sexta-feira, 27 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 2,41-51 - Imaculado Coração de Maria


No coração do Evangelho de Lucas 2,41-51 pulsa o mistério de uma infância sagrada que, longe de ser mero retrato idealizado, confronta as estruturas humanas com a liberdade do Espírito. Jesus, aos doze anos, entre os mestres do Templo, já revela uma consciência messiânica em germe e uma identidade que transcende as convenções familiares e religiosas. Não se trata de desobediência, mas de uma fidelidade radical ao Pai que, desde cedo, provoca rupturas e, ao mesmo tempo, ilumina os vínculos humanos com uma nova densidade de amor e escuta.

Na tradição judaica, os doze anos de idade marcam um limiar importante. Ainda que o Bar Mitzvah — ritual que marca a maioridade religiosa — tenha se consolidado mais tarde no judaísmo rabínico, o número doze já evocava plenitude e transição. Doze são as tribos de Israel, doze os anos da filha de Jairo (cf. Lc 8,42), doze os apóstolos que formarão a nova comunidade do Reino. Jesus, com doze anos, já se move no espaço da responsabilidade religiosa. Não está “perdido” no Templo, mas situado — como diz o texto — “nos negócios do Pai” (Lc 2,49), uma expressão aberta, provocadora, quase enigmática. Ele se posiciona como alguém que tem clara consciência de que sua origem e missão transcendem o lar doméstico e o Templo institucional.

Essa cena acontece no contexto da Páscoa — festa da libertação — e se insere na memória de uma peregrinação que lembra o Êxodo. Maria e José sobem a Jerusalém com o povo, como milhares de famílias. Mas o Filho realiza sua própria travessia: Ele inicia, de forma silenciosa, seu próprio êxodo interior, sua Páscoa pessoal. Ele se ausenta por três dias — antecipando simbolicamente a perda e o reencontro da ressurreição. O túmulo vazio começa a ser anunciado no Templo cheio. O Cristo buscado pela mãe aflita já é aquele que será buscado, mais tarde, pelas mulheres junto ao sepulcro: ausente, mas vivo, oculto, mas presente.

E talvez essa ausência de Jesus seja, também, um tempo pedagógico. Deus se esconde para que possamos crescer. Como ensinam os místicos — João da Cruz, Teresa de Ávila, Etty Hillesum — o silêncio de Deus não é sua negação, mas uma outra forma de presença. Maria vive, nesse momento, uma noite escura da fé: busca o Filho, sem compreendê-lo, e nele aprende a amar sem possuir. É uma mística da ausência fecunda, onde Deus se deixa encontrar depois da perda. O coração mariano é contemplativo porque é fiel no escuro.

O contexto histórico-social desse relato é profundamente marcado por uma religiosidade patriarcal, onde a obediência filial era absoluta e onde as mulheres e crianças ocupavam espaços periféricos. No entanto, Lucas nos apresenta uma mãe que não apenas questiona — “Filho, por que agiste assim conosco?” — mas que também guarda e medita tudo em seu coração (cf. Lc 2,51). O Imaculado Coração de Maria, celebrado no dia seguinte ao Sagrado Coração de Jesus, não é um símbolo de sentimentalismo ou passividade, mas de contemplação ativa, de resistência silenciosa, de uma fé que busca compreender mesmo o incompreensível. Esse coração é o lugar teológico onde a Palavra encarnada é acolhida, ruminada, ressignificada — é o ventre que não apenas gerou Jesus na carne, mas continua gerando-o na fé.

E o coração que guarda é o mesmo que um dia cantou: “Derrubou do trono os poderosos, exaltou os humildes” (Lc 1,52). O Magnificat já prefigurava o modo com que Maria enfrenta o mistério: com firmeza interior, com fé crítica, com lucidez espiritual. Esse coração imaculado não se fecha na dor, mas se expande na esperança.

José também está presente. Seu silêncio é eloquente. Ele sofre calado, como tantos homens impedidos de chorar. O silêncio de José é também o silêncio de uma masculinidade ferida que precisa reaprender a amar, não como domínio, mas como presença que busca e espera. José, homem justo, ensina que a autoridade verdadeira não grita nem se impõe; apenas caminha junto, mesmo sem entender.

