Mateus inicia seu evangelho com a expressão “Livro da origem de Jesus Cristo”, ecoando deliberadamente o Gênesis (Gn 2,4; 5,1). Trata-se de uma reescritura da história da criação à luz da encarnação: em Jesus inaugura-se uma nova gênese, não por ruptura com o passado, mas por sua recapitulação e transfiguração. Como afirmará mais tarde Paulo, “quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sob a Lei” (Gl 4,4). A genealogia é, portanto, uma teologia do tempo: Deus não age fora da história, mas dentro dela; não despreza os processos humanos, mas os assume; não ignora a carne, mas faz dela lugar de revelação.
Ao identificar Jesus como “filho de Davi, filho de Abraão”, Mateus articula duas promessas fundamentais do Antigo Testamento. Abraão representa a eleição gratuita e universal: “em ti serão benditas todas as famílias da terra” (Gn 12,3). Davi representa a esperança messiânica real, ferida pelo fracasso histórico da monarquia, mas jamais abandonada por Deus (2Sm 7,12-16). A genealogia mostra que a promessa não se realiza por pureza moral nem por linearidade política, mas atravessando rupturas, infidelidades e crises. Aqui já se encontra uma crítica implícita a toda teologia do domínio, que identifica a ação de Deus com sucesso, poder ou vitória visível.
A estrutura tripartida da genealogia — de Abraão a Davi, de Davi ao exílio da Babilônia, do exílio até Cristo — não é mero artifício mnemônico. Ela oferece uma leitura teológica da história de Israel: promessa, realeza e ruptura; eleição, poder e queda; esperança, fracasso e recomeço. O exílio ocupa o centro da genealogia, lembrando que a experiência fundante da fé bíblica não é o triunfo, mas a perda. Como afirmam os profetas, foi no exílio que Israel reaprendeu a confiar em Deus sem templo, sem rei e sem privilégios (Is 43,2; Os 2,16). Colocar o exílio no coração da genealogia é uma denúncia permanente contra toda religião triunfalista.
A presença de mulheres na genealogia — Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias — rompe frontalmente com os padrões genealógicos patriarcais. Todas elas carregam histórias marcadas por transgressão, marginalidade ou estrangeiridade. Tamar, que se faz passar por prostituta para garantir justiça (Gn 38); Raab, a prostituta cananeia que protege os espiões (Js 2); Rute, a moabita estrangeira (Rt 1–4); Betsabé, vítima de violência e manipulação real (2Sm 11). Essas mulheres não aparecem apesar de suas histórias, mas por causa delas. Mateus afirma, assim, que a encarnação se dá no interior de situações ambíguas, onde a vida resiste mesmo quando a lei falha. Trata-se de uma crítica radical ao moralismo religioso e ao clericalismo que exclui em nome de uma pureza abstrata.
Do ponto de vista antropológico e sociológico, a genealogia revela que a identidade humana não é construída no vazio, mas herdada, transmitida, atravessada por vínculos e conflitos. Ninguém nasce do zero. Jesus assume uma história concreta, com suas sombras e feridas, recusando toda espiritualidade desencarnada. Isso confronta diretamente a lógica individualista contemporânea, que transforma a fé em experiência privada e descolada das responsabilidades históricas e coletivas.
A tradição patrística leu essa genealogia à luz da escada de Jacó (Gn 28,10-22). Santo Irineu vê nela a recapitulação da humanidade inteira em Cristo, que desce até a nossa condição para nos elevar à comunhão com Deus. Santo Agostinho afirma que os nomes da genealogia são como pedras vivas, formando o caminho pelo qual Deus entra no mundo. São João Crisóstomo insiste que Mateus não esconde os pecados dos antepassados porque o evangelho não é propaganda moral, mas anúncio da graça que transforma. Leão Magno dirá que, ao assumir essa linhagem, Cristo dignifica toda a história humana.
A escada de Jacó, reinterpretada cristologicamente, torna-se símbolo da encarnação: Deus desce, os anjos sobem e descem, e a humanidade é chamada a atravessar esse movimento. Psicologicamente, isso implica um processo de integração: não se chega à maturidade espiritual negando a própria história, mas reconciliando-se com ela. A fé madura não foge do passado; ela o atravessa à luz da promessa.
Nesse horizonte, torna-se indispensável um diálogo mais atento com a genealogia de Jesus apresentada por Lucas (Lc 3,23-38), cuja disposição, intenção teológica e horizonte comunitário diferem significativamente da proposta mateana. Enquanto Mateus inicia sua genealogia em Abraão e a conduz até Jesus, Lucas faz o movimento inverso: parte de Jesus e remonta até Adão, “filho de Deus”. Essa inversão não é um detalhe estilístico, mas uma opção hermenêutica. Mateus escreve a partir da memória de Israel e sublinha a fidelidade de Deus às promessas feitas a um povo concreto; Lucas, ao escrever para comunidades marcadas pela presença gentílica, amplia o horizonte até a humanidade inteira. Se Mateus insiste que Jesus é o Messias de Israel, Lucas proclama que esse Messias pertence, desde o princípio, à história universal.
