Os textos da Liturgia do 18º Domingo do Tempo Comum – Ano C – nos convocam a uma profunda revisão de vida à luz da Palavra: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Salmo 89(90), com o refrão “Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações”; Colossenses 3,1-5.9-11; e o Evangelho de Lucas 12,13-21 também proclamado na 2ª-feira da 29ª semana do Tempo Comum, sobre o qual já partilhamos uma reflexão anterior em 2022, disponível em nosso canal no YouTube em: 2020, 2022, 2024 e também neste blog. Trata-se de uma Palavra viva, atual, urgente e necessária, especialmente diante das seduções do mundo moderno e das espiritualidades domesticadas.
Trata-se de uma Palavra viva, atual, urgente e necessária, especialmente diante das seduções do mundo moderno e das espiritualidades domesticadas. O Evangelho deste de hoje, proclamado na simplicidade de uma parábola, é uma das mais duras denúncias de Jesus contra a idolatria do acúmulo, a lógica do capital e a ilusão de segurança que aprisiona o coração humano.
É importante lembrar, porém, que Jesus não foi nem comunista nem socialista,n categorias históricas e políticas que nasceram muitos séculos depois de sua passagem pelo mundo. O Reino que Ele anuncia não se enquadra em nenhum sistema econômico ou ideológico humano. Mas uma coisa é certa: Ele também não foi, não é e jamais será capitalista. O Evangelho mostra um Cristo que não se alia aos poderosos que acumulam riqueza à custa da miséria alheia, nem aos que legislam para oprimir os pobres e manipular a fé para manter privilégios. Sua Boa-Nova é a negação de toda exploração travestida de progresso e de toda usura legitimada pela lei. A Bíblia é clara ao condenar a usura — como já afirmava o livro do Êxodo (22,25) e o Deuteronômio (23,19-20) — e a Igreja, desde os primeiros séculos, manteve firme essa posição. A Gaudium et Spes recorda que a ordem econômica deve estar sempre a serviço da pessoa humana e do bem comum (cf. GS 64), e o Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, denuncia as “novas idolatrias do dinheiro” (EG 55). Assim, o Evangelho de Cristo não é um manifesto político, mas é profundamente subversivo em sua essência: desmascara a mentira de todos os sistemas que colocam o lucro acima da vida e o poder acima da compaixão.
A narrativa começa com um pedido aparentemente justo: “Mestre, dize a meu irmão que reparta comigo a herança” (Lc 12,13). A questão parece simples, mas Jesus, que vê o coração, recusa-se a ser juiz de partilhas: “Homem, quem me constituiu juiz ou árbitro entre vós?” (v.14). A recusa é reveladora. Jesus percebe que o problema não é jurídico, mas espiritual, ético e existencial. O pedido do homem é uma súplica contaminada pela cobiça. Assim como no episódio de Esaú e Jacó, a herança torna-se símbolo de disputa, poder e direito — quando, no Reino, herança é graça, é dom gratuito. No contexto judaico, a primogenitura garantia prestígio e posse, mas Jesus, ao inverter a lógica, anuncia um Reino onde “os últimos serão os primeiros” (Mt 20,16) e onde ninguém tem o direito de possuir o que deveria ser partilhado.
A advertência de Jesus é cortante: “Acautelai-vos de todo tipo de ganância” (v.15). O termo grego pleonexia não indica apenas o desejo de ter mais, mas o vício de nunca se saciar, de querer possuir até o outro. É a lógica do capitalismo e do egoísmo, que transforma o próximo em instrumento de consumo e o planeta em depósito de lixo. Essa ganância é a raiz de toda idolatria moderna, como já advertia Paulo: “A avareza é uma forma de idolatria” (Cl 3,5). E a idolatria não é uma questão de templos, mas de tronos interiores — é quando o coração entroniza o dinheiro no lugar de Deus.
Na parábola, o homem rico é apresentado como alguém que planeja: seus campos produziram em abundância. O texto não o descreve como ladrão ou injusto; o problema não é sua produção, mas sua lógica. Ele pensa apenas em si mesmo. O uso repetido do pronome “meu” — meus celeiros, meus bens, minha alma — revela uma espiritualidade autocentrada, um narcisismo estrutural que transforma o eu em divindade. É o mesmo ego que Adão pretendeu quando quis “ser como Deus” (Gn 3,5). O rico planeja, projeta e acumula, mas se esquece da única certeza da existência: a morte. E é justamente a morte, esse limite inegociável, que desmascara todas as ilusões de segurança: “Insensato! Ainda esta noite pedirão de volta a tua vida” (Lc 12,20).
A morte, na pedagogia de Jesus, é o ponto final de toda idolatria. Nela, os celeiros desabam, os títulos perdem validade, as contas bancárias evaporam. Só permanece o que foi doado. “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2). O autor do Eclesiastes, com ironia e sabedoria, já havia percebido que o trabalho e o acúmulo são absurdos quando não se traduzem em solidariedade. O mesmo eco ressoa no profeta Amós, quando denuncia os que “pisam os pobres e exploram os humildes” (Am 8,4–6), acumulando riquezas sobre a miséria alheia. E Isaías clama: “Ai dos que ajuntam casa a casa e campo a campo, até não sobrar mais espaço!” (Is 5,8).