O Papa Paulo VI, na Marialis Cultus, recordava que Maria é “a Virgem que escuta, a Virgem que ora, a Virgem Mãe, a Virgem oferente e a Virgem educadora” (n. 57). E aqui, em Lucas 2, vemos essa maternidade educadora e crente em ação: Maria que busca, que pergunta, que sofre, que guarda.

No plano teológico, essa passagem revela uma tensão criadora entre o humano e o divino, entre o “já” e o “ainda não” do Reino. Jesus volta com seus pais e lhes é submisso — mas não mais como criança qualquer, e sim como o Filho que se submete por amor, enquanto continua crescendo “em sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). Há aqui uma pedagogia da encarnação: o Verbo se faz carne, mas não salta etapas; Ele entra na história, nas estruturas familiares e religiosas de seu tempo, sem se tornar prisioneiro delas. Por isso, este texto é proclamado tanto na liturgia do Imaculado Coração de Maria quanto na festa da Sagrada Família, pois revela um modo novo de viver os vínculos: não mais como posse, mas como missão partilhada.

A partir da exegese, observamos que Maria e José “não compreenderam” o que Jesus lhes disse (Lc 2,50). Esse não-compreender é chave hermenêutica da fé cristã: Deus se revela em rupturas, em ausências, em buscas. A fé autêntica não é a que tem todas as respostas, mas a que persevera mesmo na perplexidade. Nesse sentido, a pergunta de Maria pode ser lida não apenas como censura, mas como oração de quem ama e não entende:

“Filho, por que nos fizeste passar por essa dor? Não percebes que te buscamos entre lágrimas e silêncio, como quem procura o sentido em meio à ausência?”

É a pergunta das mães que não desistem, das famílias dilaceradas pela violência, da Igreja que busca seu Senhor nos becos e nas encruzilhadas da história. É também o clamor da humanidade que interroga Deus: onde estás quando tudo parece perdido?


Esse coração de Maria é também o coração das mães das periferias, das que choram filhos desaparecidos, assassinados, encarcerados por um sistema penal racista e classista que insiste em reduzir a maioridade penal enquanto ignora a maioridade ética dos governantes e do próprio Estado. Muitos desses filhos e filhas só têm Deus como Pai, pois os homens, muitas vezes, se ausentam, negam-se à responsabilidade da paternidade, deixando que as mães assumam sozinhas a dupla função de pai e mãe, sustentando famílias inteiras com coragem e amor indomável. Essa realidade histórica e social clama por uma Igreja que seja casa acolhedora, que reconheça e apoie essas mulheres guerreiras, que denuncie as estruturas de poder que perpetuam essa ausência masculina e que revele o verdadeiro rosto do Pai celeste, que jamais abandona seus filhos.

Jesus, se nascesse hoje, ainda seria uma criança palestina, nascida sob ocupação militar, cercada por muros e drones. Talvez estivesse entre os escombros de uma escola bombardeada em Rafah ou entre os corpos das crianças soterradas em Khan Younis. Talvez, em outro território ocupado — uma favela no Rio de Janeiro — fosse confundido com um suspeito, carregando livros ou balas de gude, mas alvejado por balas “achadas” pela polícia. Poderia ser um menino do tráfico, não por escolha, mas por falta de mundo. Poderia ser mais um corpo negro, caído no chão quente, enquanto o coração de sua mãe fosse atravessado — não por espada simbólica, mas por rajadas de metralhadora real.

Simeão profetizou: “uma espada transpassará tua alma” (Lc 2,35). Mas hoje essa espada tem nome de fuzil, de caveirão, de drone armado, de silêncio institucional. O corpo de Cristo continua sendo perfurado — não apenas em sacramentos mal celebrados, mas na carne dos inocentes abandonados à lógica da guerra, do lucro e do medo.