A diferença de ponto de partida revela também distintas compreensões do tempo da salvação. Em Mateus, a genealogia avança por etapas bem definidas, marcadas por promessa, realeza e exílio, como quem caminha pela história em busca de seu cumprimento. Em Lucas, o movimento retrospectivo sugere uma leitura pascal: é a partir do Cristo revelado que toda a história humana é reinterpretada. Hermeneuticamente, Mateus convida a esperar; Lucas ensina a reler. Um prepara o Advento; o outro prolonga a Páscoa na memória do mundo.
Outra diferença relevante está na figura de José. Em Mateus, José é apresentado como elo jurídico da linhagem davídica, garantindo a Jesus o título messiânico dentro da tradição de Israel. Em Lucas, José aparece de modo mais discreto: “Jesus era, como se pensava, filho de José”, deslocando o foco para a ação soberana de Deus. Lucas prepara o leitor para compreender que a filiação última de Jesus não se esgota na genealogia humana, ainda que não a negue. Aqui se manifesta uma tensão fecunda entre história e transcendência, corpo e mistério, carne e Espírito.
Também chama atenção o fato de Lucas não mencionar explicitamente as mulheres que Mateus destaca. Não se trata de apagamento, mas de outra estratégia narrativa. Lucas distribui a presença feminina ao longo de todo o seu evangelho, dando voz a Isabel, Maria, Ana, às mulheres discípulas e às marginalizadas. Mateus concentra essa subversão já na genealogia; Lucas a dilui na narrativa. Ambos convergem na mesma teologia: Deus age a partir das margens.
Ao chegar até Adão, Lucas confere à genealogia uma densidade antropológica decisiva. Ao vincular Jesus ao primeiro ser humano, o evangelista afirma que a encarnação responde não apenas à história de Israel, mas à condição humana como tal. Aqui ressoa fortemente a intuição paulina: Cristo é o novo Adão (Rm 5; 1Cor 15), aquele que assume a humanidade ferida para inaugurá-la de novo. Se Mateus apresenta Jesus como o ponto de convergência da promessa, Lucas o apresenta como o ponto de partida de uma humanidade reconciliada.
Essa complementaridade ilumina também a crítica às teologias contemporâneas do individualismo e da prosperidade. Mateus desmonta a ilusão de um Messias vencedor ao revelar uma genealogia atravessada por fracassos históricos; Lucas desmonta a fantasia de uma salvação privada ao inserir Jesus na cadeia inteira da humanidade. Um denuncia o triunfalismo religioso; o outro denuncia o isolamento espiritual. Ambos rejeitam a fé como mercadoria e a salvação como privilégio.
O Magistério da Igreja retoma essa intuição ao afirmar, na Gaudium et Spes, que “o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado” (GS 22). Evangelii Gaudium denuncia uma fé desligada da realidade, incapaz de tocar as feridas do mundo, enquanto Fratelli Tutti insiste que não há futuro sem memória, nem fraternidade sem história compartilhada. A genealogia de Mateus, em diálogo com Lucas, permanece profundamente atual: ela resiste à fé como mercadoria, à espiritualidade do sucesso e às promessas fáceis de prosperidade.
Assim, quando a Igreja proclama Mateus 1,1-17 nos dias maiores do Advento, ela o faz como exercício de purificação do olhar. Antes do presépio, vêm os nomes; antes da emoção, a memória; antes do nascimento, a história. O Natal não é fuga do mundo, mas sua assunção amorosa por Deus.
Antes de adorarmos o Menino na manjedoura, somos convidados a reconhecer as genealogias que nos constituem hoje: os pobres esquecidos, as mulheres silenciadas, os povos descartados, os migrantes, os corpos feridos por sistemas econômicos injustos e por religiões cúmplices do poder. Somente quando essas histórias entram no coração da fé é que o Natal deixa de ser rito repetido e se torna boa notícia. O Deus que nasce em Belém continua escolhendo nascer na história — e essa escolha permanece, ontem como hoje, profundamente subversiva.
Essa subversão, porém, não se limita ao passado narrado pelas Escrituras; ela atravessa o presente e interpela diretamente as formas contemporâneas de viver, anunciar e organizar a fé. A genealogia de Jesus, lida à luz do Advento e da encarnação, torna-se critério de discernimento espiritual e eclesial. Ela pergunta silenciosamente a cada comunidade: de quais histórias estamos dispostos a nos tornar herdeiros? Quais nomes aceitamos carregar? Quais feridas permitimos que Deus habite? Em uma cultura religiosa obcecada por resultados, crescimento numérico e visibilidade midiática, a genealogia lembra que Deus prefere o tempo longo, a fidelidade discreta e a fecundidade que nasce da fragilidade assumida.