O Evangelho, porém, não condena o trabalho nem o planejamento. O problema é a direção do coração. A parábola não é contra a previdência, mas contra a possessividade. O homem rico não é condenado por ter, mas por não partilhar. Ele fala consigo mesmo, como se fosse autossuficiente, e ignora a existência do outro. Na linguagem psicológica contemporânea, poderíamos dizer que se trata de um sujeito aprisionado no narcisismo de autossustentação, incapaz de empatia e de alteridade. A ganância é uma forma de patologia espiritual: uma fobia do vazio. Quem não suporta o vazio tenta preenchê-lo com coisas — e quanto mais acumula, mais sente o vazio crescer.
A exegese do texto lucano revela ainda um contraste com outros episódios. Em Lucas 16, o rico que banqueteia todos os dias ignora Lázaro, o pobre à sua porta. Em ambos os casos, o que os condena não é o luxo em si, mas a indiferença. No Evangelho de Mateus, Jesus repete o princípio: “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem destroem” (Mt 6,19). E acrescenta: “Onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração” (Mt 6,21). O problema, portanto, não é econômico, mas teológico e afetivo: o coração adere àquilo que idolatra.
A parábola se insere em um contexto maior, no qual Jesus denuncia o poder sedutor das riquezas e convida à confiança na providência divina (Lc 12,22–34). O convite a “não vos preocupeis” é, na verdade, um chamado à liberdade. A preocupação excessiva é a forma moderna da servidão. O homem dominado pela ansiedade de acumular torna-se escravo do próprio medo. E o medo é a base de toda estrutura social injusta. Como observa a psicologia social, o medo da perda é o motor da ganância. Por isso, o Reino de Deus não pode ser construído com base no medo, mas na confiança radical: “Buscai antes o Reino de Deus, e tudo o mais vos será dado por acréscimo” (Lc 12,31).
Do ponto de vista sociológico, a parábola é uma crítica à concentração de bens e à ideologia meritocrática. A lógica do “eu mereci” é a irmã gêmea do “meu celeiro”. A meritocracia ignora a estrutura histórica das desigualdades e mascara privilégios sob o verniz da virtude. No tempo de Jesus, o sistema agrário romano concentrava terras nas mãos de poucos, enquanto camponeses endividados perdiam suas propriedades — cenário que Lucas retrata em outras parábolas (Lc 16,1–9; 20,9–18). A “loucura” do rico é, portanto, sistêmica: ele não é um indivíduo isolado, mas um ícone da mentalidade imperial. Sua autossuficiência reflete um sistema que destrói o vínculo social.
A filosofia também ilumina o texto. Para Heidegger, o homem inautêntico é aquele que vive imerso no “mundo do se”, repetindo padrões sem refletir sobre a própria finitude. O rico insensato é a imagem perfeita do ser inautêntico: vive para ter, mas não para ser. A morte o surpreende porque ele nunca pensou na possibilidade de não existir. Em contrapartida, o homem autêntico é aquele que aceita a morte como horizonte e, por isso, vive de modo essencial. Essa dimensão existencial se encontra em harmonia com o ensinamento de Jesus: só quem se desapega do “meu” é capaz de viver plenamente o dom do “nosso”.
Na antropologia bíblica, a relação com os bens é expressão da relação com Deus. O Antigo Testamento via a prosperidade como bênção, mas progressivamente a sabedoria israelita descobriu que o acúmulo injusto corrompe a alma. Os profetas denunciaram o luxo das elites e a indiferença diante da fome do povo. Em Qumran, os essênios já praticavam a partilha comunitária dos bens como sinal escatológico. No livro dos Atos, a comunidade cristã primitiva assumiu esse ideal: “Todos os que criam estavam juntos e tinham tudo em comum; vendiam suas propriedades e repartiam segundo a necessidade de cada um” (At 2,44–45). Essa partilha não era romantismo, mas teologia em ato: o Reino de Deus não se constrói com palavras, mas com comunhão.
A patrística soube ler essa parábola com profundidade profética. São Basílio Magno adverte: “O pão que tu guardas pertence ao faminto; o manto que escondes pertence ao que está nu; o dinheiro que enterraste pertence ao necessitado.” São João Crisóstomo acrescenta: “Não dar aos pobres é roubar deles e privá-los da vida. Os bens que temos não são nossos, mas deles.” Santo Agostinho vê na avareza uma prisão do espírito: “O homem que se fecha no seu ouro é como quem tranca o coração num cofre — e lá dentro apodrece junto.” A voz dos Padres ecoa com força contra a lógica de uma fé privatizada, que transforma a caridade em marketing espiritual e a liturgia em vitrine.