Na contramão de quem clama por punição para crianças pobres, esta cena evangélica nos confronta com um adolescente que ensina no Templo. E se ele tivesse nascido em nossos dias, em um bairro marginalizado, e fosse encontrado dialogando em uma escola ocupada, em uma biblioteca comunitária, em um centro cultural periférico? Seria reconhecido como mestre ou rotulado como ameaça? A extrema-direita, com sua ideologia punitivista e antievangélica, tenta apagar o sagrado dos corpos juvenis, sobretudo os corpos negros e pobres, reduzindo a infância a estatística de segurança pública. Mas Jesus, ainda menino, nos ensina que a infância é lugar teológico. Deus fala também através das crianças — e muitas vezes contra os sistemas adultos de poder, seja no Império Romano, seja nas teocracias clericais ou nos populismos autoritários de hoje.

A crítica ao clericalismo também se impõe. O Templo de Jerusalém era o centro do culto, mas havia se tornado espaço de controle e exclusão. Jesus, ao ensinar ali, antecipa sua futura ação profética: ele se colocará contra os mercadores da fé, denunciará os hipócritas, anunciará o Reino aos pequenos. A Igreja, hoje, deve reaprender com essa infância divina: não se trata de manter o poder sagrado nas mãos de poucos, mas de abrir espaço para o discernimento comunitário, para a escuta do novo, para a sabedoria dos jovens — especialmente daqueles que são silenciados por uma liturgia fria e por pastores que se aliam ao poder em vez de cuidar do rebanho.

A filosofia e a psicologia nos ajudam a entender que a identidade se constrói no confronto entre o pertencimento e a autonomia. Jesus não rejeita sua família, mas amplia seu horizonte. A pergunta de Maria — essa dor transformada em interrogação — recebe como resposta uma inversão simbólica: “Não sabíeis que eu devia estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49). Ele nomeia um outro Pai, não para anular José, mas para revelar que todo pai humano está chamado a abrir caminho para que o filho se reconheça filho do Eterno. Esse é o desafio contemporâneo da paternidade e da maternidade: não projetar nos filhos suas expectativas, mas ajudá-los a discernir a vocação única que o Espírito lhes confia.

Na atualidade, esse texto é um apelo profético à escuta da juventude. Quantas vezes os jovens, como Jesus, permanecem incompreendidos em suas buscas espirituais, em seus questionamentos éticos, em sua sede de sentido? Quantas vezes seu desejo de justiça é ridicularizado, sua espiritualidade é tratada como rebeldia? O Coração Imaculado de Maria, que guarda tudo no silêncio da fé, nos convida a uma pedagogia da escuta e da confiança. Maria não entende, mas não impõe sua lógica; ela guarda, ela medita, ela espera. Numa época em que tudo exige resposta imediata e controle absoluto, esse coração nos ensina o caminho da maturidade espiritual.

E tantos jovens hoje continuam — mesmo sem nomear — nas coisas do Pai. Quando cuidam da terra, criam arte no gueto, alfabetizam crianças nas comunidades, resistem às armas com poesia e afeto, eles também estão, como Jesus, entre os mestres. Precisamos reaprender a reconhecê-los e a escutá-los.

E não apenas os jovens cristãos. Há busca de Deus nas dobras de outras tradições, outras linguagens, outras resistências. A experiência da ausência divina não é exclusividade da Igreja: ela ressoa nos terreiros, nas mesquitas, nos povos originários. Maria representa a humanidade que busca, e sua pergunta é universal: “Onde está o Filho?”

Neste dia, pois, contemplamos não apenas a mãe dolorosa ou a mulher obediente, mas a discípula que acompanha o crescimento do Verbo no silêncio, na tensão, na esperança. Maria não tutela a fé de Jesus, mas caminha com Ele. E o acompanha até a cruz, onde novamente o perde, para novamente reencontrá-lo na manhã da ressurreição. Que também nós, diante das ausências e dos desencontros da vida, saibamos esperar, guardar, meditar. Porque o coração de Maria pulsa com o mesmo ritmo do coração de Deus: um amor que educa sem possuir, que confia sem dominar, que se alegra em ver o outro crescer, mesmo quando isso significa perdê-lo por um tempo.

A Igreja será mariana ou não será. Será escuta ou será ruído. Será espaço para que os jovens estejam “nas coisas do Pai” ou será apenas templo vazio com paredes cheias de normas. Que aprendamos com Maria a guardar, com José a confiar, com Jesus a crescer — até que toda ausência se converta em reencontro e todo silêncio se faça Palavra.


DNonato – Teólogo do Cotidiano

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