O cenário é simples: um pai, dois filhos e uma vinha. Essa simplicidade, no entanto, é enganosa. Cada elemento carrega uma densidade simbólica profundamente enraizada na tradição bíblica. A vinha remete imediatamente ao cântico de Isaías 5, onde o profeta descreve o cuidado amoroso de Deus com seu povo e a frustração diante dos frutos amargos da injustiça. A vinha é o espaço da responsabilidade histórica, o lugar onde a fé se traduz em práticas de justiça, cuidado, solidariedade e fidelidade à aliança. Trabalhar na vinha não é um gesto espiritual abstrato; é assumir a tarefa concreta de produzir frutos que correspondam ao projeto divino. O pai, por sua vez, não é um senhor tirânico, mas aquele que chama, confia e envia. Seu pedido não vem acompanhado de ameaça ou recompensa imediata. Ele convoca pela palavra, respeitando a liberdade dos filhos. Essa liberdade, porém, não é isenção de responsabilidade.
Os dois filhos representam modos distintos de responder ao chamado. Um diz “não” e depois vai. O outro diz “sim” e não vai. Jesus não constrói personagens caricatos; Ele retrata atitudes profundamente humanas e recorrentes na história religiosa. O primeiro filho encarna a resistência inicial, o conflito interior, talvez a revolta contra uma autoridade que parece pesada ou distante. Seu “não” é honesto, ainda que duro. Mas algo acontece no processo: o texto diz que ele “mudou de ideia”, termo que, no grego, aponta para uma conversão interior, uma metanoia concreta. Ele não muda o discurso, muda o caminho. O segundo filho, ao contrário, responde com a palavra correta, com a linguagem esperada, com o “sim” socialmente aceitável. Mas sua obediência não se concretiza em ação. Seu discurso não se encarna.
É nesse ponto que a parábola se torna profundamente desconfortável para os ouvintes originais — e para os leitores de todas as épocas. Jesus pergunta qual dos dois fez a vontade do pai, e a resposta é óbvia. O escândalo não está na resposta, mas na aplicação que Jesus faz dela. Ele afirma que os cobradores de impostos e as prostitutas entram antes no Reino de Deus do que os sumos sacerdotes e anciãos. Não se trata de uma exaltação moral do pecado, mas de uma denúncia da hipocrisia religiosa. Aqueles que eram publicamente considerados impuros, desviados ou moralmente condenáveis são apresentados como capazes de conversão real, enquanto os guardiões da ortodoxia permanecem presos à aparência da obediência.
Esse movimento não é isolado no evangelho. Ele encontra paralelos claros nos sinóticos. Em Lucas 7,36-50, a mulher considerada pecadora unge os pés de Jesus e é declarada perdoada por amar muito, enquanto o fariseu, correto e cumpridor, permanece distante da lógica do Reino. Em Marcos 2,15-17, Jesus se senta à mesa com cobradores de impostos e pecadores, afirmando que não veio chamar os justos, mas os pecadores. Em Mateus 23, a crítica se intensifica: escribas e fariseus são denunciados por dizerem e não fazerem, por atarem fardos pesados sobre os outros e não moverem um dedo para carregá-los. O segundo filho da parábola encontra nesses textos sua multiplicação histórica.
A vinha, portanto, não é um espaço de mérito individual, mas de responsabilidade coletiva. Ela exige presença, esforço, envolvimento. Não basta declarar adesão ao projeto de Deus; é necessário comprometer-se com ele no chão da história. Aqui, a exegese mateana revela um dado fundamental: a justiça maior, anunciada no Sermão da Montanha, não se mede pela correção do discurso religioso, mas pela coerência entre palavra e prática. “Nem todo aquele que me diz: ‘Senhor, Senhor’, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mt 7,21). A parábola dos dois filhos é, de certo modo, uma dramatização dessa afirmação.
