa seduzir por alianças. Ele é, por si mesmo, uma parábola.
Quando o texto diz que ele veste “pelos de camelo e um cinturão de couro”, não é um detalhe folclórico. Mateus está ecoando deliberadamente as descrições de Elias (2Rs 1,8). João encarna a tradição profética que não se curva ao poder. Ele não representa uma espiritualidade alienada, mas uma fé com os pés na terra. A psicologia moderna poderia dizer que João expressa a figura do sujeito que integra coragem e lucidez, alguém capaz de enfrentar as sombras que a sociedade tenta esconder; sociologicamente, ele é o contraponto aos arranjos de poder que tentam domesticar a religião; antropologicamente, ele recupera o arquétipo do mensageiro liminar que anuncia transições radicais; filosoficamente, ele revela que nenhuma verdade se sustenta sem confrontar a mentira; teologicamente, ele anuncia que o Reino chega não pelo acúmulo de privilégios, mas pela conversão; espiritualmente, ele desestabiliza o narcisismo religioso que sempre tenta transformar Deus em espelho das próprias vaidades. João é a ruptura viva contra todos os fariseus de ontem e de hoje, sobretudo os fariseus da prosperidade, do domínio, da fé-mercadoria e do clericalismo que transforma o povo em plateia de espetáculo.
O evangelho faz questão de situar João no deserto, não em Jerusalém. Isso, para Mateus, é profundamente simbólico: o centro religioso está saturado de manipulações, alianças com Roma, hipocrisia e disputa de prestígio. João, ao contrário, está na periferia, na borda, no não-lugar onde Deus pode ser ouvido sem maquiagem. Ele anuncia um Reino que contrasta abertamente com qualquer império, antigo ou moderno. Onde o império se impõe pela força, o Reino se oferece como graça; onde o império exige culto ao poder, o Reino chama à conversão; onde o império alimenta violências, o Reino cultiva justiça. Isaías 11,1-10 já antecipava essa inversão: do tronco aparentemente morto de Jessé nascerá um rebento, pequeno, inesperado, improvável, mas cheio do Espírito. A esperança de Deus nunca nasce dos cenários onde os poderosos se juntam, mas das beiradas onde a vida resiste. O salmo reforça que nos dias do verdadeiro Messias brotará justiça e paz, e não espetáculos religiosos, negociatas políticas, campanhas de arrecadação travestidas de fé ou tentativas de transformar o Evangelho em comício ideológico.
João denuncia exatamente esses mecanismos. Quando fariseus e saduceus aparecem para receber o batismo, ele os enfrenta com a expressão mais dura do Novo Testamento: “Raça de víboras!” Ele sabe que muitos se aproximam atraídos não pela conversão, mas pelas vantagens simbólicas que a religião oferece. É o mesmo movimento que hoje vemos em pregadores que dizem falar em nome de Cristo, mas vivem em palácios, cercados de seguranças, pedindo PIX e vendendo milagres embalados como produto de prateleira. São líderes que transformam fé em mercado, esperança em moeda, sacramentos em serviço, Bíblia em arma ideológica, liturgia em palco, púlpito em trono. A teologia da prosperidade e a teologia do domínio repetem a mesma sedução imperial que João e Jesus denunciaram: a tentativa de transformar Deus em rotativo bancário e o Evangelho em manual de conquista e enriquecimento. João grita contra isso no deserto; Jesus gritará contra isso no templo. A verdade do Reino é incompatível com qualquer fé que funcione como negócio.
Mateus insiste que João batiza no Jordão, outro símbolo fundamental. O Jordão é a fronteira entre escravidão e promessa; é o lugar onde Israel entrou na terra; é o marco da passagem. O batismo ali é convite para atravessar de novo, para deixar atrás o velho Egito interior, para romper com o que adoece a alma e paralisa o coração. Psicologicamente, esse rito revela que ninguém se renova sem enfrentar suas sombras; sociologicamente, mostra que a transformação pessoal implica assumir responsabilidade coletiva; teologicamente, aponta para o batismo cristão como nascimento para uma nova identidade; filosoficamente, indica que toda verdade libertadora exige atravessar limites. João não está apenas pedindo comportamentos moralistas; está pedindo mudança radical de mentalidade, aquilo que a exegese bíblica chama metanoia: uma conversão que atinge raízes, estruturas, afetos, práticas. Nada superficial.
Quando ele anuncia: “O machado já está posto à raiz das árvores”, ele não está pregando medo, mas urgência. Árvores que não dão fruto, na lógica bíblica, são símbolos de religiosidade estéril. Jeremias, Oseias, Miqueias e outros profetas retomam essa imagem repetidamente. No Novo Testamento, Jesus repetirá o mesmo sinal ao amaldiçoar a figueira infrutífera (Mc 11,12-14). A árvore estéril é qualquer fé que não gera justiça. É o cristão que grita “amém” na porta da igreja mas fecha o coração diante do pobre. É a comunidade que aplaude o padre ou o pastor, mas não move uma palha para acolher o ferido. É o devoto que ostenta sacramentos mas não pratica misericórdia. É a Igreja que se enfeita de vestes caras mas silencia diante da violência. É o indivíduo que usa a Bíblia para atacar minorias e defender poderosos. João está dizendo que Deus não se deixa enganar por performances. Sem frutos, não há Reino.
