sábado, 5 de julho de 2025

Um olhar em Lucas 10,1-12.17-20 - 14º domingo do tempo comum

 


A missão do Reino: entre envio, compromisso e subversão do sistema

A liturgia deste 14º Domingo do Tempo Comum propõe as seguintes leituras: Isaías 66,10-14; Salmo 65(66),1-3a.4-5.6-7a.16.20 (R. 1); Gálatas 6,14-18 e o Evangelho de Lucas 10,1-12.17-20, que guia nossa reflexão.

Jesus envia setenta e dois discípulos em missão. Este gesto, situado no caminho para Jerusalém (cf. Lc 9,51), é mais do que um deslocamento geográfico: é um deslocamento teológico, antropológico e político. Trata-se de um movimento de ruptura com os modelos de poder religiosos e imperiais. A narrativa lucana não descreve apenas uma ação evangelizadora em sentido espiritualista ou desencarnado. Ao contrário: revela um chamado à transformação concreta da vida e da sociedade. Jesus, que é o próprio Reino em movimento, envia discípulos não para dominar, mas para anunciar a paz; não para impor doutrina, mas para curar feridas; não para condenar, mas para semear presença amorosa em um mundo desfigurado pela opressão.

O número setenta e dois remete, na tradição judaica, à totalidade das nações da terra (cf. Gn 10, segundo a Septuaginta), revelando que a missão do Reino é universal, inclusiva e transgressora de fronteiras. É uma resposta escancarada ao nacionalismo religioso e às castas clericais que monopolizavam o acesso ao sagrado. O envio em duplas também denuncia o individualismo religioso e político. Não há missionário solitário no Reino. Evangelizar é caminhar com alguém, dividir o fardo, celebrar a esperança e resistir à tentação do “salvador da pátria” — herança messiânica invertida que muitos pastores e políticos alimentam hoje com seus projetos autoritários.

A palavra de Jesus — “A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos” (Lc 10,2) — não é apenas um chamado vocacional. É uma denúncia. O campo da vida está repleto de injustiças, violências, angústias existenciais e estruturas excludentes. A escassez de trabalhadores não é apenas quantitativa, mas qualitativa: faltam agentes pastorais e políticos que realmente encarnem a missão como serviço aos pobres — e não como carreira ou palanque. O sistema não forma trabalhadores da messe, mas gestores da ordem. Por isso, o pedido de oração ao “Senhor da messe”: essa missão não se sustenta na força, mas na entrega radical de quem vive a fé como compromisso social e espiritual inseparáveis.

A frase “Eis que vos envio como cordeiros entre lobos” (Lc 10,3) revela o caráter de enfrentamento da missão. A Boa Nova de Jesus não é compatível com o império, com a acumulação, com o clericalismo, nem com a indiferença institucionalizada. Os lobos são reais: milícias ideológicas, religião a serviço do lucro, discursos de ódio que tomam púlpitos e parlamentos. E os cordeiros são os que, mesmo sem armas, desafiam o sistema com coragem e doçura. Aqui ressoa o testemunho do pastor e deputado Henrique Vieira, que afirmou no Congresso:  “A fé cristã, se for fiel ao Evangelho de Jesus, precisa ser crítica contra toda forma de opressão. A cruz de Cristo não pode ser símbolo de dominação, mas sim de libertação. A espiritualidade que não se encarna na luta pelos direitos humanos é alienação religiosa.”

É nesse chão de luta e ternura que a missão acontece. Oferecer paz, como Jesus instrui, não é apenas gesto de boas maneiras. No mundo bíblico, shalom é mais do que ausência de guerra: é justiça restaurada, terra partilhada, dignidade integral. Dizer “a paz esteja nesta casa” (Lc 10,5) é dizer: que haja comida, saúde, direitos, memória e alegria. Ao mesmo tempo, Jesus ensina o discernimento: se a paz não for acolhida, os discípulos devem seguir adiante. O Reino não se impõe — mas também não se submete à lógica da dominação.