Do ponto de vista antropológico e psicológico, o texto revela algo essencial sobre a condição humana. O primeiro filho representa aqueles cuja trajetória é marcada por rupturas, ambiguidades e processos. Sua conversão não é instantânea nem linear. Ele resiste, recusa, mas é capaz de rever-se. Isso exige humildade, capacidade de autocrítica e abertura à transformação. O segundo filho simboliza o risco da identificação entre identidade religiosa e autoimagem moral. Quando a pessoa se percebe como “do lado certo”, corre o perigo de substituir a conversão viva por uma obediência formal. A psicologia social reconhece esse mecanismo: o discurso moral pode funcionar como anestesia da consciência, impedindo a percepção das próprias incoerências.
A parábola denuncia a religião enquanto sistema de legitimação do poder. Os sumos sacerdotes e anciãos não são apenas indivíduos; representam uma estrutura que controla o acesso ao sagrado, define quem é puro e quem é impuro, quem pertence e quem deve ser excluído. Ao afirmar que os marginalizados entram antes no Reino, Jesus subverte a lógica de distinção social e religiosa. O Reino não se organiza a partir da respeitabilidade, mas da abertura à conversão. Essa crítica permanece atual diante das teologias que transformam a fé em instrumento de ascensão social, prosperidade individual ou domínio político. Nesse sentido, a parábola confronta diretamente a teologia da prosperidade e do domínio. O segundo filho diz “sim”, mas não vai. Ele adere verbalmente ao discurso religioso, mas sua prática não produz frutos de justiça. A fé torna-se mercadoria, promessa de sucesso, linguagem de autoafirmação. Trabalhar na vinha é substituído por reivindicar bênçãos, direitos espirituais e privilégios divinos. A lógica do Reino, porém, é outra: “Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça” (Mt 6,33). A justiça vem antes da prosperidade, e não como consequência automática de um discurso correto.
A crítica ao individualismo religioso também emerge com força. Ambos os filhos são chamados a trabalhar na vinha, não em projetos privados. A fé bíblica é sempre relacional, comunitária e histórica. Quando o segundo filho se limita ao “sim” verbal, ele reduz a fé a uma declaração de identidade, desconectada do compromisso com o outro, especialmente com os pobres, os excluídos e os feridos da história. Aqui ecoam os profetas, particularmente Amós, que denuncia um culto exuberante dissociado da justiça: “Afasta de mim o barulho dos teus cânticos… antes corra o direito como a água” (Am 5,23-24).
Sabemos que Mateus escreve para uma comunidade que vive tensões internas profundas, marcada pela ruptura com a sinagoga e pela necessidade de definir o que significa fidelidade à vontade de Deus após a destruição do Templo. A parábola dos dois filhos funciona como um espelho para essa comunidade: não basta reivindicar herança, tradição ou correção doutrinal. A identidade do discípulo se comprova na prática do Reino. Essa perspectiva será retomada pela tradição patrística. Orígenes, ao comentar o texto, destaca que o verdadeiro arrependimento se manifesta nas obras, não nas palavras. João Crisóstomo denuncia a ilusão de uma piedade verbal que não se traduz em vida transformada.
Os documentos do Magistério da Igreja retomam essa intuição de forma consistente. O Concílio Vaticano II, na Gaudium et Spes, afirma que a fé deve iluminar e transformar as realidades temporais, e não se refugiar numa espiritualidade desencarnada. Evangelii Gaudium denuncia uma fé autorreferencial, fechada em si mesma, incapaz de tocar a carne sofredora do povo. Fratelli Tutti insiste que não há verdadeira adesão a Deus sem compromisso com a fraternidade, a justiça social e o cuidado com os descartados. O segundo filho é aquele que professa, mas não se deixa implicar.
