A liturgia da Segunda-feira da 18ª semana do Tempo Comum nos traz o texto de Mateus 14,13-21 que traz a temática da multiplicação dos pães que já refletinos outras vezes como por exemplo nos texto: Um breve olhar sobre Lucas 9,11b-17 - Corpus Christi: a Eucaristia que se faz compromisso e Um breve olhar sobre João 6, 1-15 em 2025 e também no nosso canal do YouTube
Enquanto Herodes celebra o banquete da morte com os poderosos, Jesus celebra o banquete da vida com o povo simples. No contexto imediato, Jesus recebe a notícia do assassinato de João Batista. Em vez de reagir com violência ou fuga definitiva, recolhe-se para um lugar deserto. Mas o deserto não permanece vazio: o povo o segue, faminto de esperança e de sentido. Essa fuga aparente é, na verdade, um ato profético que revela uma fidelidade irreversível à missão do Reino.
No deserto, lugar de provação e memória libertadora do Êxodo, Jesus torna-se o novo Moisés que não apenas fala, mas alimenta. A cena remete ao maná que Deus entregou ao povo hebreu no caminho da libertação (Ex 16). O deserto torna-se palco do milagre da compaixão e da reorganização da vida. Jesus não chama para si os que o seguem, mas os reúne sobre a relva — espaço comum e igualitário, evocando o Salmo 23: “Preparas uma mesa para mim à vista dos meus inimigos” (Sl 23,5). Ali, longe do luxo opressor do palácio de Herodes, o banquete anuncia a nova aliança onde a dignidade do último se torna fundamento do Reino.
A multidão é grande e faminta; os discípulos propõem que a enviem embora para comprar alimento. Jesus, porém, desafia a lógica da escassez e da evasão: “Dai-lhes vós mesmos de comer!” (Mt 14,16). Este é um convite a assumir responsabilidade, a romper com a passividade e a cumplicidade com sistemas de exclusão. O gesto que se segue — tomar, abençoar, partir e distribuir — é o gesto eucarístico por excelência (cf. Mt 26,26; Lc 22,19). A partilha torna-se sacramento do Reino: não um espetáculo, mas um compromisso radical com a vida.
O pouco dos cinco pães e dois peixes torna-se superabundância. Na fragilidade do que temos está a força da comunhão. A psicologia existencial nos mostra que o medo da escassez paralisa e aprisiona, mas o dom ativado por Jesus rompe o ciclo do egoísmo, refunda a confiança e reinventa os vínculos humanos. Sociologicamente, Jesus organiza a multidão em grupos — como lembra Marcos 6,39-40 — evidenciando que o Reino exige estruturação comunitária, e não confusão ou caridade esporádica.
O simbolismo dos doze cestos recolhidos (Mt 14,20-21) aponta para a plenitude escatológica do novo Israel, reunido em torno do Messias, superando a fragmentação tribal e religiosa. Essa multiplicação difere da outra narrada em Mateus 15 e Marcos 8, que ocorre entre gentios e tem o número sete como símbolo da universalidade e perfeição divina. Aqui, o contexto judaico e o número doze reafirmam a continuidade da Aliança, agora renovada pela lógica do dom e da partilha.
Essa narrativa encontra contraponto na parábola do rico insensato (Lc 12,13-21 proclamado no 18º Domingo do tempo comum do ano c ), que acumula para si e despreza o outro, tornando-se louco ao perder a vida que tentou preservar. Em contrapartida, Jesus mostra que é no repartir o pouco que a vida se faz plena. O evangelho denuncia, assim, a lógica do mercado e do individualismo que amontoa para poucos e exclui a maioria, propondo uma economia do Reino fundada no cuidado, no vínculo e na solidariedade.
A crítica é também à teologia da prosperidade e da fé mercantilizada, que transforma o Evangelho em mercadoria e a bênção em transação. O Papa Francisco adverte que “a adoração do antigo bezerro de ouro [...] persiste em muitas formas do culto ao dinheiro” (Evangelii Gaudium, 55). A Igreja, fiel à sua missão, deve denunciar uma economia que marginaliza os pobres e transformar-se em fermento de justiça e partilha, conforme ensina o Concílio Vaticano II: “a economia deve estar a serviço da pessoa humana” (Gaudium et Spes, 63). Os Padres da Igreja, como São João Crisóstomo, lembram que não se honra o Corpo de Cristo acumulando riquezas enquanto o pobre passa fome. Santo Agostinho reforça: “Tornai-vos aquilo que recebestes na Eucaristia: Corpo de Cristo”. A Igreja primitiva (At 2,44-46) vivia essa partilha radical, que deve continuar sendo a marca do cristão e da comunidade eclesial. Na perspectiva antropológica, o ato de comer juntos é fundante para a construção das culturas e identidades. Jesus, ao promover o banquete no deserto, funda uma nova humanidade que não é regida pela lógica da competição, mas pela lógica do dom. Psicologicamente, saciar a fome não é só nutrir o corpo, mas curar a alma faminta de justiça e sentido. O milagre é, portanto, transformação integral da pessoa e da sociedade.
A multiplicação dos pães nos revela o Deus que se entrega e convida a entregar-se. Não é um gesto isolado, mas sinal escatológico do banquete definitivo do Reino de Deus (Mt 8,11; Ap 7,16). Cada Eucaristia é ensaio desse Reino onde “não haverá mais fome, nem sede” (Ap 7,16). Celebrar o pão partido e partilhado é assumir compromisso com a justiça e a fraternidade hoje.
Se a Eucaristia é fonte e ápice da vida cristã (Lumen Gentium, 11), ela exige transformação: não basta dizer “Senhor, Senhor” se não partilhamos o pão e a vida. O milagre acontece quando deixamos a lógica dos celeiros do rico insensato para sentar com o povo na relva, organizando a esperança em comunidade. É tempo de romper com os palácios do clericalismo e da vaidade para caminhar com os pequenos e os esquecidos. É tempo de fazer do Evangelho um pão repartido — não um produto de consumo. É tempo de ser Igreja servidora, profética, solidária. E então, o milagre do Reino poderá acontecer novamente em nossas mãos e corações.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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