I - A luz.
A luz de uma vela sempre carregou mais significado do que a própria chama. Antes de ser objeto litúrgico, ela foi experiência humana: o primeiro gesto de afastar o medo e ampliar o horizonte nas noites antigas, ecoando aquele primeiro sopro criador em que a Escritura narra: “Faça-se a luz” (Gn 1,3). Resgatar esse símbolo é perceber que, antes de qualquer rito, a vela fala à memória mais antiga da humanidade, onde o medo encontra coragem, e a escuridão aprende a ceder espaço ao que acende o caminho. Falar do uso das velas na liturgia não é apenas discutir rubricas, números ou normas; é entrar no território profundo onde antropologia, psicologia, sociologia, história e teologia se tocam. A vela nasce como resposta humana à escuridão e, quando a liturgia a integra, torna-se sacramento de sentido: aquilo que o ser humano sempre fez por necessidade, Deus assume como linguagem para se revelar. A história mostra que, muito antes de qualquer templo cristão, povos antigos usavam o fogo como símbolo de vida, proteção e transcendência. Na tradição bíblica, a luz aparece como primeira palavra criadora: “Faça-se a luz” (Gn1,3) como citanos acima. Esse gesto fundador marca toda a espiritualidade israelita. A coluna de fogo que guiou o povo no deserto (Ex: 13,21), a lâmpada do Templo que não podia se apagar (1Sm: 3,3), e o Salmo que canta: “O Senhor é minha luz e minha salvação” (Sl: 27,1) revelam que, desde cedo, o fogo é encontro entre o humano e o divino.
II - O Paradoxo da Sarça Ardente e o Círio Pascal
É nesse horizonte que a Sarça Ardente (Ex\ 3,1-6) se torna um dos símbolos mais impressionantes da revelação: um fogo que queima sem consumir, uma chama que não destrói, mas convoca.
- No plano antropológico, a sarça revela que o verdadeiro sagrado não devora a vida: ilumina.
- No plano teológico, mostra um Deus que não chega como tempestade ou terremoto, mas como fogo que permanece, que aquece e chama pelo nome.
A sarça é o contrário de todo fanatismo
A sarça ardente cria, assim, uma ponte simbólica direta com o Círio Pascal. Ambos revelam o mesmo paradoxo divino: fogo que ilumina sem ferir, presença que transforma sem consumir. O círio é, de certo modo, a sarça que atravessa os séculos, permanecendo acesa para cada geração que precisa reencontrar seu Êxodo. Se a sarça chama Moisés pelo nome, o círio chama cada batizado à vida nova; se a sarça revela um Deus que desce, o círio revela um Cristo que se levanta. A chama que não destrói é a mesma: chama que convoca. O círio não é “uma vela maior”, mas um sacramento de luz: representa o Cristo ressuscitado, unindo a memória da coluna de fogo do Êxodo ao túmulo vazio do Evangelho. A luz amanhecendo na Ressurreição é o jeito poético de a Escritura dizer que Deus rompeu a noite humana. O círio é essa referência: uma coluna luminosa que recorda que a morte não tem a última palavra.
III. O Fogo na Perspectiva Inter-Religiosa
Esse diálogo entre fogo e revelação não é exclusivo da Bíblia.
- No Islã: A tradição reconhece no fogo um sinal limítrofe entre o humano e o angélico. O Alcorão narra que os anjos são feitos de luz, enquanto os jinn (gênios) são feitos de fogo sem fumaça (Qur’an 55:15). No Sufismo, o fogo simboliza o amor divino que purifica, cura e transforma — uma espécie de sarça interior. A chama da vela cristã encontra eco no lampadário muçulmano que brilha: luz como conhecimento, fogo como verdade percebida.
- Nas Religiões de Matriz Africana: O fogo é princípio de vida, iniciação, ancestralidade e caminho. No Candomblé, está associado a Xangô, ao raio que ilumina e à justiça que purifica. O fogo do xirê (trazido pelas velas) representa o axé que flui e aquece a comunidade. Acender uma vela é convocar memória, força e proteção. Nos ritos da Umbanda, a vela é gesto que une céu, terra e espírito. É simbolismo profundo, antropológico.
- Nos Povos Indígenas: O fogo é coração da aldeia. Em muitas culturas, a vida comunitária começa e termina em torno da fogueira, sinal de sabedoria e local de formação. Para os Guarani, o fogo do nhe’ẽ (a alma-palavra) lembra que cada pessoa carrega uma centelha sagrada, mantendo o teko porã (“bem viver”).
Em todos esses contextos, o fogo é relação, não objeto; presença, não ferramenta; espírito, não adorno. A vela cristã ecoa intuitivamente esse mesmo gesto ancestral.