A crítica ao clericalismo emerge como consequência inevitável dessa leitura. Quando a autoridade religiosa se fundamenta no cargo e não no serviço, corre o risco de repetir a postura dos líderes denunciados por Jesus. O clericalismo produz discursos corretos, liturgias impecáveis e declarações solenes, mas frequentemente se distancia da vinha real onde o povo sofre. O primeiro filho, ao contrário, representa aqueles que, mesmo fora dos espaços institucionais de prestígio, se deixam tocar pela verdade e entram no caminho da conversão concreta.
A parábola, portanto, não é uma oposição simplista entre bons e maus, mas uma crítica radical à dissociação entre palavra e prática. Ela nos obriga a reconhecer que o Reino de Deus não se mede pela ortodoxia declarada, mas pela ortopraxia vivida. A conversão é um processo aberto, possível inclusive para aqueles que inicialmente disseram “não”. O verdadeiro escândalo não é o pecado assumido, mas a incoerência protegida pelo discurso religioso.
Mateus 21,28-32 permanece, assim, como uma palavra profética que atravessa os séculos. Ela desmascara a fé transformada em mercadoria, a religião capturada pelo poder, o discurso espiritual vazio de compromisso histórico. Ao mesmo tempo, abre uma esperança radical: ninguém está definitivamente excluído da vinha. A vontade do Pai continua sendo que seus filhos entrem, trabalhem e produzam frutos. A pergunta de Jesus — “Que vos parece?” — ecoa ainda hoje, exigindo não uma resposta correta, mas uma vida convertida. Esse eco se prolonga quando se considera que a autoridade de Jesus, questionada no início do capítulo 21, não nasce de uma investidura institucional, mas de uma coerência radical entre palavra, gesto e destino. Os líderes perguntam com que autoridade Ele faz essas coisas (Mt 21,23), e Jesus responde não com um tratado teológico, mas com uma parábola que expõe a raiz da autoridade verdadeira: fazer a vontade do Pai. A referência a João Batista, imediatamente após a parábola, reforça esse eixo. João veio “no caminho da justiça” (Mt 21,32), expressão que remete diretamente à tradição sapiencial e profética, onde o caminho não é apenas direção moral, mas estilo de vida. Provérbios insiste que o justo caminha na integridade (Pr 20,7), e o Salmo 1 contrapõe o caminho dos justos ao dos ímpios, não como discursos concorrentes, mas como práticas existenciais.
A recusa inicial do primeiro filho pode ser lida à luz das narrativas bíblicas de vocação marcadas pela resistência. Moisés reluta diante do chamado (Ex 3–4), Jeremias se declara incapaz (Jr 1,6), Jonas foge na direção oposta (Jn 1,3). Em todos esses casos, o “não” inicial não é o ponto final, mas o lugar onde a graça atua, desloca e converte. Já o “sim” vazio do segundo filho encontra paralelos nos textos que denunciam a obediência meramente formal: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13), palavra retomada por Jesus em Mateus 15,8. A Escritura, de ponta a ponta, insiste que a fidelidade a Deus não se mede pela correção verbal, mas pela adesão do coração que se traduz em obras.
A carta de Tiago radicaliza essa perspectiva ao afirmar que a fé, se não tiver obras, está morta em si mesma (Tg 2,17). Não se trata de oposição entre fé e obras, mas da denúncia de uma fé reduzida a discurso identitário. A parábola dos dois filhos antecipa essa tensão e a encena de forma pedagógica. O segundo filho crê saber o que deve dizer, mas não permite que essa palavra reorganize sua vida. O primeiro, mesmo tendo falhado no discurso, permite que a verdade o alcance no caminho e o reconduza à vinha.
O simbolismo da vinha também se aprofunda quando lido em diálogo com outras parábolas mateanas. Em Mateus 20,1-16, os trabalhadores da vinha revelam que a lógica do Reino não é a da meritocracia, mas a da graça que chama em diferentes horas e oferece dignidade a todos. Em Mateus 21,33-46, a parábola dos vinhateiros homicidas explicita a violência estrutural que se instala quando os responsáveis pela vinha se apropriam dela como se fossem donos. Em todos esses textos, a vinha permanece como espaço de conflito entre o projeto de Deus e a tentativa humana de controle, acumulação e exclusão.
