- Quem ama Jesus, guarda sua Palavra"
Neste trecho do Evangelho de João, Jesus nos apresenta a dinâmica profunda do amor trinitário e sua relação com o ser humano. “Quem acolheu os meus mandamentos e os observa, esse me ama” (Jo 14,21). Aqui, não se trata de mera obediência legalista, mas de uma comunhão viva e amorosa com Deus. Amar Jesus é permitir que sua Palavra configure nossa existência, e isso implica um modo novo de viver.
Esse dinamismo do amor nos abre ao mistério da Trindade, não como uma fórmula teológica abstrata, mas como uma realidade relacional que nos envolve e transforma. Teologicamente, o texto revela a missão conjunta da Trindade: o Pai envia o Filho e, junto com o Filho, envia o Espírito Santo, o Paráclito, “que ensinará tudo e vos recordará tudo o que vos tenho dito” (Jo 14,26). O Espírito é, portanto, a memória viva da Palavra, aquele que nos capacita a compreender os ensinamentos de Jesus à luz dos desafios do presente. Santo Irineu dizia: “Onde está o Espírito, ali está a Igreja”. Sem o Espírito, a fé se torna ideologia. Com o Espírito, a fé se encarna na história.
Essa encarnação da fé encontra eco na nossa própria constituição humana. Antropologicamente, somos seres de relação, carentes de sentido e de amor. Deus respeita essa estrutura e a eleva: Ele não apenas exige amor, mas oferece-se como amor. A observância dos mandamentos não nasce do medo, mas da experiência de um Deus que se revela e se entrega. A obediência cristã é, portanto, resposta amorosa ao amor primeiro de Deus (cf. 1Jo 4,19). Por isso, somos convidados a viver uma espiritualidade da alteridade, da escuta e da comunhão.
A vivência dessa espiritualidade se dá dentro da história. Historicamente, a comunidade joanina à qual este texto é dirigido vivia conflitos internos e perseguições externas. A promessa do Espírito aparece como consolo e força. Na história da Igreja, essa promessa se atualiza especialmente em tempos de crise e confusão. Como disse o Papa Francisco na Evangelii Gaudium (n. 30), “o Espírito Santo também enriquece toda a Igreja evangelizadora com diferentes carismas”, e não apenas com estruturas de poder.
Nesse ponto, é preciso ser claro: a fidelidade ao Espírito exige discernimento e coragem para denunciar o que o sufoca. O clericalismo, como denunciado por Francisco (Discurso à Cúria Romana, 2016), é “uma perversão eclesial que impede o crescimento da Igreja”. O Espírito sopra onde quer (Jo 3,8), e não está preso às cátedras, mas se manifesta nos pobres, nos leigos e leigas comprometidos, nos que amam a justiça e vivem a caridade.
Como lembra Dom Giovane Pereira de Melo, bispo de Araguaína e presidente da Comissão Episcopal para o Laicato da CNBB: “Estamos vivendo um novo tempo na Igreja, a experiência sinodal em curso convocada pelo Papa Francisco, por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão, nos pede para avançarmos na escuta às distintas vozes de Deus que fala pela realidade, dialogar para favorecer encontros, alargando o espaço da nossa tenda...” (cf. Is 54,2).
É nesse espírito que precisamos superar uma visão eclesial que centraliza o poder e desconfia dos carismas do povo. A escuta sinodal é profundamente espiritual, mas também política e histórica.
Essa escuta, vivida na fé, desafia diretamente a prática de uma direita religiosa que manipula a fé para justificar ódio, exclusão e autoritarismo. Este Evangelho nos chama à coerência: “quem me ama guarda a minha Palavra”. E a Palavra de Jesus não é uma ideologia conservadora, mas uma proposta radical de amor, perdão e inclusão.
Essa coerência é exigida inclusive na vida pública. Quando grupos se dizem cristãos e defendem a tortura, o racismo, a destruição ambiental e a indiferença diante da miséria, contradizem frontalmente o Cristo do Evangelho. O CELAM, em Aparecida (2007), afirmou com clareza: “Não é possível aceitar que a fé cristã seja vivida em separado da responsabilidade social e política do discípulo missionário” (DAp, n. 501).
Essa exigência de coerência também encontra eco em outras tradições de fé. No Alcorão, encontramos: “Aqueles que crêem e praticam o bem, o Misericordioso os agraciará com amor” (Surata 19,96).
Amar a Deus e guardar sua Palavra, portanto, implica agir com justiça e misericórdia. As grandes tradições espirituais se unem nesse chamado a uma vida íntegra, onde a fé se traduz em gestos concretos.
É também nesse horizonte que se destaca a espiritualidade dos povos indígenas do Brasil. Entre os guarani, o “Nhanderu” é o Grande Espírito que habita todas as coisas e guia a vida em harmonia com a natureza e a comunidade. A escuta do Espírito, para os povos originários, inclui a escuta da terra, dos mais velhos, das águas, dos animais. A fé não é separada da vida, e guardar a Palavra significa respeitar o ciclo da criação, viver com simplicidade, e cuidar do outro como parte de si mesmo. Essa sabedoria ancestral ressoa com força no chamado evangélico de Jesus à comunhão com o Pai e ao compromisso com os mandamentos do amor.
Como lembrou São João Paulo II na Redemptoris Missio (n. 39): “A missão é anúncio e testemunho, e não propaganda ou proselitismo político”.
Portanto, é incompatível com o Reino de Deus a manipulação da fé para fins de poder. A fidelidade a Jesus se mede por frutos: justiça, paz, solidariedade (cf. Gl 5,22).
Jesus nos convida a uma espiritualidade do amor que se concretiza em ações e decisões. O Espírito Santo nos é dado para ensinar, recordar e mover. É Ele que forma o cristão maduro, comprometido, livre de ideologias e pronto a viver a radicalidade do Evangelho.
Que não sejamos meros ouvintes da Palavra, mas seus praticantes (cf. Tg 1,22). Que não reduzamos a fé a bandeiras políticas ou costumes vazios, mas que, movidos pelo Espírito, sejamos construtores do Reino.
Nos resta uma indagação: estamos de fato deixando que o Espírito nos ensine e nos guie, ou continuamos resistindo à sua ação por medo, orgulho ou conveniências ideológicas?
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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