Talvez por isso aquele presépio no portão não fosse apenas um enfeite: era um testemunho. Uma declaração pública — silenciosa, mas firme — de que acredito num Deus que não se esconde nos palácios, mas acampa entre nós. Acredito naquele Deus que, como diz João, “armou a sua tenda” (Jo 1,14) no meio da poeira, dos cheiros, da precariedade e das pequenas alegrias da vida cotidiana. E aqui em Nova Belém, onde a gente conhece bem os becos, os improvisos, os apertos e os milagres escondidos no dia a dia, um presépio faz ainda mais sentido.
Enquanto pregava o banner com cuidado, percebi uma estranha contradição que tomou conta do Natal moderno. De um lado, temos o Deus-menino que nasce num cocho, visitado por pastores — homens sem prestígio, sem poder, sem visibilidade, gente que nem aparecia nas estatísticas do Império. De outro, nós, correndo de um shopping a outro, hipnotizados por luzes artificiais que, como diria Isaías, competem com “a luz verdadeira que ilumina todo ser humano” (Is 9,1; Jo 1,9). É como se tivéssemos trocado a manjedoura por uma vitrine.
E foi olhando aquele banner balançando ao vento que percebi: meu gesto precisava mudar algo em mim. E mudou. Mas não parou em mim. Porque o Natal, desde o começo, não foi uma história individual; foi comunitária. Pastores conversando. Anjos em coro. Maria e José unidos na vulnerabilidade. Os Magos viajando juntos. O “eu” do Natal nunca fica sozinho — sempre se transforma em “nós”.
Percebi que, ao pendurar aquele banner, minha mão carregava também as mãos dos vizinhos, das mães que passam cedo levando as crianças para a escola, dos jovens que sonham com um futuro diferente… meu gesto pessoal já continha um “nós” nascendo.
O presépio no portão me fez revisitar as primeiras narrativas. Mateus conta que o nascimento de Jesus acontece sob a sombra de Herodes, símbolo de todo sistema que teme a vida nova (Mt 2,13-18). Lucas narra que não havia lugar para eles na hospedaria (Lc 2,7), ecoando até hoje as estruturas sociais que continuam negando lugar a tantos. E então compreendi: meu banner não era apenas enfeite de Advento — era lembrete histórico e social. Um comentário teológico ao vivo. Um grito profético em meio ao barulho do comércio: o Deus cristão não nasceu num lugar onde “cabe” o lucro; Ele nasceu onde cabia o amor.
E Nova Belém sabe bem o que significam essas ausências de lugar. Aqui, quando alguém levanta um presépio no portão, não está apenas enfeitando; está proclamando, ainda que sem palavras:
“Aqui a vida merece florescer. Aqui a esperança tem direito de existir. Aqui acreditamos num Deus que se permite nascer na periferia.”
A Nova Belém de hoje se torna espelho da Belém de outrora: pequena, ignorada pelos poderosos, mas escolhida por Deus. Como Miquéias profetizou, mesmo o menor dos lugares pode gerar a esperança maior (Mq 5,1-3). Isaías lembra que o rebento de Jessé brota da aridez e cresce para justiça e paz (Is 11,1-2).
Enquanto o presépio brilha na humildade do feno, o consumismo grita nas vitrines tentando nos vender uma promessa que caduca em janeiro. O “bom velhinho de vermelho” — que nada tem de errado em si — virou mascote de um sistema que promete felicidade com etiqueta de preço. Transformaram o velhinho da barba branca em garoto-propaganda da alegria de mentira. E enquanto isso, o Deus-menino segue silencioso, lembrando que a verdadeira festa começa quando alguém se aproxima para cuidar, para partilhar, para servir. Como Maria e José fizeram. Como os pastores fizeram. Como ninguém no shopping faz por nós.
É nesse ponto que a sociologia se encontra com o Evangelho. Bauman, Byung-Chul Han e Milton Santos mostraram que quanto mais compramos, mais substituímos o encontro pelo objeto, o afeto pelo produto, a relação pelo contrato. Paulo Freire ensinou que a esperança se constrói no cotidiano, com prática e diálogo. O Natal virou temporada de objetos, não de pessoas. E o presépio no meu portão tenta lembrar que o Natal é temporada de humanidade.
