Mateus insere essa pequena parábola no coração do Discurso Comunitário, onde Jesus reordena a lógica das relações e expõe o modo de vida do Reino. Tudo começa com uma criança colocada no centro (18,2), e esse deslocamento espacial torna-se teológico: no Reino, o centro é sempre ocupado pelos pequenos, frágeis, vulneráveis. A parábola da ovelha perdida nasce desse gesto. Antes de qualquer leitura técnica, é preciso perceber que estamos diante de um texto profundamente simbólico: Jesus se vale de uma imagem pastoral, arraigada no imaginário bíblico, para revelar o que Ele está fazendo no próprio ato de ensinar: Ele mesmo é o pastor que desce, procura, encontra e carrega. O contexto é decisivo. O versículo imediatamente anterior afirma: “Vede, não desprezeis nenhum destes pequeninos” (Mt 18,10). Ou seja, a parábola não nasce de uma reflexão abstrata sobre Deus, mas de uma advertência concreta. O desprezo pelos fracos é a raiz de todo antievangelho. Em seguida, a tradição manuscrita conserva — em alguns códices, porém ausente no texto crítico — o eco fundamental: “O Filho do Homem veio salvar o que estava perdido” (v. 11). Essa afirmação, mesmo quando não explicitada, vibra por trás da parábola, como voz subterrânea que sustenta tudo. Ela ecoa Lucas 19,10, quando Jesus, na casa de Zaqueu, declara a essência de sua missão. Assim, a liturgia nos coloca diante de um Cristo que, no Advento, continua descendo às casas, às feridas, aos becos, às zonas de sombra, e continua afirmando de modo simples, mas abissal: “Eu vim buscar.”
O texto de hoje exige voltar às raízes veterotestamentárias. A Bíblia inteira é a história do Deus que busca, não do ser humano que ascende. Em Gênesis 3,9 está o primeiro anúncio da misericórdia: “Onde estás?” A pergunta não é policial; é terapêutica. Não humilha; convoca. É o início da pedagogia divina que sempre começa pela proximidade. Também o profeta Isaías ilumina a parábola: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada qual seguia seu próprio caminho” (Is 53,6). A ovelha perdida não é exceção; é a condição humana universal. O pecado — que é ruptura da relação original — nos dispersa, descentra e quebra o eixo do coração. Perdidos, ficamos desorientados, como quem tenta voltar para casa sem conhecer o caminho. O Advento é o tempo em que Deus se torna o Caminho que vem ao nosso encontro. Ezequiel 34 é talvez o texto mais decisivo para compreender Mateus 18,12-14. Deus denuncia pastores que se alimentam do rebanho, mas não o alimentam; pastores que governam com dureza, mas não curam; pastores que abandonam a ferida e fortalecem apenas a si mesmos. Deus se cansa dessa lógica e declara: “Eu mesmo apascentarei… procurarei a perdida, trarei de volta a extraviada…” (Ez 34,11.16). Quando Jesus narra a parábola da ovelha perdida, Ele está encarnando essa promessa: Ele é o próprio Deus que assumiu a tarefa pastoral que muitos haviam abandonado. A parábola, portanto, é cristologia encarnada em narrativa simples.
A comparação com Lucas 15 é inevitável. Em Lucas, o destaque recai na alegria divina: “Alegrai-vos comigo, encontrei a minha ovelha perdida” (Lc 15,6). Em Mateus, a ênfase é outra: o valor singular de cada pequenino. Enquanto Lucas pensa na conversão do pecador, Mateus pensa no cuidado pelo fraco. As duas tradições não se contradizem; se complementam. A alegria do Pai nasce do valor infinito da vida reencontrada. Quando o texto mateano declara: “Não é da vontade do Pai que se perca um só destes pequeninos” (Mt 18,14), ele revela que a festa do céu tem uma razão ética profunda: Deus não negocia vidas. Deus não aceita perdas humanas. Deus não compactua com sistemas que tratam pessoas como descartáveis.
A parábola, porém, não é apenas exegese sinótica; ela é também poesia bíblica. E aqui o Cântico dos Cânticos ilumina com suavidade esse movimento. A busca do amado pela amada, e da amada pelo amado (Ct 3,1-4; 5,6-8), revela que a fé é uma dança de procura. Deus nos busca antes, nós o buscamos depois, e o encontro se dá num ponto misterioso onde o desejo divino e o humano se entrelaçam. A imagem do pastor que procura a ovelha é eco erótico no melhor sentido bíblico: é o amor que se recusa a desistir.