Nesse sentido, Mateus 1,1-17 constitui também uma crítica estrutural à lógica mercantil que atravessa amplos setores do cristianismo contemporâneo. A fé transformada em produto precisa de narrativas rápidas, testemunhos espetaculares e promessas de ascensão imediata. A genealogia, ao contrário, é lenta, repetitiva, marcada por silêncios e por nomes que nada têm de vendáveis. Ela resiste à estetização da religião e à redução do Evangelho a autoajuda espiritual. Aqui, não há slogans, mas memória; não há marketing, mas promessa; não há meritocracia, mas graça que atravessa gerações.
A teologia da prosperidade, ao identificar bênção com sucesso econômico e estabilidade material, rompe com essa lógica genealógica. Se a prosperidade fosse o critério da ação de Deus, o exílio jamais poderia ocupar o centro da história da salvação. A genealogia de Mateus recoloca o fracasso, a perda e a espera como lugares teológicos. Ela afirma que Deus age também — e talvez sobretudo — quando os sistemas entram em colapso, quando os projetos humanos falham e quando a história parece suspensa. Trata-se de uma pedagogia divina profundamente incompatível com a idolatria do êxito.
Do mesmo modo, a teologia do domínio, que sonha com um cristianismo forte, hegemônico e politicamente triunfante, é desmentida por essa linhagem frágil. O Messias não nasce de uma genealogia de conquistadores, mas de uma história atravessada por dependência, estrangeiridade e vulnerabilidade. A encarnação não legitima projetos de poder religioso, mas os relativiza. O Reino anunciado por Jesus não se impõe por força institucional, mas cresce como semente escondida na terra (Mc 4,26-29), fiel à lógica da genealogia e não à lógica da dominação.
Também o clericalismo encontra aqui um limite teológico intransponível. Ao colocar a história da salvação fora dos muros do templo e para além das linhagens sacerdotais, a genealogia recorda que Deus não se deixa confinar por estruturas religiosas autorreferenciais. A mediação da fé não pertence a uma elite espiritual, mas passa pela carne do povo, por histórias familiares, por mulheres invisibilizadas, por estrangeiros integrados à força da promessa. Como recorda o Concílio Vaticano II, o povo de Deus caminha na história como sujeito da fé, e não como simples destinatário passivo das decisões clericais (LG 9–12).
Sob a perspectiva da psicologia profunda, a genealogia oferece ainda uma chave decisiva para compreender os processos de amadurecimento humano e espiritual. Não há futuro saudável sem reconciliação com o passado. O sujeito que nega sua própria história permanece fragmentado; a comunidade que idealiza suas origens torna-se incapaz de conversão. A encarnação revela que Deus não opera pela negação da memória, mas pela sua integração redentora. Curar-se não é apagar o que foi vivido, mas permitir que a graça atravesse aquilo que parecia condenado ao silêncio.
Por isso, a proclamação dessa genealogia nos dias maiores do Advento possui uma força espiritual singular. No momento em que a ansiedade coletiva se intensifica, quando o consumo acelera e a espera se torna quase insuportável, a liturgia desacelera deliberadamente o ritmo. Ela nos obriga a escutar nomes, gerações, rupturas. Ensina-nos que a verdadeira esperança não nasce da pressa, mas da confiança; não do controle, mas da entrega; não da fuga da história, mas da sua travessia.
Assim, a genealogia de Jesus segundo Mateus, em diálogo fecundo com a genealogia lucana, não é apenas memória do passado nem preparação para uma festa religiosa. Ela é critério de discernimento para o presente e profecia para o futuro. Revela um Deus que permanece fiel mesmo quando a história humana parece infiel; um Deus que prefere nascer em processos lentos a impor-se por intervenções espetaculares; um Deus que continua descendo a escada da história para encontrar uma humanidade cansada, ferida e ainda inacabada.
Diante dessa escada armada entre o céu e a terra, a Igreja é chamada a decidir se deseja subir pelos degraus do poder ou descer pelos degraus da encarnação. A genealogia não deixa espaço para neutralidade: ou se acolhe a lógica do Deus que assume a história, ou se constrói uma religião que a ignora. No silêncio desses nomes antigos, ecoa ainda hoje uma pergunta radical: estamos dispostos a deixar que Deus continue escrevendo a salvação com as linhas imperfeitas do nosso tempo?
DNonato – Teólogo do Cotidiano


Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.