No sábado da 14ª Semana do Tempo Comum o Evangelho é o seguinte Mateus 10,24-33, que não é consolo piedoso, mas carta de envio. Não é discurso devocional, mas convocação profética. Jesus não fala como quem oferece alívio, mas como quem forma combatentes da esperança. “O discípulo não está acima do mestre.” A sentença desarma expectativas e alinha o coração: quem quiser segui-lo, que prepare os pés para o caminho da incompreensão, e a alma para a fidelidade até o fim. Não há seguimento sem cruz, nem verdade que se sustente sem feridas.
Se o chamaram de Belzebu, que nomes darão aos seus? O Evangelho desmascara desde o início as ilusões triunfalistas. Não haverá prestígio, reconhecimento ou poder – haverá oposição. E isso não é sinal de fracasso, mas de coerência. O discipulado não é proteção contra a dor, mas comunhão com a missão. Assim foi com os profetas. Jeremias gritava entre soluços que fora seduzido por Deus (cf. Jr 20,7), mas logo depois lamentava os insultos e zombarias que sofria. Ele tentava calar, mas a Palavra ardia como fogo em seus ossos (v. 9). Como Jeremias, o discípulo de Jesus vive com a Palavra colada na carne – não pode ignorá-la, nem esconder-se dela.
Ezequiel foi enviado a um povo de testa dura (Ez 2,4), e Deus lhe disse: “Farei tua fronte dura como a deles” (Ez 3,8). A missão, portanto, não é só proclamar: é suportar. Jesus prepara os seus como quem os reveste de coragem. “Não temais”, ele repete três vezes, como um mantra contra os medos que paralisam. Não temais os insultos. Não temais os que matam o corpo. Não temais os que detêm o poder temporário. A coragem não nasce da autossuficiência, mas da confiança em um Deus que vê o invisível e sustenta os rejeitados.
É esse o coração da mensagem: Deus vê. Deus cuida. Deus sustenta. “Até os cabelos da vossa cabeça estão contados” (Mt 10,30). Esse versículo não é poesia barata – é revelação escandalosa. Num mundo que despreza, silencia e consome vidas, Deus conta cabelos. Deus observa pardais. E se dois pardais são vendidos por quase nada, e ainda assim não caem sem o consentimento do Pai (v. 29), quanto mais Ele não se importará com seus filhos? Contra o cálculo frio do sistema, Jesus anuncia um cuidado que abraça o detalhe. Como o Salmista, o discípulo pode dizer: “O Senhor é minha luz e salvação – a quem temerei?” (Sl 27,1). A fé não elimina o medo, mas o supera. Quem vive na presença do Pai não teme os gritos do mundo. Os gritos do mercado. Os gritos da religião institucionalizada. Porque o discipulado de Jesus não é evasão espiritual, mas encarnação radical. Como os três jovens na fornalha de Babilônia, que disseram: “Nosso Deus pode nos salvar... mas se não o fizer, ainda assim não adoraremos o teu ídolo” (Dn 3,17-18), também o discípulo caminha sem garantias históricas, mas com fidelidade incondicional.
Confessar Jesus é esse compromisso. Não apenas gritar o nome dele, mas assumir sua vida, seu projeto, suas companhias. Confessar Jesus é estar onde ele está: entre os famintos, os perseguidos, os esquecidos. É não ceder ao conforto dos templos fechados nem ao prestígio das alianças com o poder. É recusar as teologias do domínio, da propriedade, da performance espiritual. É resistir à religião que não transforma, que se tornou mercado de bênçãos, que se ajoelha diante dos senhores da guerra, do lucro e da moral seletiva.