IV. História e Simbologia da Multiplicidade de Velas
No mundo antigo, velas e lâmpadas eram a única forma de iluminar. Elas entraram naturalmente na vida comunitária dos primeiros cristãos, reunidos nas casas, sobretudo à noite (At 20,7-8). O símbolo nasceu da prática. Com o tempo, o uso das velas ganhou densidade ritual, sinalizando Cristo como “Luz do mundo” (Jo 8,12).
Contudo, ao contrário de afirmações clericalistas, o valor da vela não está em “enfeitar o altar” ou “marcar a autoridade do ministro”, mas em recordar que o Mistério se revela naquilo que é simples. A luz não pertence ao ministro, mas ao povo; não aponta para quem preside, mas para Aquele que fala e age.
A multiplicidade de velas surgiu historicamente da necessidade prática e da criatividade teológica:
- Uma Vela: simboliza sobrevivência e presença. Ela fala de Cristo não por palavras, mas pela luz que insiste em permanecer mesmo quando tudo ao redor parece frágil. É muito utilizada nas Celebrações da Palavra e costuma aparecer em contextos simples e intimistas, como na Liturgia das Horas, em pequenos oratórios ou em momentos de oração pessoal e doméstica. Sua chama serena também pode acompanhar a proclamação do Evangelho em procissões mais discretas, onde a simplicidade se torna gesto de fé.
- Duas Velas (séc. IV/V): Surgiram por necessidade prática: iluminar ministros e leitores em celebrações noturnas ou pouco iluminadas. Com o tempo, ganharam sentido simbólico. Representam o testemunho duplo do Evangelho (cf. Dt 19,15) e a luz de Cristo, “Luz do mundo” (Jo 8,12) e “lâmpada para os nossos passos” (Sl 119,105). Nas Missas feriais, duas velas indicam celebração simples, mas digna, conforme o costume romano antigo. Dialogam também com a tradição judaica, da luz do Templo (cf. Ex 25,31-40) à lâmpada que simboliza a presença divina (1Sm 3,3). Assim, mesmo na liturgia cotidiana, as duas velas afirmam a presença de Cristo na Palavra e no Sacramento.
- Três Velas: (Catequese Visual da Trindade (Resumo), Em muitas regiões do Brasil, comunidades pequenas usam três velas para dar solenidade a celebrações simples. Esse gesto vem da espiritualidade popular e tem raízes bíblicas e históricas. A luz sempre simbolizou a presença de Deus — da coluna luminosa do Êxodo (Êx 13,21) ao “Deus é luz” de 1Jo 1,5. As três chamas expressam, de forma visual, a fé no Pai, Filho e Espírito Santo, retomando antigas tradições cristãs, como candelabros tríplices usados já na Idade Média Assim, ao acender três velas, a comunidade proclama silenciosamente a Trindade, une Bíblia, tradição e devoção popular, e transforma um gesto simples numa pequena aula de teologia, capaz de dar beleza e sentido mesmo às celebrações mais humildes.
- Quatro velas, usadas no Advento expressam a preparação progressiva para o Natal. Embora a coroa atual seja do século XIX, o simbolismo da luz vem da espiritualidade medieval: acender velas no inverno como sinal de esperança. Cada vela representa um domingo e lembra que a Luz definitiva se aproxima (cf. Jo 1,5). O número quatro também evoca os quatro pontos cardeais, indicando que Cristo é luz para o mundo inteiro (cf. Jo 8,12).
- Cinco Velas (símbolo não litúrgico):
- O uso de cinco velas não faz parte da tradição oficial do altar romano e não aparece nas rubricas do Missale Romanum. Surge apenas em contextos de devoção popular, ligado à mística das Cinco Chagas de Cristo, inspirada por textos como João 20,27, Isaías 53,5 e Zacarias 12,10. Pode aparecer em altares votivos, ritos de consagração, ou em altares barrocos muito ornamentados, sempre sem prescrição litúrgica. É expressão simbólica da piedade popular — legítima, mas não normativa.
- Seis velas (Idade Média Alta): O uso de seis velas na liturgia nasce como referência aos seis dias da criação (Gn 1–2,3), simbolizando a obra contínua de Deus e a luz que inaugura tudo: “Faça-se a luz” (Gn 1,3). Na Idade Média Alta, esse símbolo ganhou forma na Missa Solene dominical, onde seis velas passaram a expressar dignidade, alegria festiva e participação na nova criação realizada por Cristo, “luz do mundo” (Jo 8,12). Historicamente, o número seis representava o tempo humano em caminho para o “sétimo dia” — o descanso em Deus — de modo que sua presença no altar sublinhava a tensão entre o trabalho sagrado da liturgia e a plenitude do Ressuscitado. A patrística já via as velas como sinal de alegria e vigilância, e a tradição medieval organizou esse simbolismo. Por isso, até hoje, seis velas são usadas quando o sacerdote preside uma celebração particularmente solene, mantendo a forma clássica de expressar beleza, ordem e sacralidade.