Do ponto de vista sociológico, Mateus 21,28-32 revela como as elites religiosas tendem a confundir conformidade normativa com fidelidade ética. Os sumos sacerdotes e anciãos representam um sistema que se autojustifica, protegendo seus privilégios sob a aparência da obediência. Essa dinâmica é reconhecida pela sociologia da religião como um processo de institucionalização do carisma, no qual a estrutura passa a valer mais do que a experiência viva que lhe deu origem. Jesus, ao afirmar que publicanos e prostitutas precedem os líderes no Reino, rompe esse mecanismo e devolve à fé seu caráter crítico e desinstalador.
A psicologia moral ajuda a compreender essa inversão. Estudos sobre dissonância cognitiva mostram que indivíduos altamente identificados com uma imagem moral tendem a racionalizar suas incoerências para preservar a autoimagem. O segundo filho protege sua identidade dizendo “sim”, mesmo quando sua prática o contradiz. O primeiro filho, por não estar preso a essa autoimagem, pode reconhecer sua recusa e transformá-la em decisão nova. A conversão, nesse sentido, exige uma certa vulnerabilidade interior, uma abertura para admitir o erro e recomeçar.
A teologia bíblica sempre resistiu à separação entre culto e vida. Os profetas denunciam sacrifícios vazios (Os 6,6), jejuns que ignoram o pobre (Is 58,1-7) e festas religiosas que convivem com a opressão (Mq 6,6-8). Jesus se insere nessa linhagem profética e a radicaliza ao colocar os excluídos como paradigma de abertura ao Reino. Não porque sejam moralmente superiores, mas porque, privados de legitimidade religiosa, estão mais disponíveis para a conversão real.
Essa chave ilumina também o contexto litúrgico do Advento, quando o texto é proclamado. O Advento é tempo de expectativa ativa, não de passividade devocional. João Batista clama no deserto por frutos dignos de conversão (Mt 3,8), e Jesus retoma essa exigência ao afirmar que dizer “sim” ao Messias implica preparar concretamente seus caminhos. A parábola dos dois filhos torna-se, assim, um critério de discernimento para a espera cristã: aguarda verdadeiramente aquele que se deixa implicar na transformação do mundo segundo a justiça do Reino.
A crítica às teologias da prosperidade e do domínio se aprofunda quando se percebe que elas oferecem um “sim” verbal altamente performático, mas frequentemente desvinculado da vinha real da história. Prometem bênçãos sem conversão, vitória sem cruz, sucesso sem compromisso com os pobres. Esse deslocamento contradiz frontalmente o testemunho bíblico. Jesus afirma que o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça (Mt 8,20), e Paulo lembra que Cristo, sendo rico, se fez pobre (2Cor 8,9). A vinha não é palco de triunfalismo, mas espaço de serviço, desgaste e esperança. O individualismo religioso também é desmontado pelo texto. O pai chama os filhos para trabalhar, não para afirmar sua espiritualidade privada. A lógica bíblica é sempre comunitária. Desde a eleição de Israel como povo (Ex 19,5-6) até a imagem paulina do corpo com muitos membros (1Cor 12), a fé se constrói na relação. O segundo filho representa a redução da fé a um contrato individual com Deus, enquanto o primeiro, ao entrar na vinha, assume sua inserção num projeto maior do que si mesmo.
Agostinho observa que muitos estão dentro da Igreja com os lábios, mas fora com as obras, enquanto outros, aparentemente distantes, pertencem a Deus pelo amor que os move. Gregório Magno adverte que a soberba espiritual é mais perigosa do que o pecado manifesto, porque se disfarça de virtude. João Crisóstomo insiste que não basta chamar Deus de Pai; é preciso agir como filho na prática da misericórdia.
