“Sobre esta Rocha”: Igreja viva entre fragilidades redimidas e fidelidade profética
Neste 29 de junho, celebramos a fé intrépida de Pedro e Paulo, pilares da comunidade cristã, vozes distintas que testemunharam o mesmo Cristo com suas vidas integralmente doadas até o martírio. Hoje é também o Dia do Papa, um símbolo da comunhão e do cuidado da Igreja, alicerçada não em sistemas, mas no testemunho vivo.
A liturgia deste dia solene nos propõe um itinerário profundamente eclesial: na primeira leitura (Atos 12,1-11), contemplamos Pedro aprisionado e milagrosamente libertado pela intervenção divina, enquanto a comunidade orava com insistência. O Salmo 33 (34) canta a confiança daqueles que buscam o Senhor: “De todas as tribulações, Deus os livrou.” A segunda leitura (2Timóteo 4,6-8.17-18) traz as palavras derradeiras de Paulo, que oferece sua vida como libação: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé.” E, por fim, no Evangelho segundo Mateus (16,13-19), ouvimos Pedro reconhecer Jesus como o Cristo, o Filho do Deus vivo — e, sobre essa fé vivenciada na carne, Jesus proclama com autoridade: “Sobre esta rocha edificarei a minha Igreja.”
No domingo anterior, escutamos a versão lucana dessa mesma passagem no texto: Um olhar sobre Lucas 9,18-24 - 12⁰ Domingo do Tempo Comum. Em Lucas, a ênfase residia na intimidade do momento e na exigência radical do discipulado: “Se alguém deseja seguir-me, renuncie a si mesmo, tome sua cruz...” Hoje, em lemos o texto de Mateus, texto que já visitamos em 2022 e 2023, a narrativa adquire um significado eclesial mais profundo, mais fundacional. Diante da profissão de fé de Pedro, Jesus revela seu próprio desígnio: a edificação de uma nova comunidade, não como uma construção de pedras inertes e frias, mas como um povo convocado, um corpo vivo e um sinal visível do Reino de Deus em meio ao mundo.
É a primeira vez que Jesus emprega o termo “Igreja” (ekklesia) nos Evangelhos. Essa palavra, muito antes de denotar templos suntuosos ou instituições religiosas engessadas, designava no universo grego a assembleia dos cidadãos reunidos para deliberar sobre os rumos cruciais da pólis. No hebraico, há ressonâncias profundas do qahal YHWH, a comunidade peregrina do deserto, o povo que escuta atentamente a voz do Senhor e caminha unido, em solidariedade. O termo carrega em si uma tensão inerente entre escuta e missão, entre comunhão profunda e a dinâmica da história. Jesus não se refere a uma nova religião meramente, mas a um povo transformado, convocado à fidelidade amorosa.
Essa dimensão essencial de povo orante é acentuada de forma comovente na leitura dos Atos dos Apóstolos: enquanto Pedro jaz encarcerado, sob a ameaça iminente de morte imposta por Herodes, “a Igreja orava incessantemente a Deus por ele” (Atos 12,5). Essa imagem fala mais alto que muitos tratados teológicos complexos: a Igreja autêntica não se restringe a ensinar doutrinas ou governar hierarquicamente, mas é aquela que vela, que acompanha de perto, que intercede incansavelmente pelos seus. Ela não resgata Pedro com espadas de guerra ou decretos políticos, mas com joelhos curvados em oração e um coração em vigília constante. Quando a Igreja cessa de orar por seus membros feridos, pelos marginalizados e perseguidos, torna-se surda ao Espírito e, tristemente, cúmplice dos poderes que oprimem e injustiçam.
Desde os primórdios da revelação, Deus convoca um povo, não indivíduos isolados, desgarrados. No deserto do Sinai, constitui-se o qahal YHWH, a “assembleia do Senhor” (cf. Deuteronômio 4,10), reunida não por mérito humano, mas por eleição e aliança divina, por pura graça. O qahal é um povo em jornada, em travessia, entre a escravidão do Egito e a promessa de uma terra livre e abundante. É a comunidade que avança, tropeça, murmura, sucumbe e se reergue com persistência, mas que carrega consigo a presença viva de Deus em tendas provisórias e em sinais claros. Essa assembleia do Antigo Testamento é retomada e transfigurada por Jesus como ekklesia, um povo congregado não aos pés imponentes do Sinai, mas em torno do Ressuscitado, e posteriormente em Pentecostes — conforme lemos com clareza em Atos 2,32: “A este Jesus, Deus o ressuscitou; do que todos nós somos testemunhas oculares.”
