sábado, 21 de junho de 2025

Um olhar sobre Lucas 9,18-24 - 12⁰ Domingo do Tempo Comum

📖 “E vós, quem dizeis que eu sou?” (Lc 9,20)

No 12º Domingo do Tempo Comum, Jesus nos confronta com uma pergunta que ecoa através dos séculos: “E vocês, quem dizem que eu sou?” (Lc 9,20). Essa não é uma questão neutra ou teórica, mas um chamado existencial e transformador. Interpela-nos a renunciar às imagens falsas e ideológicas de Jesus, abraçando a radicalidade do seguimento, a cruz e a transformação da vida.

As leituras deste domingo: 

  •  1ª Leitura: Zacarias 12,10-11; 13,1; 
  • Salmo de Resposta: Salmo 62(63); 
  • 2ª Leitura: Gálatas 3,26-29 
  • Evangelho: Lucas 9,18-24  

A liturgia de hoje compõe um mosaico revelador da identidade de Jesus e da vocação cristã. Em Zacarias, contemplamos o Servo transpassado, sinal de compaixão e luto por Aquele que foi ferido por amor. O Salmo 62(63) expressa o anseio profundo pela presença de Deus, evidenciando que o discipulado não é movido por obrigação, mas por um desejo íntimo e vital. Na carta aos Gálatas, Paulo proclama que, em Cristo, já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher — todos são um só. Essa afirmação é um sinal profético de que a identidade cristã rompe barreiras sociais, étnicas e culturais.

Por fim, em Lucas 9,18-24 — texto que já refletimos em 2022 — e que ocorre logo após a multiplicação dos pães(conforme a leitura da Solenidade do Corpo e Sangue do Senhor e reflexão que publicamos ), Jesus revela com clareza que ser seu discípulo exige cruz, renúncia e fidelidade. A fé cristã não se sustenta em triunfalismos, mas no seguimento de um Cristo que se entrega, que sofre e que convida seus seguidores a tomarem sua própria cruz, todos os dias.

No contexto histórico do primeiro século, o povo judeu, sob a opressão romana, esperava um Messias político, à imagem de Davi. Entretanto, os profetas , especialmente Isaías,  já apontavam para uma identidade messiânica paradoxal: ao mesmo tempo rei justo (Is 11,1-5) e Servo Sofredor (Is 53). Jesus acolhe a profissão de Pedro (“Tu és o Messias”), mas imediatamente subverte o imaginário triunfalista, apresentando-se como o Cristo que deve sofrer, ser rejeitado, morrer e ressuscitar (Lc 9,22).

Esse episódio decisivo, presente em Lucas (9,18-24) e Mateus (16,13-19), ganha em simbolismo no relato de Mateus. Ali, o diálogo se desenrola em Cesareia de Filipe, uma cidade pagã e símbolo da propaganda imperial. Nesse contexto tenso para a fé judaica e o messianismo de Jesus, Ele primeiro indaga: “Quem dizem os homens que eu sou?” e, em seguida, a pergunta mais direta: “E vocês, quem dizem que eu sou?” (Mt 16,13-15). A confissão de Pedro,  “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”  é, então, apresentada não como fruto da sabedoria humana, mas como revelação divina (Mt 16,16-17). Em resposta, Jesus declara: “Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja” (Mt 16,18), inaugurando a comunidade cristã chamada a resistir às forças do mal e do mundo.

No grego, “Pedro” (Petros) e “pedra” (petra) compartilham a mesma raiz. A rocha não é apenas a pessoa de Pedro, mas sobretudo a fé professada: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Os Padres da Igreja, como Santo Agostinho, veem nessa fé o alicerce verdadeiro; São João Crisóstomo destaca o papel de Pedro na unidade da Igreja. O Vaticano II reforça: “O fundamento da Igreja é Cristo, sobre quem a fé de Pedro se apoia” (LG 18). Assim, o “poder das chaves” (Mt 16,19) não é símbolo de dominação, mas de serviço humilde, reconciliação e fidelidade ao Cristo sofredor (Jo 21,18-19).

