sábado, 5 de julho de 2025

"Nem tudo se explica, mas tudo pode ser abraçado"

Em memória de Juliana Marins

"Would you know my name

If I saw you in heaven?"

— Eric Clapton, “Tears in Heaven”

"Será que você saberia meu nome, se eu te encontrasse no céu?"

A pergunta atravessa a canção como uma prece embargada. E talvez seja essa a pergunta de tantos pais que enterram um filho antes do tempo. Para muitos, a notícia sobre a queda e morte de Juliana Marins na Indonésia foi apenas isso: uma notícia. Uma tragédia entre tantas. Um rosto em meio a tantos nomes que cruzam as manchetes por segundos e logo são esquecidos. Mas para sua família, para seus pais, essa notícia é uma ausência que não passa, é um corte na carne, é uma saudade que ninguém pode traduzir. É uma dor que não se explica, mas que continua morando no corpo e na memória, a cada manhã, a cada silêncio.

O sepultamento de Juliana atravessa mais do que oceanos. Ele nos atinge a todos, porque rompe uma ilusão que preferimos manter: a de que a vida sempre terá tempo, de que a juventude é invencível, de que o mal está distante. Mas ele veio, rasgou o tempo e nos fez ver. Uma filha do Brasil, uma jovem cheia de sonhos, morta longe de casa, com seus últimos momentos registrados por um vídeo que ninguém deveria ter visto. Uma imagem que não precisava existir, e que, no entanto, agora permanece gravada como denúncia, como súplica, como escândalo.

Diante do corpo de Juliana sendo trazido de volta ao país, os braços de seus pais se estendem como quem quer reverter o tempo. Como quem quer trazê-la de volta não apenas da Indonésia, mas da morte. É o mesmo gesto de Maria aos pés da cruz, sem entender, mas permanecendo. O mesmo gesto de tantas outras mães e pais que vivem o luto mais cruel: o de enterrar um filho. E, pior ainda, o luto daqueles que nem sequer têm um corpo para enterrar.

Há mães que dormem abraçadas a retratos, sem saber se os filhos ainda vivem ou já partiram. Há pais que frequentam necrotérios e hospitais tentando reconhecer um corpo que preferem nunca encontrar. São mulheres e homens que vivem entre boletins de ocorrência e orações silenciosas, entre a esperança e o desespero, com uma dor que não se publiciza, mas que carrega uma cruz de cada dia. A dor dos pais de Juliana é única, mas ela dialoga com essas tantas outras dores que se acumulam neste país onde vidas são silenciadas, onde jovens são mortos ou desaparecem sem resposta, sem justiça, sem nome. A morte de Juliana não é só uma tragédia. É também um espelho. Porque também nós, vivos, vivemos muitos sepultamentos invisíveis. Quantas vezes enterramos sonhos sem fazer velório? Quantas vezes perdemos alguém – por distância, por violência, por abandono – e seguimos respirando como se viver fosse só isso? Quantas vezes enterramos partes de nós sem sequer perceber? Em uma sociedade onde tudo precisa continuar funcionando, onde o luto é visto como fraqueza, o tempo da dor se torna subversivo. Mas ele é necessário. Porque há perguntas que só podem ser feitas na sombra do sepulcro. E há lágrimas que são semente de compaixão.

O sofrimento dos pais de Juliana não precisa ser explicado. Precisa ser acompanhado. Não com discursos apressados, nem com teologias de conveniência, mas com presença. Como Jó, que acusou até mesmo os amigos por tentarem justificar o injustificável: “Falareis falsidades em favor de Deus?” (Jó 13,7). Há um momento em que até a fé se cala. E se cala não por covardia, mas por reverência ao mistério. Como Jesus no Getsêmani, que suou sangue, que pediu para que o cálice passasse, que não negou o terror da morte.  É esse mesmo Jesus que, na cruz, grita: “Meu Deus, por que me abandonaste?” (Mc 15,34). E ao gritar, nos ensina que até Deus, feito homem, atravessou o abandono. Por isso, não ofereçamos respostas a quem está sofrendo. Ofereçamos ombro. Ofereçamos silêncio. Ofereçamos fidelidade. Porque, como diz a Escritura, “Eis que estarei convosco todos os dias” (Mt 28,20). Não para evitar a dor, mas para estar dentro dela conosco.

Há quem diga que o túmulo é o fim. Mas os cristãos creem que o sepulcro pode ser um ventre. O corpo de Juliana, agora descansando em sua terra, não é só despedida. É também memória. É também semente. “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morre, permanece só; mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24). E a vida de Juliana – por mais curta, por mais injustamente interrompida – continua a falar. Sua história agora pertence a todos nós. Como semente que desafia a morte. Como rosto que recusa ser esquecido.

Nessa semana , ao sepultarmos Juliana, sepultamos também um pouco da fé ingênua na segurança das coisas. Enterramos a ilusão de que tragédias só acontecem longe. Mas também semeamos algo: o desejo de sermos um povo mais presente, mais compassivo, mais atento. Que essa morte não passe em branco. Que sua dor não se perca em estatísticas. Que ela nos desperte para a vida dos nossos, para o cuidado com os nossos jovens, para a defesa da dignidade humana – aqui ou na Indonésia, em nossas ruas ou nas periferias do mundo.

Nem tudo se explica. Mas tudo pode ser abraçado. E talvez seja esse o nome de Deus: aquele que abraça. Que se deita conosco no túmulo. Que chora conosco diante da pedra. Que espera conosco o dia da ressurreição – mesmo que ainda distante.

À família de Juliana, não temos consolo, mas temos solidariedade. Não temos respostas, mas temos braços. Não temos palavras certas, mas temos presença. Que vocês sintam o carinho de um país inteiro que não esquece. Que ama. Que respeita. Que se inclina diante do mistério da dor de vocês como quem entra em solo sagrado. E que Juliana, agora livre de todas as dores, continue sendo presença na ausência, como uma estrela que brilha mesmo quando a noite parece não ter fim.

Mas seria injusto — e desumano — não denunciar também o veneno que surge sempre que uma tragédia se transforma em palco para julgamentos. Há quem, com a frieza de quem nunca conheceu o amor, ouse insinuar que Juliana foi culpada por sua própria morte. Como se o desejo de viver, de viajar, de amar e existir em liberdade fosse crime. Juliana não foi imprudente, foi jovem. E ser jovem nunca deve ser uma sentença de morte. Há também os que tentam sequestrar sua história para alimentar narrativas ideológicas: uns à esquerda, outros à direita, todos distantes da dor real. A morte de uma filha não é pauta política. É um altar onde se deve descalçar os pés. É chão sagrado onde não cabem manipulações nem cinismos. Quem faz da dor um palanque revela que perdeu, há muito, a capacidade de sentir.

Juliana não é uma estatística. É semente. É santuário. A juventude que ela representava — com seus riscos, desejos, buscas e ousadias — é, como nos recorda o Documento 85 da CNBB, um lugar teológico, um espaço concreto em que Deus se manifesta e desafia a Igreja e a sociedade. Desprezar a juventude, culpabilizá-la por sua própria vulnerabilidade ou silenciá-la diante da violência é pecar contra a revelação do próprio Deus. Juliana nos revela, mesmo no sofrimento, esse rosto de Deus que pulsa onde muitos não ousam ver: na dor dos pobres, no grito das mulheres, no sangue inocente das juventudes que seguem sendo crucificadas em nosso tempo.

DNonato – Teólogo do Cotidiano,  Para Juliana, para seus pais, e para todas as mães que esperam em silêncio e esperança.


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