- Sete Velas (auge da simbologia medieval): usadas nas celebrações presididas pelo bispo são um símbolo antigo, desenvolvido sobretudo na Idade Média pelo Ceremonial dos Bispos. Representam a plenitude da luz de Cristo na Igreja e remetem às sete lâmpadas diante do trono de Deus no Apocalipse (Ap 4,5), interpretadas pela tradição cristã como a totalidade dos dons do Espírito Santo (cf. Is 11,2-3). O número sete, na Bíblia, indica perfeição e aliança (Gn 1–2; Js 6,15; 2Rs 5,14). Por isso, na liturgia, a presença do bispo — sucessor dos apóstolos — é acompanhada por sete velas para expressar a completude da Igreja reunida, iluminada por Cristo, “luz verdadeira” (Jo 1,9) Assim, as sete velas não são um ornamento, mas um sinal visível da plenitude divina, associando tradição bíblica, patrística e litúrgica à missão pastoral do bispo.
- Doze velas; evocam o simbolismo bíblico do número doze — as doze tribos de Israel, os doze apóstolos e as doze portas da Jerusalém celeste (cf. Ap 21). Embora não previstas pelo rito romano para o altar, aparecem em tradições monásticas antigas e sobretudo no Rito de Dedicação de uma Igreja, quando o bispo acende doze velas sobre doze cruzes ungidas nas paredes, representando os apóstolos — fundamento da Igreja (cf. Ef 2,20). Essa prática, já documentada desde o século IV, expressa a ligação entre a comunidade local, o novo Israel de Cristo e a Cidade Santa que desce do céu.
Em todos os momentos, a de velas foi fruto da vida real das comunidades, não de uma revelação normativa.
V. A Idolatria Estética e o Clericalismo
O problema surge no século XX/XXI, quando se tenta fetichizar a quantidade de velas como sinal de “tradição”, “pureza litúrgica” ou “superioridade espiritual”. Essa obsessão estética é teologia de cenário, espiritualidade de vitrine, fé plastificada.
- O clericalismo reduz a vela a sinal de poder ritual, hierarquizando a luz como se fosse medalha de prestígio. Ele tenta sequestrar a luz para si, quando Jesus já havia denunciado aqueles que “alargam filactérias” (Mt 23,5).
- O retorno arqueologista (o desejo de ressuscitar formas antigas) cria uma liturgia de museu, não de comunidade. O Concílio Vaticano II foi cristalino: a liturgia é “ação do povo” (SC 7) e os sinais devem ser “claros, simples e adaptados” (SC 34). O ornamentalismo contraria essa pedagogia.
- Idolatria Estética: Usar velas para marcar poder (mais velas = maior autoridade) é cair no ridículo teológico. Seis velas não fazem o Evangelho mais verdadeiro. Sete velas não tornam o coração mais convertido. Uma vela — acesa com amor — vale mais que um altar decorado para fotos.
A idolatria da luz é paradoxal porque nega o próprio movimento que a luz realiza: ela existe para revelar, para abrir caminhos, para descentrar; jamais para criar sombras que protegem privilégios. É possível ter sete velas e não ter luz nenhuma; é possível ter uma vela e iluminar o mundo inteiro. A vela não pertence ao sacerdote, nem ao altar — pertence ao caminho. Seu sentido está no serviço, nunca no prestígio.
VI. O Efeito Existencial e Político da Chama Simples
As comunidades pobres guardaram o simbolismo com mais fidelidade, pois a vela era a única fonte real de luz. A mística popular compreendeu que a luz da vela é oração silenciosa, luto, esperança e protesto contra a escuridão social.
- Psicologia e Existência: A chama desperta sensação de presença, acolhimento e transcendência. É um símbolo primário que conecta memória e futuro, medo e coragem. O fogo é arquétipo do Self — centro luminoso que integra.
- Sociologia e Fraternidade: A luz compartilhada desmascara o individualismo. A chama acesa sempre pede outra. A vela testemunha a lógica da Fratelli Tutti: a vida é encontro e comunhão.
- Teologia da Fragilidade: A vela lembra que toda verdade é humilde. A luz não grita, não invade, não se impõe, ela simplesmente brilha. Em um mundo de discursos religiosos agressivos, a vela acesa é um escândalo. Ela lembra que Deus não se revela no poder, mas no brilho frágil que nenhum vento apaga. A luz verdadeira não é espetáculo, é revelação.
A luz de uma vela é sempre subversiva. Ela não ilumina apenas um altar: ilumina consciências. Ela recorda que o Cristo ressuscitado não apareceu em templos luxuosos, mas no amanhecer de um jardim. A luz não serve ao poder; serve ao humano.



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