quinta-feira, 31 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,54-58

O evangelho  de Mateus 13,54-58  proclamado na 6ª feira da 17ª Semana do Tempo Comum do ano par e na Festa de São José Operário, mostra  Jesus voltando  à sua terra, em  Nazaré, traz a memória dos vizinhos, às calçadas da infância, ao ofício herdado de José.  Este trecho finaliza o capítulo 13 e, com ele, encerra também o terceiro livro do Evangelho segundo Mateus — a seção das parábolas do Reino. É um ponto de transição, um limiar teológico e narrativo. O Reino foi anunciado, revelado em imagens poéticas — como semente, fermento, tesouro e rede —, mas agora se exige uma resposta. A acolhida ou a rejeição revelam o tipo de solo que somos. A cena em Nazaré, portanto, não é apenas um detalhe narrativo: é o juízo sobre a incredulidade dos que tiveram tudo para crer, mas escolheram fechar-se. É o prenúncio de uma recusa mais ampla, que culminará em Jerusalém. E é também o início do quarto livro, onde se acirra a tensão entre o Messias rejeitado e o caminho para o discipulado verdadeiro.

Essa voltar ao lugar onde, humanamente, tudo começou. Ali, onde o rosto é conhecido, onde a mãe tem nome, os irmãos são chamados pelo apelido e as mãos guardam calos de carpinteiro. Ali, o Verbo se depara com o escândalo: não da cruz, mas do cotidiano. Escândalo de ser humano demais. De estar perto demais. De não parecer sagrado o suficiente para ser levado a sério. Ali, Jesus experimenta não o ódio direto, mas o desprezo gelado. E Mateus registra, com sobriedade cortante: “Não fez ali muitos milagres, por causa da incredulidade deles.”

A incredulidade narrada aqui é sofisticada. Não se trata de uma dúvida intelectual, mas de um bloqueio existencial. “De onde lhe vem essa sabedoria?” — perguntam os conterrâneos. Mas a pergunta não busca resposta; ela serve apenas como cortina para esconder o preconceito: “Não é este o filho do carpinteiro?” Como pode o comum revelar o eterno? Como pode o trabalhador pobre, vizinho de porta, conter a autoridade de Deus? A grande objeção não está no conteúdo do que Jesus diz, mas no lugar de onde ele fala: fala de dentro, fala de baixo, fala como um dos nossos. E isso, para quem ama o prestígio religioso, é inaceitável..Essa recusa ecoa a profecia de Isaías: “desprezado e rejeitado pelos homens, homem das dores, habituado ao sofrimento” (Is 53,3). Jesus carrega o rosto do Servo Sofredor: não tem aparência de glória, nem títulos, nem púlpito dourado. Seu rosto é comum, seu sotaque é galileu, sua profissão é manual. Sua presença é um escândalo — skandalon, tropeço — porque desmonta toda estética da religião do prestígio. A encarnação é a ruína da teologia da prosperidade. Deus fez-se carne, e não luxo. Fez-se operário, e não CEO religioso. Fez-se servo, e não senhor dos palácios.

O escândalo da encarnação persiste até hoje nas formas mais sutis de incredulidade eclesial. A Igreja contemporânea repete Nazaré quando idolatra os pregadores performáticos, mas desconfia da sabedoria dos simples. Quando rejeita o profeta de dentro por não ter “perfil institucional”. Quando privilegia o título acadêmico em detrimento da escuta espiritual. Quando recusa o Jesus que vive no sem-teto, no quilombola, na mulher violentada, no migrante queimado vivo. Rejeitamos o Cristo vivo sempre que buscamos um Cristo idealizado, encaixado, domesticado, de acordo com os nossos gostos litúrgicos ou nossas doutrinas doutrinárias.