Negar Jesus não é apenas apostatar com palavras. É calar quando se deve falar. É omitir-se diante da injustiça. É relativizar o Evangelho para não desagradar. É ungir discursos de ódio com palavras bíblicas. É, como diz Amós, manter o culto enquanto se pisa os pobres e se engole a injustiça (cf. Am 5,21-24). É jejuar enquanto se oprime o trabalhador e se ignora os que têm fome (cf. Is 58,3-7). É manter ritos de aparência enquanto a vida real grita por conversão. Jesus advertiu: “Quem me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai.”Mas a esperança não cessa. Sabedoria já dizia: “Aos olhos dos insensatos pareciam ter morrido, mas estão em paz” (Sb 3,2). Porque Deus vê os que não negociam. Deus reconhece os que não se vendem. Deus honra os que não se calam. No tribunal eterno, não serão lembrados os discursos retóricos, os likes, os cargos eclesiais, os seguidores digitais, os templos cheios. Serão lembrados os nomes dos que confessaram Jesus com a vida. Com os gestos. Com a presença ao lado dos pequenos.
Nosso tempo exige mártires éticos. Mártires da solidariedade. Mártires da fidelidade ao Evangelho encarnado. Como os mártires da UCA em El Salvador, assassinados por proclamarem a justiça em nome do Evangelho latino-americano. Como os indígenas de Roraima e do Xingu, que tombam diante da ganância dos que veem a terra como mercadoria. Como os mártires anônimos do sertão, das favelas, das comunidades ribeirinhas, que confessam Cristo defendendo a vida com coragem e ternura. Como Dom Romero, como Dorothy Stang, como os que morrem sem nome por confessar a verdade no chão da vida. Como os defensores da floresta, os jovens assassinados nas periferias, os que caem nas terras invadidas por ganância e gritam com o próprio sangue que a vida é sagrada. A Igreja precisa recordar – como proclama a Gaudium et Spes – que “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1). Também a Lumen Gentium reconhece que “o Espírito Santo não apenas santifica o povo de Deus [...] mas o enriquece com virtudes e carismas” (LG 12), entre eles o testemunho até o sangue. E o Papa Francisco – que hoje já descansa no Senhor – proclamou com vigor: "O mártir não é um herói por força própria. É graça. Graça de confessar Jesus até o fim" (Evangelii Gaudium, 93).. Uma Igreja que ignora o martírio cotidiano de seu povo trai seu Senhor.
Como Sifrá e Puá, parteiras que desobedeceram ao faraó para preservar a vida dos meninos hebreus (cf. Ex 1,17), também os discípulos hoje são chamados à desobediência santa diante de sistemas que promovem a morte. Como o Servo de Isaías que não recuou diante dos que o feriam (cf. Is 50,6-7), o seguidor do Cristo não retrocede quando a verdade fere os confortos da religião de fachada.
Confessar Jesus é praticar justiça, amar a misericórdia e caminhar humildemente com Deus (cf. Mq 6,8). Essa é a síntese da fé. Não é decorar doutrinas nem ostentar cargos. É encarnar a misericórdia. É escandalizar o mundo com a bondade. É ferir o sistema com o perdão. É incomodar o clero com a compaixão sem controle.
Confessar é com os pés, indo ao encontro do caído. É com as mãos, erguendo o que foi descartado. É com o corpo todo, suando, sofrendo, sorrindo, encarnando a Boa Nova. Confessar é resistir ao espetáculo. É denunciar a fé convertida em produto, o Evangelho transformado em coaching, o templo tornado mercado.
Confessar é resistir.
Confessar é permanecer.
Confessar é não vender Jesus ao mercado.
Confessar é dizer não à mentira, mesmo quando ela veste batina, toga ou farda.
Confessar é carregar a cruz com ternura e firmeza.
Não temais.
Ainda que zombem.
Ainda que vos expulsem.
Ainda que vos deixem sós.
Pois o Pai vê.
O Filho confessa.
O Espírito sustenta.
A verdade será revelada. A justiça se fará.
E o nome de cada fiel será pronunciado com ternura e firmeza diante do Pai.
Que sejamos, então, dos que confessam. Dos que resistem. Dos que não se vendem nem se calam.
Porque o Reino não é promessa vazia: é anúncio que já começou nos passos de quem ousa dizer “sim” em meio à escuridão.
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