Foi então que percebi que aquele banner era um pequeno ato revolucionário. Um “não” dito com suavidade, mas com coragem. Um não ao sistema que tenta nos convencer de que dignidade se mede por preço. Um não à espiritualidade que se deixa seduzir pela estética vazia, pelo cristianismo de vitrine — essa religião que fala de Jesus, mas rejeita sua pobreza. O Papa Francisco — sempre vivo na memória do povo — insiste: “O real é superior à ideia.” E o real do Natal é uma criança embrulhada em panos, deitada num cocho, com pais exaustos tentando sobreviver. Nada mais distante do cartão de crédito.
Por isso hoje quero agradecer publicamente a quem me ajudou a levantar esse sinal. Meu muito obrigado a Naire Ângelo e à sua gráfica, que não apenas imprimiram um banner, mas ajudaram a imprimir esperança na entrada da nossa casa. Não foi apenas serviço: foi gesto pastoral, social e comunitário.
Mas, enquanto pregava o banner no portão, senti algo forte: isso não podia ficar apenas em mim.
Não podia ser apenas “meu presépio”.
Precisava virar nosso movimento.
Se o Natal da manjedoura é um ato de resistência — e é — então precisamos transformar essa resistência em obra comunitária. Somos chamados a reacender Belém na palma das mãos, nas esquinas, nas janelas, nas calçadas normais e sinceras de Nova Belém. Um presépio em cada casa. Um sinal em cada família. Uma manjedoura em cada esquina.
A Teologia da Encarnação nos ensina que Deus assume a carne para transformar a história de dentro. E quando erguemos presépios, participamos dessa mesma lógica divina: transformação pelo testemunho, não pela propaganda; pela ternura, não pelo marketing; pela simplicidade, não pela ostentação. Cada presépio é um pequeno sacramento social da ternura, uma profecia viva.
E a manjedoura é profecia.
Profecia que denuncia.
Profecia que incomoda.
Profecia que ilumina.
Ela denuncia o império do consumo.
Denuncia a lógica do descarte.
Denuncia essa cultura que troca encontro por desempenho, comunidade por individualismo, afeto por etiqueta.
Denuncia até mesmo cristãos que trocaram o Evangelho por ideologias violentas, por projetos de poder, por discursos duros e desumanizantes.
A manjedoura é o anti-império. É a contracultura de Deus.
Por isso, que comecemos.
Que Nova Belém se torne, de fato, Belém.
Que cada casa levante um presépio — de barro, de madeira, de papel, de pano, ou mesmo um banner simples como o nosso.
Que cada família se torne guardiã dessa memória viva.
Que cada rua, estreita ou larga, ganhe seu pequeno altar de ternura.
Que cada rosto que olhar para uma manjedoura se lembre de que a esperança nasce do lado de baixo.
E que, ao espalharmos essas manjedouras pela cidade, lembremos uns aos outros que manter o presépio de pé é manter a esperança acesa.
Se o mundo tenta nos vender um Natal de vitrine, sejamos nós aqueles que devolvem o Natal à manjedoura.
Se o sistema quer um Natal que se mede em vendas, sejamos nós os que anunciam um Natal que se mede em encontros.
Porque o Natal só floresce na vida de quem não é cristão de vitrine, mas discípulo de Belém — daqueles que preferem a luz da manjedoura ao brilho artificial do consumo.
E no fim, quando olho aquele banner preso na grade do portão simples das ruas de Nova Belém, percebo: talvez Deus esteja sorrindo.
Porque cada pequeno presépio que nasce num portão, numa varanda, numa janela, é como se o próprio Deus estivesse nascendo de novo — agora no coração de quem passa, de quem olha, de quem se lembra, de quem desperta.
E então, o Advento deixa de ser calendário.
Vira vida.
Vira fé.
Vira esperança.
Vira nós.
DNonato - Teólogo do Cotidiano



Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.