Os documentos do Magistério retomam essa herança ao denunciar uma fé desencarnada. A Gaudium et Spes afirma que a ruptura entre fé e vida cotidiana está entre os erros mais graves do nosso tempo. Evangelii Gaudium critica uma espiritualidade de bem-estar que evita o compromisso social, e Fratelli Tutti reafirma que não há verdadeira experiência de Deus sem abertura concreta ao outro, especialmente ao ferido à beira do caminho (cf. Lc 10,33-35). O segundo filho permanece na segurança da palavra; o primeiro se deixa deslocar pelo chamado.
Por fim, a parábola permanece como critério profético para a Igreja e para cada comunidade. Ela impede qualquer acomodação triunfalista e qualquer condenação apressada. Lembra que o Reino não é herança automática nem recompensa por pertencimento institucional. É dom que se acolhe no caminho da conversão e se confirma no trabalho cotidiano da vinha. Mateus 21,28-32 continua, assim, a desestabilizar discursos religiosos confortáveis e a abrir espaço para a esperança dos que, mesmo tendo dito “não”, ainda são capazes de ouvir, mudar de rumo e entrar na obra do Pai.
Essa esperança, porém, não pode ser dissociada do juízo profético que atravessa toda a Escritura. A parábola dos dois filhos se insere numa longa tradição bíblica em que Deus confronta a distância entre palavra e prática, entre culto e justiça, entre identidade religiosa e responsabilidade histórica. Já na Torá, essa tensão aparece com força. Em Deuteronômio 10,12-19, a pergunta fundamental não é sobre fórmulas de adesão, mas sobre o temor que se expressa em amar o estrangeiro, o órfão e a viúva. O povo pode proclamar sua fidelidade à aliança, mas essa fidelidade só se verifica na prática da justiça. O “sim” verbal sem compromisso concreto já era denunciado como infidelidade.
A narrativa do Êxodo aprofunda essa crítica. Israel responde “faremos tudo o que o Senhor disse” (Ex 19,8), mas rapidamente constrói o bezerro de ouro (Ex 32), revelando como a adesão verbal pode coexistir com a traição prática. Moisés, ao descer da montanha, encontra um povo que sabe dizer “sim”, mas não suporta o tempo da fidelidade. A parábola de Jesus ecoa esse drama fundante: a idolatria não começa com a negação explícita de Deus, mas com a substituição do compromisso ético por símbolos religiosos que tranquilizam a consciência.
Nos Profetas, essa denúncia se torna ainda mais contundente. Isaías abre seu livro rejeitando sacrifícios, festas e orações quando desligados da justiça social: “Aprendei a fazer o bem, buscai o direito, socorrei o oprimido” (Is 1,17). Jeremias confronta o discurso religioso que transforma o Templo em amuleto ideológico: “Não confieis em palavras enganosas, dizendo: ‘Templo do Senhor’” (Jr 7,4). Ezequiel denuncia pastores que se alimentam do rebanho em vez de cuidar dele (Ez 34), imagem que se projeta diretamente sobre o clericalismo de todas as épocas. O segundo filho da parábola é herdeiro dessa lógica: confia na palavra correta, no lugar certo, no título certo, mas se recusa a entrar na vinha concreta da história. Os Profetas Menores radicalizam ainda mais essa crítica. Amós rejeita um culto que convive com a exploração dos pobres (Am 5,21-24). Miqueias sintetiza a vontade de Deus em termos simples e exigentes: “praticar a justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com teu Deus” (Mq 6,8). Oséias afirma que Deus quer misericórdia e não sacrifícios (Os 6,6), palavra explicitamente retomada por Jesus em Mateus 9,13 e 12,7. A parábola dos dois filhos se revela, assim, como continuidade direta da tradição profética, não como ruptura.