Quando Jesus profere “a minha Igreja”, Ele não alude a um aparato clerical rígido, a um império espiritual dominador ou a uma fortaleza doutrinal inexpugnável. Ele se refere a um corpo vivo edificado sobre a fé confessada não apenas com os lábios, mas com a própria vida, no dia a dia. A Igreja brota do reconhecimento do Cristo, mas não pode, jamais, se aprisionar nesse reconhecimento. Ela existe para prolongar a missão libertadora do Cristo na história: servir com humildade, libertar os cativos, reconciliar os distanciados, denunciar as injustiças. Quando a Igreja se desvia desse propósito essencial, torna-se uma mera caricatura, uma sombra pálida de si mesma.
Pedro é designado “pedra” não por ser inabalável em sua própria força, mas por sua fragilidade intrínseca, que, paradoxalmente, permite que seja sustentado pela graça divina. A Igreja nasce precisamente da graça que acolhe a imperfeição humana e a transmuta em santidade. Por isso, a figura de Pedro é tão profundamente humana, tão próxima de nós: ele professa a fé com entusiasmo ardente, mas logo será repreendido por sua resistência à cruz; ele promete fidelidade incondicional, mas depois nega o Mestre por três vezes; ele chora amargamente seu erro, mas retorna humildemente ao rebanho. É sobre essa humanidade redimida, essa fragilidade amada, que Jesus edifica sua Igreja. Não sobre purezas idealizadas e inatingíveis, mas sobre testemunhos autênticos e reais, de carne e osso.
A promessa de Jesus não é que a Igreja será imaculada, sem falhas, mas que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela” (Mateus 16,18). Isso não implica invulnerabilidade institucional absoluta, mas a certeza inquebrantável de que o mistério pascal sustentará sua missão mesmo em seus momentos mais sombrios de falha humana ou perseguição brutal. A Igreja está sempre sob ameaça — externamente, por poderes hostis e ideologias opressoras, e internamente, por corrupções espirituais e institucionais. Contudo, sua vitalidade e sua força provêm unicamente do Ressuscitado, não de sua própria capacidade ou organização.
As “chaves do Reino”, confiadas a Pedro, não são instrumentos de dominação despótica, mas símbolos profundos de serviço e pastoreio. “Ligar e desligar” representam funções cruciais de discernimento comunitário, de reconciliação, de cura e de cuidado pastoral. São gestos simbólicos que implicam responsabilidade imensa e uma profunda, constante escuta do Espírito Santo. Quando a Igreja se apropria das chaves para fechar portas, excluir, julgar sem misericórdia, ela trai a essência mais pura do Evangelho. As chaves de Pedro deveriam, ao invés, abrir novos caminhos de esperança, acolher os desvalidos, os marginalizados, e conduzir todos ao coração compassivo do Pai.
Celebrar Pedro e Paulo conjuntamente é reconhecer que a Igreja nasce da diversidade rica de dons e se sustenta na tensão fecunda e criativa entre carismas complementares. Pedro, o pescador impetuoso e leal, representa a firmeza da comunhão, a escuta atenta da comunidade e a presença visível entre os irmãos. Paulo, o fariseu zeloso transformado em apóstolo incansável, encarna a profecia, a itinerância missionária incansável e a abertura ousada aos que ainda não foram alcançados pela mensagem salvadora. Um personifica a permanência da Tradição; o outro, o movimento dinâmico da evangelização. Ambos tiveram seus defeitos e qualidades, ambos caíram e se reergueram, ambos foram chamados por Cristo, ambos foram perseguidos implacavelmente, ambos permaneceram fiéis até o martírio supremo. Nenhum dos dois faleceu no conforto de um templo; ambos pereceram nas estradas empoeiradas do Império, testemunhando com suas vidas que o Cristo vivo não está restrito a fronteiras geográficas ou a sistemas humanos. Pedro, com sua impulsividade e negação, revela a vulnerabilidade humana que a graça transforma em fundamento; Paulo, com seu zelo inicial persecutório e posterior ardente missão, mostra a força de uma conversão radical que não se detém. Suas imperfeições não os desqualificaram, mas, redimidas pela fé, tornaram-se o solo fértil sobre o qual a Igreja se ergue como um milagre de persistência e amor.
