sábado, 2 de agosto de 2025

Um outro olhar sobre Lucas 12,13-21 - 18º Domingo do Tempo Comum.

Os textos da Liturgia do 18º Domingo do Tempo Comum – Ano C  – nos convocam a uma profunda revisão de vida à luz da Palavra: Eclesiastes 1,2; 2,21-23; Salmo 89(90), com o refrão “Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações”; Colossenses 3,1-5.9-11; e o Evangelho de Lucas 12,13-21 também  proclamado  na 2ª-feira da 29ª semana do Tempo Comum do ano par,  sobre o qual já partilhamos uma reflexão anterior em 2022, disponível em nosso canal no YouTube em: 2020, 2022,  2024 e também neste blog. Trata-se de uma Palavra viva, atual, urgente e necessária, especialmente diante das seduções do mundo moderno e das espiritualidades domesticadas.

Desde o início, é preciso afirmar com clareza: Jesus não é socialista nem comunista — mas também está radicalmente distante do modelo neoliberal capitalista. Este mesmo sistema, lamentavelmente, tem sido defendido por certas lideranças religiosas que mercantilizam a fé e canonizam o acúmulo. O Evangelho deste domingo é uma denúncia contundente contra a idolatria da riqueza, a obsessão pelo lucro, o egoísmo travestido de meritocracia e a lógica do “meu celeiro, meus bens, minha alma”.

A narrativa começa com um pedido aparentemente justo: um homem solicita que Jesus intervenha na partilha de herança entre irmãos. No contexto patriarcal judaico, o primogênito costumava herdar a totalidade ou a maior parte dos bens do pai — como vemos no episódio entre Esaú e Jacó, onde a bênção é tomada por astúcia. Esse pano de fundo jurídico e cultural é essencial para compreendermos a provocação feita a Jesus. Contudo, em vez de assumir o papel de juiz ou legislador, Jesus recusa-se a validar o pedido. Ele percebe que o problema não é apenas jurídico, mas espiritual, ético e social. O coração daquele homem estava tomado pela cobiça.

A resposta de Jesus desmascara as engrenagens da ambição: “Acautelai-vos de todo tipo de ganância!” (Lc 12,15). A parábola do homem rico que constrói celeiros maiores para guardar suas colheitas — e que à noite perde a vida — nos recorda que a morte é o desmascaramento final de todas as ilusões de posse. Aquilo que se acumula com egoísmo não atravessa o túmulo. Como já dizia o Eclesiastes: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecl 1,2). O suor e o esforço humano são desperdício quando não se traduzem em solidariedade, partilha e cuidado com o outro.

Hoje, como naquele tempo, há quem se ache no direito de herdar tudo — por tradição familiar, por título religioso, por posição social ou por falsa superioridade moral. Essa lógica excludente e concentradora é incompatível com o Reino de Deus, que é justiça, partilha e dignidade para todos — e não apenas para alguns. E mais: é escandaloso quando tal lógica é promovida por ministros religiosos que, em nome de uma “teologia da prosperidade”, espiritualizam o egoísmo e abençoam o acúmulo de bens. Esquecem-se de que Jesus se fez pobre, e de que seus discípulos foram chamados a partilhar tudo (cf. At 2,44-45).

Este Evangelho não condena o trabalho, o esforço, a previdência ou o cuidado com a casa e com os filhos. O que está em jogo é a motivação profunda: para quê e para quem se vive. Quem vive para acumular, acaba prisioneiro do que possui. Quem faz da riqueza o centro da existência, perde o verdadeiro sentido da vida. Por isso, Jesus conclui com a advertência: “Assim acontece com quem ajunta tesouros para si mesmo, mas não é rico diante de Deus” (Lc 12,21).

É tempo de rever nossos celeiros, nossas contas bancárias, nossos títulos, nossos muros, nossas estruturas religiosas. Nada disso nos salvará. A única herança verdadeira é o amor encarnado, a solidariedade concreta, a justiça realizada na vida dos mais pobres. Como recorda São Paulo em Colossenses, o ser humano novo se renova “segundo a imagem daquele que o criou”, e nesse novo modo de viver “Cristo é tudo em todos” (Cl 3,10-11).

O Papa Francisco denunciava essa “economia que mata” (Evangelii Gaudium, n. 53), conclamando a fé a ser fermento de transformação estrutural, denúncia da injustiça e promoção do bem comum. A liturgia que vira espetáculo e o clericalismo exibicionista são sinais de uma distorção profunda do mistério cristão — e só podem ser enfrentados com a radicalidade do Evangelho.

No Brasil, apesar da conquista histórica de sair do mapa mundial da fome, persistem fragilidades estruturais que denunciam a urgência de um compromisso permanente. Vivemos ainda os efeitos da guerra tarifária iniciada pelo governo Trump, que impôs barreiras comerciais e afetou profundamente setores agrícolas e industriais — expondo como o mercado global exacerba desigualdades e vulnerabilidades. Sair do mapa da fome foi apenas uma etapa: o combate à insegurança alimentar e à exclusão exige ação constante, crítica e solidária, como convoca o Evangelho. Hoje, com as longas filas no SUS e desigualdades gritantes, o Evangelho denuncia a religião cúmplice do capital e da opressão. Uma fé que se cala diante disso é uma fé morta, anestesiada e acomodada. O convite radical de Jesus é claro: ou vivemos para os celeiros do egoísmo, ou para o Reino, para a partilha e o amor. Que nossa escolha, hoje, seja alicerce da eternidade. Que, ao sermos chamados, não sejamos loucos, mas discípulos que escolheram os bens eternos à ilusão dos depósitos. Os profetas nos advertem: “Ai dos que ajuntam casa a casa…” (Is 5,8), e denunciam aqueles que “pisam os pobres e exploram os humildes” (Am 8,4-6), revelando a fome como instrumento de controle.