Sabemos que os pastores de ontem eram trabalhadores rudes, noturnos, malvistos socialmente, ao contrário de hoje em dia. Deus escolhe essa imagem para revelar-se porque Ela desconstrói hierarquias. Deus não se identifica com reis opressores, mas com um ofício marginal. Essa escolha já carrega crítica implícita às pretensões clericais que, ao longo da história, buscaram transformar pastores em nobres, líderes religiosos em aristocratas do sagrado. A parábola é denúncia do clericalismo porque o verdadeiro pastor não se coloca acima do rebanho; desce, corre, carrega, sofre.
A psicologia lança luz sobre a condição da ovelha perdida. O extravio não é apenas geográfico; é existencial. A pessoa perdida vive dissociação interior, medo, autocrítica intensa, sensação de fracasso e vergonha. Na dinâmica psicológica, quem se percebe perdido muitas vezes acredita que não merece ser encontrado. A parábola rompe esse ponto cego: o critério do resgate não é mérito; é amor. O pastor não espera a ovelha corrigir-se; ele vai antes. Isso desmonta qualquer teologia moralista que insista em exigir pureza prévia para acolher. Deus não pede condição para amar; o amor é a condição que gera transformação.
A sociologia discerne na parábola uma denúncia das estruturas que fabricam perdidos. No contexto neoliberal, a sociedade cria “noventa e nove” que se mantêm seguras às custas de “uma” que se perde. A lógica capitalista considera natural que alguns fiquem fora do sistema. O Evangelho considera isso intolerável. Gaudium et Spes 63-66 recorda que sistemas econômicos que tratam o ser humano como instrumento não são neutros; são idolátricos. Fratelli Tutti insiste na crítica à “cultura do descarte”, que joga fora os fracos em nome da eficiência. A parábola é contrapolítica: ela proclama que uma vida perdida vale mais do que todas as estatísticas de estabilidade institucional.
A filosofia, especialmente Levinas, afirma que a ética começa quando o rosto do outro me chama. A ovelha perdida é esse rosto que desinstala, que exige resposta, que me obriga a deslocar-me do meu bem-estar para o terreno do cuidado. O pastor da parábola encarna essa ética: ele não age por cálculo; age por responsabilidade. Ele não mede risco; mede valor. E o valor é absoluto.
Santo Irineu via a encarnação como o gesto pelo qual Cristo assume o ser humano inteiro para salvar o ser humano inteiro. Santo Atanásio diz que o Verbo desceu porque não suportou ver a obra de suas mãos corrompida. Orígenes descreve Cristo como Pastor que atravessa os vales da humanidade. Agostinho fala do Cristo que carrega a ovelha nos ombros como quem assume nossa humanidade em sua paixão. Gregório Magno afirma que o pastor verdadeiro se aproxima das feridas com ternura, não com desprezo. A patrística inteira lê a parábola como ícone da encarnação: Deus que deixa sua glória para entrar em nossa dor.
Essa leitura patrística desmascara a teologia da prosperidade. Nesse modelo, Deus é associado a mérito, desempenho, prêmio. A prosperidade exige ovelhas produtivas, fortes, capazes. A parábola exige pastor compassivo, não ovelha eficiente. A teologia da prosperidade é contrária ao Evangelho porque culpa os feridos por sua ferida, responsabiliza os pobres por sua pobreza e transforma Deus em máquina de recompensa. O Deus da parábola é o oposto disso: Ele se compromete com o fraco, sai do conforto por ele, arrisca tudo para salvar o vulnerável. Também a teologia do domínio — que transforma fé em arma política — é confrontada pela parábola. Nela, não há controle, nem manipulação, nem liderança autoritária. Há cuidado, vulnerabilidade, risco, doação. A comunidade não é massa de manobra; é rebanho amado. A autoridade não é poder; é serviço. A ovelha perdida não é usada para fortalecer projeto de ninguém; ela é buscada por amor. Toda instrumentalização da religião para obter domínio contradiz a lógica do pastor que se expõe por amor.
O individualismo espiritual contemporâneo também é desmontado pela parábola. Hoje, muitos imaginam que a salvação é um processo privado, uma busca interior autossuficiente. Mas a ovelha é devolvida ao rebanho; nunca à solidão. A salvação é comunhão. A fé é corpo. O retorno é comunitário. A espiritualidade individualista — tão marcada por um “bem-estar religioso” — é refutada pela imagem da reinserção. Deus nos salva recolocando-nos no conjunto.