Na primeira leitura, Pedro é libertado não por intervenção humana, mas por uma oração da comunidade que transpõe muros e barreiras de ferro. Na segunda, Paulo redige sua despedida final, não com ressentimento ou desespero, mas com profunda gratidão e paz: “Combati o bom combate, completei a corrida, guardei a fé.” Ambos foram sustentados pela comunidade de fé e pelo Espírito Santo que os impulsionava. Ambos vivenciaram a verdade libertadora de que a Igreja é infinitamente maior que seus próprios limites, suas fragilidades, suas instituições.
No Dia do Papa, rememoramos que a função de Pedro persiste, não como um poder que oprime ou domina, mas como um ministério de serviço que une e congrega o rebanho de Cristo. O Papa Francisco, que dedicou grande parte de seu pontificado a reiterar que a Igreja deve ser “uma Igreja em saída” (Evangelii Gaudium 20), acolhedora, samaritana e pobre entre os pobres, foi um exemplo disso. Em profunda sintonia com o Concílio Vaticano II — especialmente a constituição Lumen Gentium, que descreve a Igreja como “sacramento universal de salvação” e “Povo de Deus” (LG 1,9) —, Francisco insistentemente sublinhou que a Igreja precisa ser sinodal, ou seja, um corpo que caminha em uníssono, escuta e discerne comunitariamente, valorizando cada voz batizada. Sua liderança ressoou nos Sínodos recentes e em sua convocação por uma Igreja livre do clericalismo, centrada na misericórdia e na escuta recíproca de todos.
Hoje, essa missão continua nas mãos de Leão XIV, sucessor de Pedro e atual bispo de Roma, a quem cabe o delicado serviço de confirmar os irmãos na fé e de guiar a Igreja com espírito de escuta, diálogo e fidelidade ao Evangelho. Que ele seja sinal da unidade na diversidade, e da firmeza que nasce da fragilidade entregue a Deus.
O Documento de Aparecida (2007), um marco fundamental para a Igreja na América Latina, reforça essa dimensão de Povo de Deus em missão: “A Igreja é o povo de Deus, caminho no mundo” (DA 46). Ele aponta a premente necessidade de uma Igreja que seja capaz de ouvir o clamor dos empobrecidos e da criação, denunciando toda e qualquer forma de exclusão e injustiça social, construindo pontes de diálogo e esperança.
O Instrumentum Laboris do Sínodo para a Sinodalidade (2022) corrobora a visão de uma Igreja que “não é uma mera associação humana, mas a comunidade dos discípulos missionários, povo de Deus em caminho, que escuta a Palavra, celebra os sacramentos e caminha junto no serviço à missão” (§1). Este documento denuncia vigorosamente o clericalismo que paralisa a Igreja e clama por uma conversão pastoral que valorize a corresponsabilidade e a participação plena de todos os batizados, para que a Igreja seja um reflexo mais fiel do Reino.
A pergunta crucial de Jesus permanece viva e ecoa em nossos corações: “E vós, quem dizeis que eu sou?” Mas agora ela se amplia e nos interpela com mais força: “E que Igreja edificais com vossa vida, com vossas escolhas, com vossas ações diárias?” Que sejamos Igreja como uma comunidade de escuta atenta, como o povo que ora fervorosamente por Pedro em sua prisão, como o corpo que se renova constantemente pela memória viva do Crucificado e pela esperança inabalável da ressurreição. Que sejamos, a exemplo de Pedro e Paulo, pedras vivas — imperfeitas, inacabadas, mas firmemente alicerçadas no Cristo.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.