Tendo feito essa memória inicial, começamos a nossa reflexão com Isaías 35 que emerge do chão ferido do exílio. O povo de Judá carrega no corpo e na memória a devastação política, econômica e religiosa causada pelo império. A perda da terra, do templo e da autonomia não é apenas geográfica ou institucional; trata-se de uma ruptura antropológica profunda. O exílio desorganiza o sentido da vida, corrói a esperança e instala a suspeita de que Deus tenha se ausentado da história. É nesse contexto que o profeta ousa anunciar uma reversão radical da realidade: o deserto floresce, a terra árida se transforma em jardim, a esterilidade dá lugar à fecundidade. Não se trata de metáfora ingênua, mas de uma linguagem densamente política e corporal. Cegos veem, surdos ouvem, coxos saltam, mudos cantam. São corpos reais, historicamente feridos, socialmente excluídos, religiosamente marginalizados. Na tradição bíblica, a enfermidade não é apenas biológica; ela carrega o peso da exclusão comunitária. Curar é reintegrar, devolver lugar, restaurar dignidade. Isaías anuncia um Deus que não consola à distância, mas que intervém na história para reorganizar a vida coletiva.
O Salmo 145(146) radicaliza essa visão ao apresentar um retrato de Deus em frontal oposição aos poderes deste mundo. O Senhor faz justiça aos oprimidos, dá pão aos famintos, liberta os prisioneiros, abre os olhos dos cegos, levanta os abatidos e protege o estrangeiro, o órfão e a viúva. Trata-se de uma confissão de fé com consequências sociais explícitas. O salmista denuncia a ilusão de colocar esperança em príncipes, isto é, em sistemas políticos, econômicos ou religiosos que prometem segurança, mas produzem exclusão. A resposta litúrgica — “Vinde, Senhor, e salvai-nos” — não é um pedido intimista, mas um clamor coletivo por uma salvação que alcance as estruturas da história. A salvação bíblica não se reduz à alma; ela envolve o corpo, as relações e a organização social.
A carta de Tiago introduz a dimensão do tempo como lugar teológico. A esperança precisa aprender a esperar sem se corromper. “Sede pacientes”, escreve Tiago, não como convite à resignação passiva, mas como forma ativa de resistência. Ele se dirige a comunidades pobres, exploradas por proprietários ricos, vítimas de injustiças estruturais. A paciência que Tiago propõe é a do agricultor: ele não controla o tempo, mas também não se omite. Prepara o solo, semeia, cuida, resiste às intempéries. Trata-se de uma ética do tempo que confronta o imediatismo religioso e o consumismo espiritual. A fé que exige resultados rápidos, milagres instantâneos e soluções mágicas torna-se frágil e manipulável; a paciência cristã, ao contrário, sustenta a perseverança, fortalece a esperança e impede que a fé se transforme em mercadoria.
É nesse horizonte litúrgico que o Evangelho segundo Mateus apresenta João Batista na prisão. João, o profeta do deserto, aquele que rompeu com a lógica do templo e do sacerdócio hereditário, encontra-se agora silenciado pelo poder. Historicamente, sua prisã.qo por Herodes Antipas revela o custo da fidelidade profética num sistema que alia religião, política e moralidade seletiva para preservar privilégios. Sociologicamente, João encarna a voz incômoda que precisa ser neutralizada. Psicologicamente, a prisão simboliza o limite extremo: o colapso das expectativas, a frustração, a experiência do abandono. É do cárcere, lugar da impotência e da desilusão, que nasce a pergunta decisiva: “És tu aquele que há de vir, ou devemos esperar outro?”.
Essa pergunta não nasce da incredulidade, mas da honestidade espiritual. João havia anunciado um Messias do juízo imediato, do machado à raiz das árvores, do fogo purificador. Sua expectativa estava moldada por tradições proféticas legítimas, mas incompletas. Jesus, porém, não corresponde a esse imaginário. Ele não organiza levantes armados, não ocupa palácios, não negocia com o poder. Ele caminha pelas margens, toca corpos impuros, senta-se à mesa com pecadores, cura feridas e devolve dignidade. A pergunta de João revela uma crise hermenêutica: quando Deus não age como esperamos, nossa fé é colocada à prova. Essa crise atravessa toda a Escritura — Moisés hesita, Elias foge, Jeremias protesta, os discípulos de Emaús se decepcionam — e a Bíblia não esconde essa fratura; transforma-a em lugar de revelação.
A resposta de Jesus é decisiva e profundamente escandalosa. Ele não oferece um discurso teórico, não reivindica títulos, não se impõe pela força. Ele aponta para os fatos: “Ide contar a João o que estais ouvindo e vendo”. A identidade messiânica se revela na práxis. Cegos veem, coxos andam, leprosos são purificados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a Boa Nova. Jesus retoma Isaías 35, mas o faz de modo concreto, histórico e encarnado. Cada sinal revela um aspecto do Reino: a cegueira social é vencida quando os invisíveis são reconhecidos; a surdez é superada quando se escuta o clamor dos pobres; a lepra, símbolo máximo da exclusão, é curada quando a comunidade é reconstruída; a morte recua quando a vida é colocada no centro. O Reino de Deus não se manifesta no domínio, mas na restauração.
Os paralelos sinóticos confirmam essa chave de leitura. Lucas 7,18-23 repete a cena e sublinha a Boa Nova anunciada aos pobres. Lucas 4,16-21 situa essa leitura no coração da missão de Jesus, quando ele proclama Isaías na sinagoga e afirma que a Escritura se cumpre naquele momento histórico. Marcos constrói toda sua narrativa em torno de um Messias incompreendido, que recusa o caminho do poder e assume a via da cruz. O Servo Sofredor de Isaías 53 oferece o contraponto definitivo aos messianismos triunfalistas e desmonta as teologias do domínio, os nacionalismos religiosos e os projetos de poder que instrumentalizam Deus para legitimar violência.
