Os Mortos e a Barca: Quando o chamado não Pode Esperar.
Jesus estava cercado por uma multidão em Cafarnaum, após curas e exorcismos. A cena parece triunfante, um momento alto de sua missão pública. No entanto, nesse contexto, o evangelista nos conduz a um gesto inesperado: Jesus “mandou passar para a outra margem” (Mt 8,18).
É sobre essa travessia, e os encontros que nela ocorrem, que iremos refletir, à luz do evangelho segundo Mateus 8,18-22 proclamado na 2ª-feira da 13ª semana do Tempo Comum.
À primeira vista, pode parecer uma simples decisão logística para evitar o tumulto das multidões, mas o evangelho de Mateus, como os demais sinóticos, é teologicamente elaborado. Cada movimento de Jesus, sobretudo nas transições geográficas, carrega profundidade simbólica e escatológica. Ir para “a outra margem” não é apenas atravessar um lago, mas um gesto pascal de deslocamento: da zona de conforto para a zona de conflito, do centro para a periferia, da pureza ritual para o contato com o impuro. Trata-se de uma travessia teológica, social, existencial.
Jesus sai de Cafarnaum, cidade com um núcleo judaico, rumo à região dos gadarenos ou gerasenos (cf. Mt 8,28; Mc 5,1; Lc 8,26), uma terra gentia, marcada por práticas consideradas impuras, como a criação de porcos. O movimento de Jesus não é neutro; é provocativo. Atravessar o lago é atravessar fronteiras étnicas, religiosas e simbólicas. É uma recusa de qualquer fé que se isole em seus próprios muros. O Cristo que atravessa o mar de Tiberíades antecipa sua cruz, porque se expõe à impureza, à alteridade e à incompreensão. Ele abandona a “segurança do sagrado” para mergulhar no caos do outro, do marginalizado, do que foi excluído pela religião oficial. Esta cena, à luz do Êxodo, ressignifica a travessia não mais como fuga da escravidão, mas como descida solidária ao lugar onde vivem os escravizados. Jesus, o novo Moisés, não caminha rumo à Terra Prometida, mas em direção ao território da impureza, onde a dor é mais bruta e a presença de Deus parece mais ausente. Há, nesse gesto, um contraste implícito com o profeta Jonas, que foge da missão e tenta evitar a cidade estrangeira. Jesus é o antijonas: ele atravessa em direção ao que é impuro, hostil, estrangeiro — porque o Reino de Deus não conhece fronteiras étnicas, religiosas ou morais. A travessia de Jesus não foge da alteridade; ela a assume como campo de encarnação. O lago, como no Êxodo, separa o povo da escravidão e da liberdade. Mas aqui, a liberdade está na margem do outro. O discipulado cristão não começa na segurança, mas na travessia.
Essa decisão de partir gera uma ruptura interna. A barca está prestes a partir, e com ela o sinal de um discipulado exigente. Nesse momento, aproximam-se dois homens. O primeiro, um escriba — conhecedor da Lei, alguém de dentro da instituição religiosa — declara com entusiasmo: “Mestre, eu te seguirei para onde quer que vás.” Mas Jesus, com a lucidez de quem conhece os corações, responde com uma frase que corta como espada: “As raposas têm tocas, e as aves do céu ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça.” A advertência é clara: seguir Jesus não é aderir a um projeto de estabilidade, mas lançar-se num caminho de desinstalação. A referência ao “Filho do Homem” remete ao livro de Daniel (7,13-14), onde esta figura messiânica recebe domínio eterno. Contudo, em Jesus, esse título ganha conotação de vulnerabilidade e entrega. Ele é o Filho do Homem que não domina com poder, mas redime com serviço e despojamento. O discipulado, aqui, exige o abandono da expectativa de segurança institucional, de benefícios sociais ou reconhecimento religioso. O escriba, símbolo da religião da letra, parece querer ajustar o seguimento ao seu mundo de certezas. Mas Jesus o desilude: não há Escritura sem esvaziamento. Não há Reino com estabilidade. Não há discipulado sem kenosis. Como lembra a carta aos Filipenses, Cristo “esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo” (Fl 2,7).
O segundo personagem é mais ambíguo. Ele já é um discípulo, alguém que segue Jesus, mas ainda preso a estruturas do passado. “Senhor, deixa-me primeiro ir sepultar meu pai.” O pedido parece legítimo, até mesmo sagrado. Na cultura judaica do século I, enterrar os pais era uma das obrigações mais sagradas, derivada diretamente do mandamento de honrar pai e mãe (cf. Ex 20,12). Não só era um dever familiar, mas uma responsabilidade comunitária, religiosa, e até escatológica, pois muitos judeus acreditavam que a sepultura familiar preservava a identidade e a bênção da linhagem. Negar o sepultamento seria visto como afronta à memória e ao vínculo com a tradição. No entanto, Jesus responde: “Segue-me, e deixa que os mortos sepultem os seus mortos.” Essa resposta, embora chocante, deve ser compreendida à luz do uso simbólico da palavra “mortos”. Ele não se refere aos cadáveres, mas aos vivos que estão espiritualmente mortos — aos que, mesmo respirando, estão presos às estruturas caducas, a uma religião sem compaixão, a uma tradição fossilizada. É a mesma lógica que aparece em Lucas 15,24, quando o pai do filho pródigo diz: “Este meu filho estava morto e voltou à vida.” Morte, aqui, é alienação do Reino. É a idolatria do passado, a fé paralisada em ritos que não geram vida. Como em Mateus 23, Jesus denuncia os que se tornaram “sepulcros caiados”: vivos por fora, mas mortos por dentro. É o eco direto da denúncia de Isaías: “Que me importa a multidão dos vossos sacrifícios?” (Is 1,11). A fé que se reduz a rituais, desconectada da justiça e da compaixão, torna-se cemitério da presença divina.