A paz, no Evangelho, é sempre convite, não imposição. Jesus reconhece a liberdade do outro: “Se ali morar um amigo da paz, a vossa paz repousará sobre ele; senão, voltará para vós” (Lc 10,6). Em Apocalipse 3,20, o Ressuscitado declara: “Eis que estou à porta e bato; se alguém ouvir a minha voz e abrir, entrarei...” — até Deus espera ser acolhido. A paz do Reino não é a paz do império, nem da conveniência. Ela nasce da justiça (cf. Is 32,17), floresce no diálogo e se sustenta na liberdade amorosa. Quando a fé se transforma em controle, e a paz é usada para silenciar a dor ou impor conformismo, o que se instala não é o Reino, mas a caricatura violenta dele.

Ainda hoje, proliferam as teologias do domínio e da prosperidade — que afirmam que a fé verdadeira gera poder, status e riqueza — distorcendo gravemente o Evangelho. Jesus envia os discípulos com as mãos vazias: “Não leveis bolsa, nem sacola, nem sandálias” (Lc 10,4), e ele mesmo vive na pobreza radical: “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Lc 9,58). Em Mateus 6,24, adverte: “Ninguém pode servir a dois senhores: a Deus e ao dinheiro”. Em Lucas 6,24, lamenta: “Ai de vós, os ricos, porque já tendes vossa consolação!”. Paulo também é claro: “Tendo o que comer e com que nos vestir, fiquemos satisfeitos” (1Tm 6,8), e adverte: “Os que querem ficar ricos caem na tentação e em muitos desejos insensatos e funestos” (1Tm 6,9). O Evangelho não condena a riqueza em si, mas a idolatria da riqueza — especialmente quando travestida de bênção. O Reino é herança dos mansos (Mt 5,5), e o caminho do discipulado é o do esvaziamento (cf. Fl 2,6-7): serviço, partilha, cuidado — não dominação.

Lucas relata que os discípulos retornam alegres com os frutos da missão, dizendo que até os espíritos maus se submetem. Mas Jesus relativiza esse êxito: “Alegrai-vos, antes, porque vossos nomes estão escritos no céu” (Lc 10,20). A verdadeira alegria não está no sucesso, mas na comunhão com Deus. A missão não é espetáculo, é entrega. Não é troféu, é relação.

A Palavra deste domingo precisa atravessar nossas estruturas eclesiais, sociais e políticas. Missão que não se encarna nas realidades históricas é farsa. O Documento de Aparecida já afirmava: “Não podemos evangelizar sem antes olharmos com compaixão e escutarmos o grito dos pobres” (DAp 391). E o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, denuncia que a “economia que mata”, o clericalismo e o fechamento em si mesmos impedem a missão (cf. EG 53-60). Evangelizar hoje é resistir ao racismo estrutural, à LGBTQfobia, ao machismo teológico, ao ecocídio e à banalização da vida.

Henrique Vieira expressa isso com beleza e coragem:  “O Evangelho não é de direita nem de esquerda, mas ele sempre estará à esquerda do opressor. Estará com o pobre, com a mulher, com a criança negra, com a travesti na rua, com o indígena em sua aldeia, com o povo que sofre.”

A missão é, portanto, subversiva. Vai às periferias geográficas e existenciais. Cria laços, derruba muros. Cura feridas, devolve nome e rosto aos descartados. Rompe com o clericalismo que transforma fé em ritualismo e o púlpito em balcão. E desafia a extrema-direita que sequestra os símbolos cristãos para legitimar armas, violência e opressão.

Jesus nos envia como cordeiros — vulneráveis, sim, mas inflamados de esperança. Com pés descalços e coração ardente. Que sejamos como os setenta e dois: missionários da paz, anunciadores de um Reino que é pão partilhado, afeto refeito, justiça plantada e alegria que não se mede por poder, mas por presença.

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DNonato – Teólogo do Cotidiano

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