A cena do banquete de Herodes, narrada também em Marcos 6,14-29, é uma liturgia às avessas. O palácio se converte em templo profanado. Em vez de pão partilhado, há corpos objetificados. Em vez de mesa da vida, um palco de morte. Herodes, como Pilatos depois dele, cede ao medo e ao poder de outros — a esposa, a filha, os convidados — revelando que o verdadeiro tirano é escravo da própria imagem. João morre não apenas por denunciar um adultério (cf. Lv 18,16), mas por ter a coragem de lembrar ao poder seus limites. Sua palavra ecoa o espírito dos profetas que enfrentaram reis e sacerdotes, como Natã diante de Davi (2Sm 12,1-10), Elias diante de Acab (1Rs 18), Amós diante dos sacerdotes de Betel (Am 7,10-17), ou Jeremias confrontando a falsa segurança do templo (Jr 7,1-15). João carrega em seu corpo o conflito entre Reino e sistema, entre verdade e conveniência, entre a fidelidade ao chamado e a tentação do silêncio cúmplice. Herodes é retrato do poder covarde. Representa uma religiosidade teatral, que escuta com curiosidade a palavra profética (cf. Mc 6,20), mas se recusa a converter-se. Prefere manter-se simpático à profecia do que comprometer-se com ela. Quantas vezes também nossas estruturas religiosas cultivam essa curiosidade estéril: ouvimos palavras bonitas nos púlpitos e nas redes sociais, mas evitamos qualquer abalo real em nossos privilégios ou estruturas. O Evangelho denuncia, mais uma vez, a incoerência de uma religião que admira profetas mortos, mas persegue os vivos (cf. Mt 23,29-37).
O banquete da morte de João antecede o banquete da vida oferecido por Jesus. Poucos versículos depois, em Mateus 14,13-21, o evangelista narrará a multiplicação dos pães. A contraposição é nítida e teológica: no banquete de Herodes, há festa para poucos, manipulação do corpo e morte. No banquete de Jesus, há compaixão (Mt 14,14), partilha e abundância para todos. João é morto em um palácio onde prevalece a vaidade. Jesus alimenta as multidões no deserto, onde reina a esperança. Um banquete alimenta o sistema; o outro, inaugura o Reino. O Evangelho não é neutro: aponta com clareza de que lado Deus está. Essa narrativa revela também a lógica da perseguição que recai sobre toda voz que ousa romper com a normalidade opressora. A prisão de João ecoa as prisões de Pedro (At 12,1-11) e de Paulo (At 16,23-34), e antecipa o cárcere de Jesus (Mt 26,47-57). O cárcere, na Escritura, é lugar onde a verdade parece sufocada, mas também lugar de revelação. José interpretou sonhos no cárcere (Gn 40–41), Daniel resistiu no cárcere dos leões (Dn 6), Paulo escreveu cartas que ainda hoje alimentam a fé. João, preso, segue fiel. Sua voz não se cala diante do medo — é o oposto do que hoje se vende como "sabedoria": a diplomacia da covardia, o silêncio da conveniência, a prudência que pactua com a injustiça.
Vivemos num tempo em que muitos cristãos preferem Herodes a João: preferem o conforto das cortes eclesiais à coragem do deserto, preferem a visibilidade dos banquetes ao silêncio fecundo da coerência. As teologias da prosperidade — que prometem proteção divina como moeda de troca para doações e obediência — são o novo rosto da religião palaciana. A fé como mercadoria, o clericalismo triunfalista, o individualismo espiritualizado que transforma o Evangelho em autoajuda e a missão em palco, tudo isso são versões modernas do mesmo jogo: decapitam a profecia e servem-na em bandejas douradas.
João morre como viveu: de pé, diante da verdade. Sua cabeça cortada é memória que interpela, é ferida aberta na carne do mundo que insiste em calar os que incomodam. Sua morte clama contra as teologias do domínio, da glória fácil e da fé domesticada. E sua vida, mesmo encerrada no cárcere, permanece como farol que ilumina o caminho daqueles e daquelas que ousam anunciar o Reino, mesmo quando tudo parece escuro. Porque o Reino não vem com espetáculo (Lc 17,20), mas com fidelidade. E a fidelidade, às vezes, custa caro — custa a cabeça, custa a cruz, mas gera ressurreição. João não viveu para si. Sua voz ecoa ainda hoje nos desertos da história, clamando por um mundo em que a verdade não seja silenciada e em que a justiça não seja moeda de troca. Enquanto houver profetas decapitados e cristãos domesticados, a história de João continuará se repetindo. Mas enquanto houver memória profética e coragem pascal, sua morte continuará sendo semente de ressurreição. Porque a última palavra nunca é da espada — é do Reino (cf. Ap 5,5-6; 19,11-16). Como João, também mártires de nossa história recente tombaram com a voz ferida e a consciência em pé. Dom Romero, assassinado no altar, e Dorothy Stang, baleada com a Bíblia na mão, são rostos contemporâneos desta mesma fidelidade. Suas mortes, como a de João, denunciam uma fé que se alia ao latifúndio, ao lucro e à opressão. Mas suas vozes continuam ecoando: “A missão da Igreja é defender os pobres. E enquanto houver injustiça, a Igreja deve gritar” (Dom Romero).
- Que tipo de fé estamos cultivando: a que agrada aos palácios ou a que incomoda o sistema?
- Que tipo de Igreja estamos sendo: corpo profético que clama no deserto ou ornamento de banquetes cheios de vaidade?
A memória de João clama por discípulos e discípulas que não se vendam por segurança institucional, que não troquem a profecia pelo aplauso, e que prefiram a cruz à cumplicidade. Onde houver fidelidade encarnada, mesmo silenciosa e perseguida, ali o Reino continuará germinando. E a cabeça cortada de João será sempre semente da Palavra que ninguém poderá calar (cf. Is 55,10-11).
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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