segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 14,22-36

 "Travessia e grito: quando o Evangelho exige sair da margem"

Na terça-feira  da 18ª semana do Tempo Comum  do ano par  nos deparamos com uma  situação que ocorre logo após a multiplicação dos pães, Jesus obriga os discípulos a entrarem na barca e atravessarem para a outra margem. O verbo usado por Mateus  "obriga" indica que não se trata de um convite, mas de um imperativo, um empurrão. A cena se passa à noite. A barca está no meio do mar, o vento é contrário e Jesus ainda não está com eles. O mar representa o caos, a travessia aponta para a vida cristã e a ausência temporária de Jesus simboliza as noites escuras da fé.

Neste cenário hostil, Jesus se aproxima, mas os discípulos não o reconhecem. O medo distorce o olhar. Acham que é um fantasma. É sempre assim: quando estamos dominados pelo medo, até Jesus nos parece ameaça. A resposta dele, porém, é imediata: "Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!" (Mt 14,27). O "Sou eu" (ἐγώ εἰμι) evoca o nome de Deus revelado a Moisés na sarça ardente (Ex 3,14). É mais do que uma autodeclaração de identidade; é uma epifania. Jesus se revela como o Deus presente na tempestade, Aquele que domina o caos e atravessa conosco as noites escuras da história.

Pedro, então, pede para ir ao encontro dele sobre as águas. É um pedido ousado, expressão de uma fé que deseja caminhar além da segurança da barca. Jesus consente. Pedro caminha. Mas, ao sentir a força do vento, se atemoriza e começa a afundar. O medo paralisa, afunda, derruba. Pedro grita: "Senhor, salva-me!". Jesus estende a mão, segura-o e diz: "Homem fraco na fé, por que duvidaste?" (Mt 14,31). A travessia exige confiança. Duvidar é tirar os olhos de Jesus e fixá-los no vento. Mas, mesmo na dúvida, o grito por salvação é escutado, e a mão de Jesus nos alcança.

Esse grito ressoa hoje nos recantos mais dolorosos da Igreja: nos silêncios cúmplices diante dos abusos, nas liturgias desconectadas da vida, nas alianças que trocam o Evangelho pelo prestígio político. É o grito de um corpo eclesial que precisa mais do que reformas administrativas: precisa reaprender a gritar por salvação.

A fé que se recusa a sair da margem para permanecer em portos seguros torna-se cúmplice do sistema. Como os sacerdotes e levitas que evitam o ferido à beira do caminho (cf. Lc 10,31-32), a religião que não se lança à travessia transforma o Evangelho em retórica, e não em revolução.

Santo Agostinho comentava que "a barca é figura da Igreja; o mar, do mundo; e o vento, das tentações. Quando a caridade esfria, o barco se agita" (In Iohannis Evangelium Tractatus, 2). A cena é, portanto, eclesial. Mas não só. Também pessoal. Cada um de nós é Pedro. Cada um de nós precisa ousar sair da barca, arriscar-se na direção de Jesus e, ao sentir o peso do vento e das ondas, aprender a gritar: "Senhor, salva-me!". Ninguém caminha sobre as águas sem medo. Mas ninguém é salvo sem confiar.

Os relatos de Mateus e Marcos apresentam a travessia como consequência direta da multiplicação dos pães, enfatizando o afastamento de Jesus para o monte e a permanência dos discípulos no mar agitado. Em ambos, Jesus caminha sobre as águas e acalma os discípulos. No entanto, Mateus é o único que insere o episódio de Pedro tentando caminhar sobre as águas, sublinhando o drama pessoal da fé em crise, o grito por salvação e o toque da mão de Jesus – um detalhe com alto valor teológico e simbólico. Lucas não narra este episódio. Já João, que não é sinótico, relata o mesmo acontecimento (Jo 6,16-21) com seu estilo próprio: omite o episódio de Pedro e acentua que a barca chegou “imediatamente” ao destino ao acolherem Jesus – símbolo joanino da presença que realiza a travessia. Cada evangelista oferece, assim, uma lente própria: Marcos destaca o endurecimento do coração dos discípulos, João acentua a presença reveladora de Jesus, e Mateus foca na fé que se arrisca e vacila, mas é sustentada pelo Senhor.

O mar agitado também habita a interioridade humana. Há noites em que a fé parece diluir-se na ansiedade, em que o rosto de Deus desaparece sob as brumas da dúvida. Como ensina São João da Cruz, essas são noites purificadoras, onde o silêncio de Deus é mais presença do que ausência, mais fogo do que ausência de luz.

Avancemos, mesmo com o medo nos ombros. Caminhemos, mesmo com as águas sob os pés. A barca está viva, porque Aquele que caminha sobre o caos ainda diz: "Coragem! Sou eu!" E sua mão continua estendida. Que ninguém se iluda com calmarias compradas; que todos se deixem curar pelas travessias que tocam. E que a fé, entre ventos e ondas, permaneça como travessia que salva.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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