quarta-feira, 2 de julho de 2025

Um breve olhar sobre João 20,24-29 - Dia de São Tomé


 Quando a dúvida toca o mistério: Tomé e o Deus ferido

Quem nunca duvidou? 

Quem nunca precisou de um sinal concreto para crer?

 A cena  de hoje é  recorte  do  2⁰ domingo  de Páscoa  quando a comunidade  esta reunida  e Tomé  não estava presente  conforme a nossa reflexão de João 20, 19-31 que  retrata  a presença  de Jesus  após  a ressurreição 

Como Tomé, somos todos peregrinos da fé, buscando o rosto ferido do Deus que se faz carne e que não se esconde na abstração. No oitavo dia depois da Páscoa, quando a comunidade ainda se refazia do espanto pascal, Jesus aparece novamente entre os discípulos (Jo 20,26). Esse “oitavo dia” é mais que uma data; é o símbolo da nova criação, do tempo em que Deus recomeça sua obra e inaugura a eternidade no meio da história (cf. 2Cor 5,17). É ali, neste novo tempo, que Tomé entra em cena.

Tomé, ou Dídimo, “gêmeo” em grego (Jo 11,16), não era apenas um apóstolo comum, mas um homem marcado pela busca intensa. Provavelmente pescador ou artesão, como muitos discípulos de Jesus na Galileia, tornou-se missionário da Síria, Pérsia e Índia, onde o testemunho de sua fé permanece vivo. Sua morte martirial na Índia, transpassado por lanças, sela uma vida que precisou tocar para crer. Ele é o patrono daqueles que lutam com a dúvida, daqueles que enxergam com o coração e daqueles que constroem pontes — arquitetos de fé e humanidade. 

No Evangelho de João, ver é importante, mas Tomé quer mais: ele deseja tocar, porque o toque é convite à intimidade, é a comunhão que revela o mistério de um Deus vulnerável. Jesus não se apresenta como um ser intocável, mas oferece suas feridas (Jo 20,27). É o Deus que permite ser tocado, que se deixa ferir para curar. O toque de Tomé é como o raio de sol que atravessa a nuvem densa da dúvida, iluminando as feridas que, paradoxalmente, são portas para a vida. 

Quando Tomé declara: “Se eu não vir... e não tocar... não acreditarei” (Jo 20,25), ele não está fechando a porta, mas abrindo um espaço sagrado para o encontro. Sua dúvida não é ausência de fé, mas seu grito mais profundo. Como clamava o salmista: “Até quando, Senhor, te esquecerás de mim?” (Sl 13,2), assim Tomé expressa a angústia da ausência e a esperança de um encontro que confirme a vida. Jesus, longe de rejeitá-lo, acolhe sua busca. Como o Bom Pastor que deixa as noventa e nove ovelhas para buscar a perdida (Lc 15,4), Ele aparece especialmente para Tomé e lhe oferece exatamente o que pede: o toque das feridas vivas. Essa experiência culmina na confissão que é o coração teológico do Evangelho de João: “Meu Senhor e meu Deus!” (Jo 20,28). Reconhecer Jesus não apesar, mas por causa das feridas, é a mais alta expressão da fé encarnada. Tomé nos ensina que a fé nasce na carne ferida do outro, no reconhecimento do Deus que sofre conosco, que não se esconde da dor do mundo.

Essa fé é sempre comunitária. Tomé não está sozinho em sua dúvida; ele é a voz da Igreja que sofre, da comunidade que espera e precisa de sinais. A fé acontece no encontro com o outro, na memória viva do Ressuscitado entre os irmãos. Como afirma a carta aos Hebreus, “a fé é a certeza daquilo que se espera, a convicção de realidades que não se veem” (Hb 11,1). Por isso, crer sem ver não é crer sem corpo, mas é crer na presença que habita a comunidade, que se revela nos gestos concretos de amor.  A fé também deve  dialogar  com o grito ético dos que hoje, como Tomé, questionam a ausência de Deus diante do sofrimento. O ateísmo existencial é muitas vezes um clamor por justiça e sentido. Tomé nos lembra que o Deus verdadeiro não é o Deus das fórmulas vazias, mas o Deus das feridas abertas, do amor encarnado, da cruz. Ele é o Deus que se deixa tocar, que se faz carne sofredora e redentora.

Ao tocar as chagas do Ressuscitado, Tomé antecipa o gesto litúrgico da Eucaristia — a entrega do corpo pelo amor (Lc 22,19). Crer é reconhecer Cristo nas feridas dos pobres, nos rostos marginalizados, nos clamores de justiça e paz. Essa fé não é fuga da realidade, mas compromisso profético e ético.

Você está pronto para tocar as feridas do mundo e, nelas, reconhecer o Senhor vivo? A fé de Tomé nos desafia a sermos corajosos e compassivos, a sermos presença nas dores que nos cercam. Que a comunidade de fé seja o espaço onde dúvidas se acolhem, onde o testemunho e o Espírito Santo guiam os passos para uma fé viva, encarnada e libertadora. Porque a verdadeira fé não nasce no isolamento da dúvida, mas na comunhão que se abre para o Mistério que é Amor.  Somos  Convidados a dizer, como ele, “Meu Senhor e meu Deus!”, somos chamados a um compromisso ético: tocar o Cristo nas chagas do mundo e viver a fé como serviço e entrega. Santo Agostinho lembra: “Se compreendes, não é Deus” (Sermo 117,3,5). O Mistério que nos salva ultrapassa toda compreensão lógica, mas se revela na carne ferida do amor. É aí, nas chagas do mundo, que começa a verdadeira fé — aquela que, como anuncia o Apocalipse, “todo olho o verá, até mesmo os que o transpassaram” (Ap 1,7).

Que o Deus da esperança os encha de toda alegria e paz, por sua confiança nele (Rm 15,13).

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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