A literatura sapiencial também oferece paralelos decisivos. Provérbios insiste que o temor do Senhor se manifesta em escolhas concretas de justiça e prudência (Pr 1,7; 11,1). O Eclesiastes desmonta a ilusão de controle religioso ao afirmar a vaidade de discursos que não transformam a realidade (Ecl 5,1-6). O livro da Sabedoria denuncia governantes que usam o poder para benefício próprio e alerta que Deus julgará com rigor os que exercem autoridade (Sb 6,1-11). Esses textos iluminam a crítica de Jesus aos líderes religiosos que absolutizam sua posição e se blindam contra a conversão.
Quando se amplia esse horizonte, torna-se impossível ler Mateus 21,28-32 sem perceber sua carga política e ideológica. Jesus não confronta apenas indivíduos incoerentes, mas sistemas religiosos capturados por lógicas de poder. O clericalismo surge aqui não como desvio recente, mas como tentação permanente: transformar o serviço em privilégio, a autoridade em domínio, o ministério em identidade separada do povo. O segundo filho encarna essa perversão quando responde corretamente, mas se recusa a sujar as mãos na vinha. Sua obediência é performática, não encarnada. Essa crítica se torna ainda mais aguda quando aplicada às capturas ideológicas contemporâneas da fé. O discurso religioso alinhado a projetos autoritários, nacionalistas ou excludentes repete o mesmo mecanismo denunciado pelos profetas: invoca o nome de Deus para legitimar desigualdades, violências e exclusões. O Antigo Testamento é explícito ao afirmar que Deus se coloca do lado do pobre, do estrangeiro e do oprimido (Dt 24,17-22; Sl 146,7-9). Qualquer teologia que relativize essa opção trai o coração da revelação bíblica, mesmo que pronuncie corretamente o nome de Deus.
A teologia da prosperidade aparece, nesse contexto, como uma atualização do pecado denunciado pelos profetas. Ela promete bênção sem conversão, sucesso sem justiça, vitória sem solidariedade. O sábio bíblico adverte que a riqueza acumulada sem equidade gera violência e ruína (Pr 22,16; Eclo 13). Jesus, herdeiro dessa tradição, afirma que não se pode servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6,24), desmontando qualquer tentativa de conciliar fé e idolatria econômica. O segundo filho diz “sim” a Deus, mas permanece fiel aos ídolos do status, do poder e da segurança religiosa.
Do ponto de vista exegético, é fundamental notar que Jesus não absolve automaticamente os marginalizados, mas reconhece neles maior abertura à conversão. Publicanos e prostitutas não são idealizados; são apresentados como pessoas que acreditaram em João Batista e mudaram de vida (Mt 21,32). A crítica não é moralista, mas histórica: aqueles excluídos pelo sistema religioso se mostraram mais disponíveis à transformação do que os que se julgavam guardiões da verdade. Aqui ressoa Ezequiel 18, onde Deus afirma que não tem prazer na morte do ímpio, mas em sua conversão.
Essa leitura impede qualquer uso ideológico da parábola para legitimar novos moralismos. O texto não cria uma nova elite espiritual, mas desestabiliza toda pretensão de superioridade religiosa. Ele atinge tanto os líderes de ontem quanto os de hoje, tanto os discursos conservadores quanto os progressistas quando estes se transformam em identidades fechadas, incapazes de autocrítica e conversão. A pergunta decisiva não é “o que dizemos?”, mas “onde estamos trabalhando?”.
No horizonte da história da salvação, a vinha permanece aberta, mas não neutra. Ela exige decisão, deslocamento e compromisso. O Deus bíblico não se satisfaz com declarações de fé, slogans religiosos ou alinhamentos ideológicos travestidos de piedade. Ele continua chamando filhos e filhas para entrar na vinha da justiça, da misericórdia e da fidelidade histórica. E continua desconfiando, como sempre fez através da Lei, dos Profetas e dos Sábios, daqueles que dizem “sim” com os lábios, mas se recusam a mover os pés.
DNonato - Teólogo do Cotidiano


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