Essa compreensão da identidade de Jesus, confessada por Pedro e aprofundada pela experiência pascal da Igreja, será formalmente reafirmada no Concílio de Niceia, em 325 d.C. conforme o nosso texto sobre  dogmas segundo a tradição. Diante da heresia ariana, que negava a divindade plena de Jesus, os Padres Conciliares proclamaram com clareza que Cristo é "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", consubstancial ao Pai. Essa declaração tornou-se pilar da fé cristã, solidificando a compreensão da unidade entre sua natureza divina e humana. O Credo Niceno, fruto desse concílio, permanece até hoje como profissão de fé da Igreja,( acesse  o texto sobre  dogmas) celebrando o mistério do Cristo encarnado, que se fez carne sem deixar de ser Deus.

Hoje, como ontem, o discipulado cristão se vê ameaçado por caricaturas de Cristo e aqui citamos 4 delas somente: 

  1.  O "Cristo armado” da extrema-direita, que profana a cruz com a lógica da violência; 
  2. O “Cristo milagreiro” da teologia da prosperidade, que transforma a fé em mercadoria; 
  3. O “Cristo triunfalista” dos tradicionalismos, que esquece o lava-pés; 
  4.  O  “Cristo neutro”, domesticado para não incomodar os poderosos
Contra essas imagens, ecoa a pergunta do Senhor: “E vós, quem dizeis que eu sou?”

A ligação entre a profissão de fé e a cruz é explícita na repreensão de Jesus a Pedro (Mt 16,23), advertindo contra a tentação de transformar o seguimento num projeto político ou de triunfo terreno. A verdadeira Igreja funda-se na fidelidade à mensagem do amor que se entrega até a morte.

A tensão entre imagem de Deus e nossa humanidade ferida é também nossa. Somos feitos à imagem de Deus, mas vivemos divididos — desejamos a plenitude, mas resistimos a perder o egoísmo e o controle. Jesus chama a “negar-se a si mesmo, tomar a cruz todos os dias e segui-lo” (Lc 9,23). Não é convite ao auto aniquilamento, mas à renúncia do ego autocentrado para dar lugar ao “eu” novo, recriado pela graça, aberto à comunhão com Deus e com o próximo. Paulo expressa essa transformação: “Já não sou eu que vivo, mas Cristo vive em mim” (Gl 2,20).

Num mundo marcado pelo individualismo e pela idolatria do sucesso, a cruz permanece escândalo e loucura (1Cor 1,23). A sociedade do “eu empreendedor” quer eliminar sofrimento e renúncia, mas o Evangelho propõe justamente o contrário: a verdadeira liberdade nasce na entrega e no serviço. A fé cristã é força de resistência contra estruturas injustas, divisões sociais e falsas religiões do poder.

Essa linha de renúncia e fidelidade já está presente no Antigo Testamento: 

Abraão deixa tudo para seguir uma promessa invisível (Gn 12);  Moisés renuncia aos privilégios do Egito para libertar seu povo (Ex 2–3); Jeremias sofre perseguições por proclamar a verdade (Jr 20). 

Em Cristo, essa fidelidade atinge seu ápice na kenosis de Filipenses 2,5-11, Deus que se esvazia por amor à humanidade. Mas é especialmente no Cântico do Servo Sofredor, nos capítulos 42 a 53 de Isaías, que se delineia a figura profética que prefigura Jesus:  Não gritará, não clamará, nem fará ouvir sua voz nas praças. Não quebrará o caniço rachado, nem apagará a mecha que ainda fumega” (Is 42,2-3). “Desprezado e evitado pelos homens, homem das dores e familiarizado com o sofrimento [...] ele foi transpassado por causa de nossas transgressões, esmagado por causa de nossas iniquidades. O castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e por suas feridas fomos curados” (Is 53,3-5). “Foi maltratado, mas se humilhou e não abriu a boca; como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha muda diante dos tosquiadores, ele não abriu a boca” (Is 53,7). “O Senhor quis esmagá-lo com o sofrimento. Se oferecer sua vida em expiação, verá sua descendência, prolongará seus dias e a vontade do Senhor triunfará por meio dele” (Is 53,10).