Não é à toa que o Papa Francisco denunciava o clericalismo como perversão espiritual (Evangelii Gaudium, n. 102). Porque o clericalismo é a versão contemporânea da incredulidade de Nazaré: acredita em Deus, mas não acredita que Deus fale através do vizinho. Crê na Eucaristia, mas não vê o corpo de Cristo no pobre. Ama o Papa desde que ele diga o que agrada à elite. O clericalismo vive do espetáculo, não da encarnação. Vive da sacralização das formas, não da santidade dos gestos.

José o Pai de Jesus como operário, é o grande antídoto contra essa fé superficial. Ele é o modelo do homem justo que serve sem aparecer, que protege sem dominar, que silencia sem omissão. Ele transgride a masculinidade patriarcal ao acolher um filho que não gerou, ao viver do trabalho com as mãos, ao sonhar caminhos alternativos para sua família. José é figura do homem novo, do pastor sem púlpito, do santo da carpintaria. Em sua casa, o Verbo aprendeu a andar, a chorar, a esperar, a obedecer. E foi exatamente isso que o tornaria escandaloso aos olhos dos seus.

A recusa em Nazaré ecoa também a observação de João: “Veio para os seus, mas os seus não o receberam” (Jo 1,11). A recusa dos “de dentro” é constante ao longo da história bíblica: Abel é morto pelo irmão, José é vendido pelos irmãos, Moisés é desafiado pelo próprio povo, Jeremias é preso pelos sacerdotes, Amós é expulso do santuário, e Jesus será crucificado por um conluio entre religião e império. A história da fé verdadeira é sempre a história da rejeição profética.

A cena em Nazaré nos desafia antropologicamente. Como sociedade, temos dificuldade de reconhecer grandeza na familiaridade. Valorizamos o que vem de longe, o que tem sotaque estrangeiro, o que custa caro. Preferimos gurus internacionais a líderes comunitários. Seguimos influencers e desprezamos catequistas. Idolatramos quem sobe ao altar com voz de comando, mas ignoramos quem lava o chão da igreja. Como já apontou a psicologia social, o viés do reconhecimento nos cega para a beleza do comum. E, no entanto, é no comum que Deus insiste em manifestar-se. Ele vem no feijão com arroz, no carpinteiro, na mulher samaritana, na criança com cinco pães. Não se impõe com poder, mas se insinua com presença. Mas se a fé não for humildade, ela se torna orgulho disfarçado. E, então, já não há lugar para milagres.

A Gaudium et Spes nos recorda que “o mistério do homem só se esclarece à luz do Verbo encarnado” (n. 22). E que as dores e alegrias do mundo são também as dores e alegrias da Igreja (n. 1). Uma Igreja que rejeita a carne do mundo rejeita também a carne de Cristo. E uma fé que não se deixa escandalizar pela humanidade do Filho não é fé, mas idolatria religiosa.

Por isso, hoje, é Nazaré que nos interpela. Não como um vilarejo da Galileia, mas como figura teológica. Nazaré é o lugar onde tudo começa — e onde tudo pode ser recusado. Nazaré é cada espaço eclesial onde o profeta é desprezado, onde a encarnação é desacreditada, onde o divino é condicionado ao brilho. Nazaré somos nós — quando preferimos o Cristo dourado ao Cristo do chão. Nazaré é a paróquia onde o operário da Palavra é visto como “demais igual”, e por isso desprezado. Nazaré é a mesa onde a carne de Cristo é adorada na hóstia e ignorada no povo. Mas é também de Nazaré que pode brotar o milagre — se houver fé. Fé não como crença formal, mas como abertura radical ao mistério de um Deus que escolhe os fracos, os pequenos, os operários, os vizinhos. Fé que aceita a ternura de um Deus que, ao invés de aparecer nos templos dos reis, escolhe crescer no quintal da periferia.

E então, talvez, possamos olhar de novo para aquele carpinteiro e dizer, não com escândalo, mas com esperança: “Ele é um dos nossos — e por isso mesmo, é Deus conosco.”



DNonato – Teólogo do Cotidiano

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.