A frase de Jesus é uma convocação à urgência. Não é desrespeito aos pais, mas um chamado a não adiar o seguimento com desculpas piedosas. O “deixa” é um verbo de ruptura. Ele convida à liberdade de um discipulado não mais condicionado pelo “primeiro deixa-me...”, mas enraizado no “segue-me” incondicional. Essa tensão entre tradição e missão, entre luto legítimo e adiamento espiritual, é perene. Ela atravessa os séculos da fé cristã. A religião, quando perde a dimensão do Reino, torna-se obstáculo. A fé que adia é a fé dos mortos. A religião, quando perde o Espírito, torna-se necroespiritualidade: sepulta os vivos com dogmas sem amor, com liturgias sem compaixão, com estruturas que protegem os poderosos e silenciam os pequenos. É essa religião que Jesus desmascara.
Esse ensinamento se alinha à doutrina social da Igreja, que sempre defendeu que a caridade concreta é inseparável do seguimento real. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes, recorda que “as alegrias e esperanças, as tristezas e angústias dos homens de hoje são também as dos discípulos de Cristo” (GS 1). O discipulado é sensível à urgência do agora. A missão da Igreja não pode ser retardada por apegos a ritos ou estruturas que já não comunicam vida. A Evangelii Gaudium de Francisco afirma com força que a Igreja deve sair, que “prefere uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49). A Lumen Gentium, ao definir a Igreja como “sacramento universal da salvação” (LG 48), implica que sua missão é dinâmica, encarnada, concreta — não ritualizada ou institucionalizada em si mesma. Paulo VI já dizia em Evangelii Nuntiandi que “o homem contemporâneo escuta mais as testemunhas do que os mestres” (EN 41), e Francisco amplia isso ao lembrar, em Laudato Si’, que “tudo está interligado”: a vida espiritual autêntica se reconhece pela capacidade de ir ao encontro do que sofre, de romper com as bolhas de proteção religiosa. Como nos recorda a carta aos Hebreus, os verdadeiros discípulos são aqueles que vivem como peregrinos e estrangeiros nesta terra, “porque esperam uma pátria melhor, isto é, a pátria celeste” (Hb 11,16). Mas não a esperam passivamente. Eles a inauguram, aqui e agora, na travessia concreta do Reino.
Hoje, como ontem, muitos vivem esse dilema. Quantos desejam seguir Jesus, mas querem primeiro sepultar suas tradições, terminar seus projetos, esperar a estabilidade. Desejam o Reino, mas sem ruptura. Esperam condições ideais, uma fé sem travessia. A teologia da prosperidade alimenta essa ilusão: uma fé que promete bênçãos, mas recusa a cruz. Uma religião que oferece ninhos e tocas, mas não barcas em movimento. Os mortos continuam sepultando os mortos: são os que vivem de aparências, presos ao moralismo, ao clericalismo, à idolatria institucional.
Mas Jesus continua atravessando para a outra margem. E essa margem hoje são os presídios superlotados, os hospitais sem atendimento, as favelas esquecidas, as travestis na rua, os povos indígenas acuados, os refugiados ignorados. A travessia hoje se faz na escuta dos que não têm voz, no abraço dos indesejados, na coragem de romper com a religião domesticada. Por isso, a barca continua partindo. E nela estão os que optaram por seguir, mesmo sem garantias: as Conferências Vicentinas, que batem nas portas dos pobres com o rosto da ternura; os irmãos da Toca de Assis, que vivem entre os rejeitados; padres como Júlio Lancellotti, que atua na cidade de São Paulo, especialmente na região da Mooca e do Brás, na Pastoral do Povo da Rua, enfrentando diariamente a indiferença institucional e a hostilidade urbana com o evangelho do acolhimento; e Renato Chiera, que fundou e conduz a Casa do Menor São Miguel Arcanjo em Miguel Couto, distrito de Nova Iguaçu (RJ), lugar onde a esperança brota do asfalto quente e das vielas feridas, acolhendo adolescentes marcados pela violência, pelo tráfico e pela exclusão. Ambos recusam os altares dourados e preferem a calçada e o barraco como sacrário, como espaço sagrado onde o Cristo abandonado é tocado, lavado, alimentado e chamado pelo nome. A Pastoral Carcerária, que enfrenta o sistema penal e enxerga Cristo em cada cela, é outra expressão dessa travessia pascal. Esses homens e mulheres não sepultam os vivos. Eles os libertam. São parábolas encarnadas do Evangelho. Testemunhos que desmascaram uma fé que se esconde atrás de desculpas. Eles não estão apenas no templo, mas na travessia. E nos interrogam com força:
- Que margem ainda te prende?
- Que morte te paralisa?
- Que desculpa piedosa te impede de dizer sim ao chamado?
No Reino, os mortos vivem, e os vivos sepultados na religião morrem.
Por isso, não há tempo para desculpas. O seguimento é hoje. Nunca amanhã. Não se trata de saber mais, mas de seguir. Não de sentir, mas de andar. Não de venerar, mas de viver.
Jesus continua a dizer: “Segue-me.” E a barca segue. Com ou sem você.
DNonato – Teólogo do Cotidiano - “O discipulado é sempre hoje. Nunca amanhã.”
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