Jesus assume em si essa missão — e o Evangelho segundo Lucas o mostra firme em sua decisão:.Estava chegando o tempo de ser levado ao céu, e Jesus tomou a firme decisão de ir a Jerusalém” (Lc 9,51), ecoando Isaías 50,7:.“O Senhor Deus me ajuda, por isso não me deixei abater. Por isso tornei o meu rosto duro como pedra, sabendo que não serei humilhado.”

Portanto, o seguimento de Cristo não se realiza por slogans triunfalistas, mas por fidelidade ao projeto do Reino, mesmo quando isso custa rejeição, cruz e martírio:. “Levamos sempre e por toda parte em nosso corpo o morrer de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nosso corpo” (2Cor 4,10); “Fixemos os olhos em Jesus, autor e consumador da fé. Ele, em vista da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, desprezando a vergonha, e está sentado à direita do trono de Deus” (Hb 12,2).

Enquanto muitos se ajoelham diante do ostensório, ignoram o irmão nu e faminto (Mt 25,40). São João Crisóstomo nos alerta: “Querem honrar o corpo de Cristo? Não o desprezem quando o virem nu". A liturgia, fonte e cume da vida da Igreja (Sacrosanctum Concilium 10), só tem força quando nos impele à caridade concreta (Evangelii Gaudium 95).

Nos conflitos contemporâneos — guerras na Ucrânia, no Oriente Médio, violência urbana no Brasil — o rosto de Cristo crucificado continua sangrando. São Romero da América lembra: “O Cristo que reina no céu não pode ser separado do Cristo que sofre na terra.” A neutralidade diante do sofrimento é conivência. O discipulado exige solidariedade ativa, denúncia profética e empenho com os crucificados da história.

O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, denuncia o clericalismo, a mundanidade espiritual e a aliança com poderes temporais que desviam a Igreja da missão evangelizadora (EG 83-95). A Igreja deve ser “casa do Pai”, aberta e acolhedora para os pobres e marginalizados. O Documento de Aparecida (2007) reafirma o seguimento radical a Jesus e o engajamento com os pobres: “A Igreja tem a missão de ser sinal e instrumento da comunhão com Deus e da unidade de todo o gênero humano” (DA 66). A encíclica Fratelli Tutti reafirma essa responsabilidade universal de solidariedade: “Cada um de nós é plenamente uma pessoa quando pertence a um povo, e ao mesmo tempo não há verdadeiro povo sem o cuidado dos últimos” (FT 182).

No Brasil, favelas, comunidades indígenas e quilombolas vivem a cruz da exclusão social, do racismo estrutural e da violência. Essa realidade clama por discípulos corajosos, que rejeitem religiosidade vazia e desconectada da vida. Como dizia Dom Helder Câmara: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista.” Laudato Si’, ao denunciar a destruição ambiental e o sofrimento das populações marginalizadas, ecoa esse mesmo apelo por justiça: “O clamor da terra e o clamor dos pobres são o mesmo clamor” (LS 49).
O Magistério insiste: a construção do Reino exige a opção preferencial pelos pobres (Evangelii Gaudium 198-199). Sem isso, a Igreja corre o risco de desfigurar-se e trair seu Senhor.

Que a pergunta de Jesus ressoe como um trovão amoroso em nosso coração: “E vocês, quem dizem que eu sou?” Confessemos com os lábios e com a vida que Ele é o Cristo — não o dos palácios ou dos púlpitos cúmplices, mas o dos caminhos empoeirados, das periferias feridas e da cruz redentora. Só assim a Igreja será fiel ao seu Senhor: quando deixar de buscar prestígio e poder, e voltar a lavar os pés dos pobres, a carregar a cruz dos excluídos e a anunciar, com coragem profética, o Reino de Deus.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.