Quando Jesus afirma que João é o maior entre os nascidos de mulher, reconhece a grandeza daquele que ousou romper com estruturas engessadas. João, filho de Zacarias, sacerdote do baixo clero, estava destinado a herdar uma função cultual. Ao escolher o deserto, ele faz uma opção teológica e antropológica radical, deslocando o sagrado do centro institucional para a margem existencial. Sua vida torna-se denúncia viva do clericalismo, entendido como apropriação do sagrado para manutenção de privilégios. Ao afirmar que o menor no Reino é maior do que João, Jesus não o desqualifica, mas anuncia uma lógica nova: no Reino, a grandeza não se mede por função, ascetismo ou visibilidade, mas pela participação na vida nova inaugurada por Deus.
Essa palavra interpela diretamente a Igreja de todos os tempos. O clericalismo transforma o ministério em poder, o serviço em carreira e a fé em instrumento de controle. O Concílio Vaticano II, especialmente em Lumen Gentium e Gaudium et Spes, recorda que a Igreja é Povo de Deus em caminho, solidária com as alegrias e as angústias da humanidade. O magistério contemporâneo insiste que uma Igreja autorreferencial trai o Evangelho. Onde a religião se converte em espetáculo, mercadoria ou promessa de sucesso individual, o Cristo anunciado já não é o de Nazaré.
As teologias da prosperidade, do domínio e do individualismo religioso são frontalmente questionadas por este Evangelho. Jesus não promete imunidade ao sofrimento, nem sucesso econômico, nem poder político. Ele anuncia um Reino que começa pelos pobres, pelos feridos, pelos invisibilizados. A fé não é investimento com retorno garantido, mas caminho de seguimento que passa pela cruz. A tradição patrística percebeu isso com clareza: Santo Agostinho afirma que João é a voz que passa, enquanto Cristo é a Palavra que permanece; São João Crisóstomo denuncia a incoerência de honrar o Cristo do altar e desprezar o Cristo presente no pobre.
O Domingo Gaudete, longe de suspender a tensão do Advento, aprofunda-a. A alegria cristã não brota da negação do sofrimento, mas da certeza de que Deus permanece agindo no interior da história, mesmo quando seus sinais são pequenos, frágeis e silenciosos. A bem-aventurança final — “feliz aquele que não se escandaliza por causa de mim” — revela o verdadeiro escândalo: um Messias que se recusa a legitimar nossos projetos de poder, nossas imagens religiosas confortáveis e nossas alianças com sistemas injustos. A pergunta de João ecoa hoje como exame de consciência eclesial: nossas práticas de fé libertam ou apenas tranquilizam? Nossa liturgia cura ou apenas repete? Nossa espera gera compromisso ou anestesia?
A liturgia ferial da segunda semana do Advento aprofunda ainda mais esse horizonte hermenêutico. Textos como Isaías 40,1-11; 41,13-20; 48,17-19; 49,1-4; 54,1-10; 55,1-3.6-11 e Malaquias 3,1-4 constroem o pano de fundo no qual João aparece como síntese viva da tensão entre promessa e cumprimento. “Consolai, consolai o meu povo” não é apelo sentimental, mas promessa histórica de caminhos aplainados e montes rebaixados. João encarna essa palavra ao tornar o deserto lugar teológico, denunciando uma religião incapaz de consolar os feridos da história. Isaías insiste que Deus segura a mão do servo aparentemente fracassado, daquele que trabalha sem ver resultados imediatos. Essa imagem dialoga diretamente com João na prisão, vivendo uma crise vocacional profunda, na qual fidelidade parece conduzir ao esquecimento. Malaquias anuncia o mensageiro que prepara o caminho como fogo do fundidor; João assume essa expectativa, enquanto Jesus a realiza pela restauração e não pela eliminação. O juízo acontece como discernimento da vida, não como espetáculo punitivo.
As leituras feriais recordam ainda que a palavra de Deus não volta vazia. Mesmo quando o profeta não vê o cumprimento, a palavra continua operando na história. João não fracassou; cumpriu sua missão até o limite. Sua grandeza não está no sucesso, mas na fidelidade. A partir de Jesus, a lógica do Reino se desloca definitivamente do castigo para a graça que transforma, exigindo conversão das imagens de Deus, das práticas religiosas e das estruturas comunitárias.
Do ponto de vista antropológico e sociológico, João representa todos os que denunciam injustiças e acabam marginalizados, presos ou silenciados. Jesus representa a continuidade dessa denúncia por meio da proximidade com os pobres, da cura das feridas e da reconstrução da esperança. A alegria do Advento nasce dessa certeza: Deus permanece fiel mesmo quando seus profetas são encarcerados e suas palavras parecem abafadas.
Celebrar Mateus 11,2-11 no Domingo Gaudete é assumir que a pergunta de João não é sinal de fraqueza, mas de maturidade espiritual. É a pergunta de quem leva Deus a sério, de quem não se contenta com respostas fáceis, de quem prefere a verdade que liberta à ilusão que conforta. A alegria que se anuncia não é o fim da espera, mas a certeza de que, mesmo no cárcere da história, os sinais do Reino continuam acontecendo onde cegos veem, coxos andam, pobres são evangelizados e a dignidade humana é restaurada. Essa é a Boa Nova que sustenta a esperança e impede que a fé se acomode ao silêncio injusto do mundo.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.