Neste cenário, a Doutrina Social da Igreja é uma bússola indispensável. Ela afirma que a propriedade privada, embora legítima, não é um direito absoluto: deve sempre servir ao bem comum e à dignidade humana, garantindo que ninguém fique sem o necessário (Laborem Exercens, n. 14; Centesimus Annus, n. 30; Populorum Progressio, n. 23-24). O Evangelho não absolutiza nem demoniza a posse, mas rompe com sistemas que promovem a concentração, o controle e a dominação, propondo comunhão, cuidado e fraternidade.

São Basílio Magno advertia: “O pão que tu guardas pertence ao faminto; o manto que tu escondes pertence ao que está nu”. São João Crisóstomo dizia, com veemência: “Não partilhar com os pobres é roubar deles”. A posse que não se abre é agressão à comunhão e negação do Corpo de Cristo presente nos pobres, pequenos e excluídos. Essa ética da partilha é a antítese da lógica do mercado, que se alimenta do medo, da ganância e da indiferença. Se, ao final desta parábola, ainda houver em nós a tentação de justificar a ganância em nome da tradição, da segurança ou até mesmo da fé, será preciso reconhecer: não foi Deus quem mudou — fomos nós que construímos um ídolo em seu lugar. Um ídolo que exige mais do que orações: exige a alma, exige o outro, exige o planeta. E diante desse ídolo, muitos dobram os joelhos sem perceber que perderam o Evangelho. A parábola de hoje não é uma fábula moral, mas um espelho escandaloso: nela vemos refletida a alma de um sistema que habita nossas casas, nossas igrejas, nossas consciências — e que legitima a desigualdade enquanto recita versículos.

Jesus não oferece àquele homem — e a nós — um parecer jurídico, mas uma libertação existencial. Não resolve sua questão de herança, mas revela o que verdadeiramente herdamos quando permitimos que o Reino de Deus nos converta: herdamos os pobres como irmãos, a criação como casa comum, a justiça como linguagem da fé, e o amor como única riqueza que não apodrece.

Ser rico diante de Deus é romper com a lógica da acumulação e abraçar a lógica do dom. É transformar celeiros em mesas, reservas em redes, muros em pontes. É confiar que, mesmo que esta noite nos seja pedida a alma, encontraremos no abraço do Pai a única herança que importa: ser reconhecido como filho — e não como proprietário.

E enquanto essa hora não chega, resta-nos viver o Evangelho com radicalidade e ternura, cuidando do que temos e partilhando o que somos. Porque o verdadeiro tesouro não está no que se possui, mas no que se doa. Não no que se ajunta, mas no que se semeia. E quem vive assim, mesmo que pobre aos olhos do mundo, é eternamente rico aos olhos de Deus (cf. Tg 2,5; Mt 6,19-21).

A parábola do rico insensato, portanto, não é apenas um alerta — é um convite urgente: convertei-vos da idolatria do acúmulo e deixai-vos conduzir pelo Evangelho da partilha. Pois só quem se esvazia de si mesmo pode ser cheio de Deus.

Se hoje ouvirmos essa Palavra e ainda estivermos agarrados ao mito do merecimento e à sedução do “meu”, “meu”, “meu”, então é porque ainda não entendemos o Cristo que nasceu num estábulo, não tinha onde reclinar a cabeça (cf. Lc 9,58) e morreu nu numa cruz. E se nosso cristianismo se contenta com rezas e ritos sem justiça, é sinal de que nos tornamos discípulos do mercado — não do Messias. Urge lembrar: o juízo final não será sobre o saldo bancário, mas sobre o amor concreto ao próximo (cf. Mt 25,31-46). O Evangelho é claro: quem acumula para si, empobrece o mundo; quem reparte com amor, enriquece o céu. Que não sejamos lembrados como insensatos que construíram celeiros e perderam a alma, mas como justos que construíram pontes e herdaram o Reino.

Quem é o senhor da sua vida:

 Jesus ou a ganância? 

Que celeiros constróis em teu coração? 

O Evangelho exige uma metanoia profunda — que transforme a alma e a sociedade, para que justiça, paz e fraternidade sejam realidade para todos. A verdadeira riqueza é comunhão com Deus e com o próximo, no serviço humilde e na generosidade. Assim, o Evangelho torna-se luz que rompe as trevas das ideologias idolátricas, bálsamo que cura as feridas da exclusão e chamado profético para um mundo novo — onde o bem comum supera a posse, a dignidade humana é inviolável, e o Reino de Deus se constrói com justiça, amor e solidariedade.

DNonato -Teólogo do Cotidiano 


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.