O clericalismo é a tentação de líderes religiosos que preferem administrar noventa e nove em ordem do que arriscar-se pela uma ferida. São os pastores denunciados por Ezequiel 34, que se alimentam das ovelhas, mas não as alimentam. Jesus, na parábola, oferece o contraponto: Ele abandona a autoconservação e se lança ao terreno do perigo. O clericalismo é espiritualidade de mira invertida; olha para cima, não para baixo; busca status, não serviço. O pastor de Mateus 18 olha para baixo, busca quem caiu, abandona a posição confortável. Por isso este texto é uma das críticas mais fortes à arrogância religiosa que transforma líderes em donos do rebanho.
O tempo do Advento deve ampliar o horizonte. A busca do pastor é figura da encarnação. Quando o Verbo se faz carne, Deus está descendo ao abismo da condição humana para encontrar a ovelha perdida. Isaías 63,19 fala do Deus que rasga os céus e desce. Lucas 1,79 fala da visita divina que ilumina os que jazem nas sombras da morte. A parábola é narrativa do que o Advento celebra liturgicamente: Deus vem ao nosso encontro quando estávamos incapazes de voltar.
A história da salvação é síntese desse movimento. O Deus que buscou Adão, que buscou Israel pelo deserto, que buscou o povo após o exílio, que buscou a humanidade pelo Verbo encarnado, é o mesmo Deus que continua buscando hoje aqueles que a sociedade descartou. A liturgia não proclama Mateus 18,12-14 como texto ornamental; proclama-o como lente para enxergar o modo de agir de Deus ao longo da história.
Na prática pastoral contemporânea, a parábola é convite e denúncia. Denúncia contra comunidades que se acomodam com a perda dos frágeis. Convite para recuperar o ethos do cuidado. Denúncia contra igrejas que se tornam clubes religiosos de iguais. Convite à missão que sai da zona protegida. Denúncia contra discursos moralistas que culpam os feridos. Convite a carregar nos ombros quem não pode caminhar. Denúncia contra religiosidades de show, de palco, de likes, de palcos luminosos, de líderes celebridades. Convite à simplicidade do pastor que caminha no chão.
A parábola também nos ensina que perder-se é destino comum, não exceção. O ser humano é ser de extravios. A vida é caminho cheio de vales, sombras, desvios. O pastor não despreza isso; assume. E sua busca tem também densidade sacramental: Ele não apenas encontra; Ele carrega. Carregar é verbo de salvação: “Ele carregou nossas dores” (Is 53,4). A parábola antecipa a cruz.
O Advento, nessa luz, não é fantasia emocional. É tempo político, ético, espiritual de conversão da lógica. Se Deus não aceita perdas humanas, nós também não podemos aceitar. Cada vida que se perde nas periferias, nas prisões, nos manicômios, nas cracolândias, nos abrigos de crianças, nos rincões rurais, Deus busca. Cada vida que a sociedade despreza, Deus carrega nos ombros. E se a Igreja quer ser imagem desse Deus, ela deve aprender a sujar-se de novo, a sair, a caminhar, a não descansar enquanto houver uma vida ferida.
Quando Jesus conclui: “Não é da vontade do Pai que se perca um só destes pequeninos”, Ele oferece uma chave hermenêutica para toda a missão cristã. Não é da vontade do Pai que alguém se perca por causa do sistema, por causa da exclusão, por causa da injustiça, por causa da religião transformada em espetáculo, por causa de líderes que preferem aplauso à solidariedade. Não é da vontade do Pai que a Igreja se torne espaço de autopreservação. Não é da vontade do Pai que vidas sejam negociadas em nome de doutrinas mal interpretadas ou projetos políticos travestidos de fé.
A vontade do Pai é que a busca continue. Que o Advento nos encontre como ovelhas reencontradas e como pastores dispostos a buscar. Que nos coloque no movimento do Verbo que desce. Que nos converta em sacramentos uns dos outros. E que sejamos, para este mundo que fabrica perdidos diariamente, sinais vivos do Deus que nunca se cansa de ir atrás.
Porque, no final, a parábola é simples: Deus nos procura mais do que nos perdemos.
E o Advento é a prova disso.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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