O fogo, outro elemento anunciando por João, não é destruição barata; é purificação. Na tradição bíblica, o fogo purifica metais, revela autenticidade, expõe o que é falso, ilumina o que está escondido. Malaquias 3,2 fala do “fogo do fundidor” que refina o ouro; Isaías 6 narra o carvão ardente que purifica os lábios do profeta. Sociologicamente, o fogo desmascara práticas religiosas alienantes; psicologicamente, ele simboliza o processo interior de autoconhecimento que queima ilusões; antropologicamente, remete às fogueiras rituais que marcam transições; filosoficamente, é metáfora da verdade que incinera mentiras; teologicamente, aponta para o Espírito que transforma. João anuncia um que virá depois dele – e esse é Jesus – que batizará “com o Espírito Santo e com fogo”, isto é, com vida nova e purificação profunda.
O texto se alarga quando lembramos que a mesma cena aparece também em Marcos 1,1-8, Lucas 3,1-18 e, de modo indireto, no prólogo de João 1,19-28. Cada sinótico acrescenta nuances próprias: Marcos enfatiza a urgência; Lucas amplia a denúncia social (“Quem tem duas túnicas...”); Mateus sublinha o confronto com os líderes religiosos. Mas todos convergem no essencial: o Messias não nasce nos centros de poder, mas entre os pequenos; não se revela em templos luxuosos, mas na simplicidade; não legitima opressores, mas liberta feridos; não abençoa impérios, mas inaugura outra lógica. É isso que Isaías 11 anuncia: um Messias que julga com justiça os pobres, que defende o fraco, que não julga pelas aparências, que refaz a criação ferida. O reino messiânico é uma inversão total: o lobo habitará com o cordeiro, o leopardo com o cabrito, a criança com a serpente. Não é zoologia literal; é profecia política e espiritual. Isaías está dizendo que onde Deus reina, os antagonismos criados pela violência humana perdem força. Onde Deus reina, os opressores não têm a última palavra. Onde Deus reina, a criação inteira respira paz.
Romano 15,4-9 fecha esse conjunto litúrgico lembrando que tudo foi escrito para nossa esperança. A Palavra não é museu; é pão. Paulo insiste que Cristo nos acolheu, e por isso também devemos acolher uns aos outros. Advento é exatamente isso: Deus nos acolhe ao ponto de assumir nossa carne; nós somos chamados a acolher o próximo com a mesma radicalidade. Isso desmonta qualquer projeto que transforme religião em arma de exclusão ou crença em privilégio. O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Magistério, especialmente por Papa Francisco, é a tentação de transformar o ministério em casta superior. João Batista destrói esse esquema: ele não se exibe, não reivindica status, não busca honra, não vende a fé como produto. É uma crítica atualíssima a padres, pastores, líderes e pregadores digitais que performam santidade enquanto negociam influência, ego, cifras e conveniências políticas.
A patrística reconheceu profundamente essa função liminar de João. Santo Agostinho dizia que João é “a voz”, enquanto Cristo é “a Palavra”; a voz passa, a Palavra permanece. Orígenes afirmava que João denuncia para que Cristo possa curar; se a verdade não é dita, a graça não encontra espaço. São Gregório Magno descreve João como aquele que aponta, prepara e depois se retira. Toda liderança cristã deveria estremecer ao ouvir isso: João não buscou centralidade, não construiu marca pessoal, não fez da fé palco. Ele diminuiu para que Cristo crescesse. Hoje, ao contrário, há quem aumente a si mesmo e diminua Cristo, usando o nome do Senhor como se fosse slogan empresarial. João desmonta isso.
O Advento, iluminado por esse evangelho, nos convoca à conversão que rompe superficialidades. Não basta ter sacramentos, Bíblia, oração e agenda de pastoral. Nada disso salva se não houver frutos de justiça, misericórdia, paz, serviço, verdade e coragem. João chama para uma espiritualidade não ritualista, não normativa, não escravista. Ele denuncia a fé-espetáculo, a fé-negócio, a fé-individualista, a fé-narcisista. Ele chama para uma fé que se torne vida. Uma fé capaz de superar discursos de ódio, idolatrias políticas, fanatismos religiosos e rituais vazios. Uma fé que construa uma nova cultura, menos marcada por ego, disputa e aparência, e mais marcada por cuidado, fraternidade e serviço. Uma fé que reconheça que todos somos filhos do mesmo Pai.
O Advento é essa travessia. É deixar o palácio e ir ao deserto para ouvir a verdade. É sair do conforto para entrar no Jordão e recomeçar. É abandonar a árvore estéril para gerar frutos. É permitir que o fogo do Espírito purifique intenções. É abandonar uma fé que pede privilégio e abraçar uma fé que se coloca a serviço. É permitir que Isaías reacenda nossa esperança. É permitir que o salmo devolva nossa fome de justiça. É deixar que Paulo nos reacostume ao acolhimento. É deixar que João nos diga que o Reino está mais perto do que pensamos, mas exige mais do que gestos rituais: exige vida nova.
Assim, acompanhando João neste 2º domingo do Advento, ouvimos o que ele ainda grita hoje: não se iludam com aparências. Não pensem que títulos, cargos, sacramentos, funções e prestígios garantem salvação. O machado está à raiz. A árvore precisa dar fruto. O fogo precisa purificar. O Espírito quer transformar. E aquele que vem – aquele que está vindo – não aceita mistificações. Ele vem com justiça, com ternura, com verdade. Ele vem para consolar os pequenos e derrubar os arrogantes. Ele vem para inaugurar um mundo novo, mas esse mundo novo começa em cada um de nós.
Quem tiver ouvidos, ouça o que a voz do deserto ainda anuncia: preparem o caminho do Senhor. Endireitem seus caminhos. Na simplicidade, no serviço, na justiça, no cuidado, na misericórdia, no amor encarnado. É assim que se prepara o Advento. É assim que nasce o Reino. É assim que Deus chega.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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