O Magistério da Igreja, fiel a essa tradição, reitera que a propriedade privada tem função social e que o destino universal dos bens é princípio superior. A Populorum Progressio (n. 23) ensina que “a propriedade privada não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto”. A Laborem Exercens (n. 14) recorda que o trabalho tem primazia sobre o capital, e a Centesimus Annus (n. 30) insiste que “a riqueza deve servir, e não dominar”. Na Evangelii Gaudium (n. 53), o Papa Francisco denuncia a “economia que mata” e chama à conversão das estruturas: “Não se pode mais confiar nas forças cegas e na mão invisível do mercado”. E em Fratelli Tutti (n. 119), ele afirma que “o direito de alguns à propriedade não pode estar acima da dignidade e sobrevivência dos povos”.
A teologia da prosperidade, ao prometer bênçãos materiais como recompensa da fé, é a negação frontal dessa parábola. Ela transfere para o plano espiritual o mesmo mecanismo do capital: quem tem mais fé, merece mais; quem sofre, é porque não creu o suficiente. Essa distorção converte o Evangelho em produto e transforma Deus em investidor. A teologia do domínio legitima o poder, o controle e a conquista como sinais da eleição divina. Ambas, em sua raiz, são idolatrias que substituem a cruz pela performance, o serviço pelo sucesso, e a graça pela estratégia. O clericalismo, por sua vez, faz o mesmo movimento em outro nível: acumula poder simbólico e espiritual, substituindo o serviço pelo prestígio e a comunhão pela hierarquia. Contra tudo isso, Jesus propõe o esvaziamento: “Quem quiser ser o primeiro, seja o servo de todos” (Mc 9,35).
O texto lucano, lido hoje, também exige uma hermenêutica social. O Brasil, embora tenha saído do mapa da fome, permanece ferido por estruturas de exclusão e injustiça. A desigualdade é o novo celeiro do rico insensato: um sistema que acumula lucros em poucos e distribui miséria a muitos. O Evangelho exige conversão pessoal, mas também conversão estrutural. Como ensina a Gaudium et Spes (n. 63–66), as estruturas econômicas e sociais devem ser constantemente reformadas à luz da dignidade humana e do bem comum. A fé que não se traduz em justiça é ilusão piedosa. Uma religião que se cala diante da fome é idolatria do conforto.
O apelo de Jesus é radical: “Sede ricos diante de Deus.” A verdadeira riqueza não é o que se acumula, mas o que se doa. A espiritualidade cristã é o oposto do acúmulo: é o êxodo do ego. Por isso, o convite do Evangelho é metanoia — mudança de mente e de coração. Ser rico diante de Deus é transformar celeiros em mesas, reservas em redes, muros em pontes. É abrir espaço para o outro, para a vida, para o Reino. E essa transformação começa no íntimo: quando reconhecemos que nada nos pertence, tudo é graça.
A parábola termina sem final feliz, mas abre uma pergunta: o que faremos de nossa vida? Continuaremos construindo celeiros maiores, ou abriremos espaço para o Reino? A resposta não é teórica; é prática. Cada vez que partilhamos, quebramos um ídolo. Cada vez que amamos, desmontamos uma estrutura de morte. O juízo final não será sobre o saldo bancário, mas sobre o amor concreto: “Tive fome e me destes de comer” (Mt 25,35).
Ser rico diante de Deus é viver a comunhão. É entender que a única herança que vale é a do amor encarnado, a solidariedade concreta, a justiça feita carne. É reconhecer que, quando esta noite nos pedirem a alma, só restará o que fomos capazes de doar. O Reino não é feito de depósitos, mas de gestos. O Evangelho não é contabilidade, mas compaixão.
E se ainda insistirmos em justificar a ganância em nome da fé, será preciso admitir: não foi Deus quem mudou — fomos nós que o substituímos por um ídolo. Um ídolo que exige sacrifícios humanos, que devora os pobres, que destrói a terra e que ainda se apresenta vestido de piedade. A parábola de hoje não é apenas um alerta moral: é um espelho escandaloso. Nela, vemos refletido o rosto de um sistema que habita nossas casas, nossas igrejas, nossas consciências.
Jesus não oferece um parecer jurídico, mas uma libertação. Ele não resolve a questão da herança, mas revela o que verdadeiramente herdamos quando o Reino nos converte: herdamos os pobres como irmãos, a criação como casa comum, a justiça como linguagem da fé e o amor como única riqueza que não apodrece.
A pergunta final ecoa, simples e decisiva: quem é o senhor da tua vida:
Jesus ou a ganância?
Que celeiros constróis em teu coração?
O Evangelho exige uma metanoia profunda, que transforme a alma e a sociedade, para que justiça, paz e fraternidade deixem de ser palavras e se tornem carne. A verdadeira riqueza é comunhão com Deus e com o próximo.
E se um dia nos pedirem a alma, que sejamos lembrados não pelos celeiros que ergueram nossos medos, mas pelas mesas que ergueram nossa fé. Porque o verdadeiro tesouro não está no que se possui, mas no que se semeia. E quem vive assim, mesmo pobre aos olhos do mundo, é eternamente rico aos olhos de Deus.
DNonato -Teólogo do Cotidiano
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