João no deserto (Is 40,3) é a voz que clama e nos lembra que preparar o Reino exige coragem, disciplina e autenticidade. Psicologicamente, ele é o mentor que aponta para algo maior que si mesmo, e socialmente, alguém que desafia estruturas de poder — imagine confrontar Herodes com a verdade e ainda manter a compostura. Ele é a personificação da humildade ativa, da integridade que não negocia com a conveniência ou com o aplauso público. Mas Jesus adiciona o toque de ironia divina: “No entanto, o menor no Reino dos Céus é maior do que ele” (Mt 11,11b). Aqui o Evangelho nos vira do avesso. A grandeza no Reino não é sobre força, status ou mesmo rigor moral isolado. É sobre filiação divina, participação na graça, docilidade ao Espírito e amor concreto. Quem vive essa realidade, mesmo no anonimato, é maior que o maior profeta. E se ainda duvida, lembremos de Davi, escolhido entre os filhos mais humildes (1 Sm 16,7), Jeremias, perseguido e ainda assim fiel (Jr 1,6-10), ou os pobres exaltados por Deus (Lc 6,20-23).
“Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e são os violentos que o conquistam” (Mt 11,12). A “violência” aqui é esforço, coragem e dedicação. É a luta diária para romper com a acomodação, enfrentar o pecado, desafiar o conformismo e viver o Reino. É também um lembrete: o Reino não é herdado passivamente, não se compra nem se vende, nem aparece em postagens bonitinhas; é conquistado com fidelidade, coragem e amor.
Esse é também um momento perfeito para criticar a fé de mercado: a teologia da prosperidade transforma a graça em fórmula de lucro; a fé do domínio vende controle e medo; o individualismo religioso transforma a salvação em bem de consumo; e o clericalismo promove vocações como carreira e status. João Batista e o menor do Reino são os antídotos: um aponta, o outro vive, silenciosamente, a plenitude do Reino. Santo Agostinho e Orígenes lembram que a grandeza cristã é relacional, mediada pela graça e não pelo mérito humano.
Os símbolos do texto enriquecem a leitura: o deserto evoca purificação, despojamento e espera vigilante (Ex 3,1-12; Dt 8,2); o Reino dos Céus simboliza a realidade transformadora que reverte hierarquias humanas (1 Cor 1,27-29). O menor do Reino não é insignificante: ele vive plenamente a vontade divina, mesmo sem holofotes. Psicologicamente, é a realização do self autêntico, livre das ilusões de grandeza mundana.
Nos evangelhos sinóticos, encontramos reforços desse tema: Lucas diz: “Entre os nascidos de mulher não apareceu ninguém maior do que João; mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele” (Lc 7,28); Marcos apresenta João como aquele que prepara o caminho, enfatizando seu papel de testemunha (Mc 1,2-8). Nos escritos patrísticos, João é modelo de vigilância, coragem e humildade, sempre apontando para Cristo.
Hoje, João Batista ressoa de maneiras diversas: para judeus, é profeta fiel, anunciante de mudanças e justiça; para muçulmanos (Iáia), exemplo de piedade e pureza; para anglicanos e protestantes, precursor de Cristo e modelo de conversão; para ortodoxos, modelo de vida ascética, santidade e vocação litúrgica. Independentemente da tradição, sua voz continua a ecoar, apontando para a Luz que transcende fronteiras e culturas.
O Evangelho nos desafia pessoalmente: discernir a Voz, buscar com fervor, viver a Nova Aliança e manifestar a graça de Deus. O Reino é comunitário, vivido em relações de justiça e solidariedade. Historicamente, os primeiros cristãos encarnaram isso: compartilhavam tudo, cuidavam dos pobres e confrontavam sistemas de poder. Filosoficamente, a inversão de valores nos liberta do peso do status; psicologicamente, promove autenticidade e generosidade; sociologicamente, desafia estruturas injustas. No Advento, somos lembrados que preparar o Natal não é decorar ou consumir, mas viver vigilância, conversão e humildade, abrindo espaço para Cristo nascer em nós.
Na Evangelii Gaudium, Francisco nos lembra que a missão cristã não é dominar nem lucrar, mas testemunhar misericórdia; na Gaudium et Spes (n. 63–66), somos chamados à dignidade e solidariedade; em Fratelli Tutti (n. 215), aprendemos que fraternidade exige sair do conforto e encontrar o outro. João hoje provavelmente olharia para quem busca likes e seguidores online, vendendo a fé em cursos, e pensaria: “No deserto eu só precisava apontar para Ele!” E ainda assim, a mensagem permanece: verdadeira grandeza não se mede por números, mas por fidelidade, coragem e amor transformador.
Mateus 11,11-15 nos desafia a reconhecer a grandeza de João e a radicalidade do Reino: humildade, fidelidade, coragem e amor que transforma. O Advento nos convida à escuta, espera e preparação ativa: apontar para Cristo e viver a plenitude do Reino.
Aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça. Que aprendamos a diminuir para que Cristo cresça, e que, como o menor do Reino, descubramos que a verdadeira grandeza não é humana, não se compra, não se vende, não se ostenta, mas se vive, se doa e transforma.
DNonato - Teólogo do Cotidiano


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