quarta-feira, 21 de maio de 2025

Um breve olhar sobre João 15,1-8

“Eu sou a videira verdadeira, e meu Pai é o agricultor.” (Jo 15,1)

O evangelho de João foi escrito para uma comunidade em crise, abalada por perseguições e ameaçada pela exclusão das sinagogas (cf. Jo 9,22). Diante da tentação do medo e da dispersão, o texto surge como consolo e desafio: permanecer em Jesus, a videira verdadeira, é o caminho para resistir e frutificar. Em contraste com Israel, frequentemente representado como uma videira infiel (cf. Is 5,1-7; Jr 2,21), Jesus se apresenta como o novo centro da aliança, substituindo o Templo por sua própria presença viva (cf. Jo 2,19-21).

Estamos no Tempo Pascal, em que a vida venceu a morte, e a seiva do Ressuscitado corre nos gestos de amor e justiça. Permanecer em Cristo é deixar-se vivificar pelo Espírito, que purifica, fortalece e fecunda a nossa existência.

Simbologia no texto

1 -  Videira: sinal de comunhão, fertilidade e promessa messiânica. Em Jesus, a vida flui e se sustenta.

2 -  Ramos: nós, seres interdependentes, que só florescemos quando enraizados no amor.

3 - Frutos: atitudes que expressam o Reino — justiça, solidariedade, misericórdia, dignidade.

4 - Poda: ação pedagógica e amorosa de  Deus que remove o que impede o bem de florescer.

O ser humano é um ser de vínculos. Nascemos e crescemos em relações. Um ramo desligado da videira não apenas enfraquece — ele morre. A cultura contemporânea, centrada no individualismo, cultiva a ilusão da autossuficiência. Mas isso tem um preço: vínculos frágeis, espiritualidade superficial, comunidades desintegradas.


Como aponta Zygmunt Bauman, vivemos em uma “modernidade líquida”, onde tudo é descartável — até os afetos e a fé. A religião, nesse contexto, corre o risco de virar mercadoria: algo que se consome, não algo que se vive.

É nesse cenário que se insere o crescimento do mercado dos bebês reborns — bonecos hiper-realistas que imitam recém-nascidos, cuidados por milhares de adultos, sobretudo mulheres, como se fossem filhos. Alimentados, vestidos, fotografados e chorados, esses bonecos representam mais do que um passatempo. Embora em certos contextos possam ter valor terapêutico, revelam, em muitos casos, um sintoma de nossa esterilidade relacional.

Somos ramos conectados a simulacros; substitutos de vida, afetos artificiais, vínculos ilusórios.

Como advertiu Paulo: “Têm aparência de piedade, mas negam-lhe o poder” (2Tm 3,5). A substituição do filho real por um boneco ecoa o drama de comunidades que preferem um Cristo idealizado,  moldado às suas ideologias,  em vez do Cristo verdadeiro, que desinstala e incomoda.

Essa crítica se torna ainda mais clara à luz da HQ O Mundo de Krypton, escrita por John Byrne em 1987 que relataa nova origem do Super-homem. Na história, a civilização kryptoniana alcança o auge da tecnologia, mas afunda em isolamento emocional e orgulho racionalista.

 O resultado

Um planeta inteiro colapsa, incapaz de sustentar a vida por falta de vínculos afetivos e comunitários. Sem comunhão, até civilizações morrem. A lógica do controle destrói o futuro. Só o cuidado gera resistência.

Nosso tempo, na realidade  repetimos e esse roteiro de ficção.  O sistema neoliberal, orientado pelo lucro e pela competição, transforma pessoas em mercadorias, relações em transações e a natureza em recurso explorável. Jesus confronta isso diretamente ao expulsar os vendedores do Templo (cf. Jo 2,13-17): o sagrado não pode ser reduzido a comércio.

Hoje, também vemos igrejas aliadas a um cristianismo de mercado, promotoras de teologias da prosperidade que canonizam o mérito e ignoram a graça.

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, é incisivo: “Esta economia mata” (EG 53). E na Laudato Si’, amplia a denúncia: “tudo está interligado” (LS 91). O Deus agricultor deseja uma vinha frutífera para todos — não um vinhedo de elite que gera lucro para poucos e fome para muitos.

É urgente denunciar o uso abusivo do nome de Deus por setores políticos que promovem um “cristianismo” moralista, elitista, racista e excludente. Vemos líderes armados com Bíblias e revólveres, exaltando torturadores, criminalizando pobres, demonizando minorias.

Esses não são frutos do Evangelho, mas do farisaísmo moderno.

Jesus alertou: “Nem todo o que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino, mas quem faz a vontade do Pai” (Mt 7,21).

O Cristo da cruz não compactua com o ódio, nem com o fundamentalismo que transforma fé em arma ideológica. Ele curava no sábado, comia com pecadores, libertava os excluídos. Seria hoje atacado por muitos dos que se dizem seus seguidores.

Outro ramo estéril que precisa ser podado é o do clericalismo. Quando o ministério ordenado se fecha em si mesmo, em estruturas de poder e privilégio, desconectado da dor e das lutas do povo, perde sua seiva. Como disse Francisco ao CELAM em 2013: “O clericalismo leva à funcionalização do laicato, tratando-o como ajudante e não como corresponsável na missão.”

É preciso reconverter a Igreja: menos palácios e mais tendas. Menos aparato e mais presença. Menos culto a si mesma e mais serviço aos pequenos.

Mas há esperança. O próprio Jesus nos garante: “Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto” (Jo 15,5). 

Permanecer não é estagnar. É enraizar-se no amor, na oração e na prática da justiça. Os frutos que glorificam o Pai não se medem em liturgias celebradas, mas em vidas restauradas e dignidades defendidas.

Como no Cântico dos Cânticos, onde a videira é símbolo de amor fecundo (cf. Ct 2,13), somos chamados a uma espiritualidade viva, ousada, comprometida com a transformação do mundo. A poda pode doer, mas é necessária. O galho que não frutifica perde sua razão de existir — não por castigo, mas por desconexão da fonte da vida.  “Poda-se a árvore para que ela cresça mais forte. Talvez Deus seja jardineiro.” (Rubem Alves)

Frutificar hoje é resistir. Resistir ao ódio, à indiferença, à fé domesticada.

Permanecer em Cristo é levantar-se com Ele. Que o Espírito nos anime à poda e à ousadia dos frutos. Que não nos contentemos em parecer discípulos — mas em sê-lo de fato.  “Nisto é glorificado meu Pai: que deis muito fruto, e vos torneis meus discípulos.” (Jo 15,8)

DNonato  - Graduado  em História, teólogo  do cotidiano 



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