terça-feira, 1 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 8,28-34

 

Somos  chamado  a olhar o texto de  Mateus 8,28-34, proclamado  na 4ª-feira  da 13ª semana do Tempo Comum. Quando Jesus pisa o chão estrangeiro dos gadarenos, não é apenas o território geográfico que se altera — é a própria ordem espiritual e social que começa a desmoronar. Vindo da travessia do mar agitado (Mt 8,23-27; Mc 4,35-41; Lc 8,22-25), onde já havia demonstrado autoridade sobre o caos das águas — imagem do abismo primitivo e das forças contrárias ao Criador (cf. Gn 1,2) — agora Ele se lança no território do outro, do impuro, do interdito. É uma travessia simbólica, que rompe fronteiras culturais e religiosas, anunciando que o Reino de Deus não tem cercas e que a salvação não respeita as geografias da exclusão.

Os discípulos, no mar, temem morrer diante das ondas; os gadarenos, em terra, temem viver diante da libertação. Ambos estão diante do poder de Jesus, mas um clama por salvação e o outro pede que Ele se retire. O medo é o mesmo: o medo de perder o controle.

Dois homens possuídos por demônios saem ao seu encontro, vindo dos túmulos, lugares de morte e de impureza segundo a Lei (cf. Nm 19,11-16). Marcos (5,1-20) e Lucas (8,26-39) falam de apenas um homem; Mateus os duplica, talvez para reforçar a dimensão comunitária da possessão — o mal que oprime não é só pessoal, é também estrutural, coletivo, socializado. Os homens endemoninhados não têm nome, não têm lar, não têm voz. Vivem entre os mortos, são violentos, não por essência, mas por abandono. Ferem-se com pedras, como narra Marcos, como se tentassem desesperadamente sentir algo que os devolvesse à vida. São a imagem da dor silenciada, dos corpos segregados, das mentes colapsadas. São os loucos expulsos dos centros, os indigentes que já não cabem nem nos manicômios, nem nas igrejas, nem nas estatísticas.

Psicologicamente, representam a fragmentação interior, o colapso da identidade, o grito abafado de quem perdeu o sentido da própria existência. Como afirmou Orígenes, “a possessão é, muitas vezes, sinal da alma que foi invadida por pensamentos estrangeiros à verdade”. Jesus não apenas se aproxima, mas se deixa interpelar. Nos relatos sinóticos, Ele pergunta o nome. Nomear é devolver identidade, é romper com o anonimato da exclusão. É a pedagogia do reconhecimento: antes de curar, é preciso escutar.

Sociologicamente, o texto denuncia a lógica da marginalização. A sociedade prefere que esses homens permaneçam nos túmulos, longe do olhar, longe do caminho. Quando o sistema não consegue curar, ele isola. Quando a religião não suporta o sofrimento, ela moraliza. A presença de Jesus, ao contrário, é subversiva: Ele cruza limites, toca o intocável, reabre caminhos interditos. A libertação que opera não é apenas espiritual; é social, política, existencial. Como afirmou Leonardo Boff, “a libertação é um processo que envolve a totalidade da pessoa, incluindo sua dimensão espiritual” (1980). Libertar é devolver lugar na cidade, na comunidade, na história.

Teologicamente, o episódio é uma epifania messiânica. Os demônios reconhecem Jesus como “Filho de Deus” (Mt 8,29), revelando mais lucidez que os líderes religiosos que o acusarão de blasfêmia. Eles perguntam: “Vieste aqui para nos atormentar antes do tempo?”. Essa pergunta carrega escatologia: há um tempo marcado para o juízo, e Jesus antecipa esse tempo nas periferias da história, onde os porcos pastam e os endemoninhados gritam. Sua presença é juízo e graça. Não há neutralidade possível diante d’Ele: ou os porcos se afogam, ou os gadarenos são libertos.

A manada de porcos — cerca de dois mil, segundo Marcos — é lançada no mar. Esses porcos não são apenas animais impuros segundo a Lei (cf. Lv 11,7), mas símbolos de sistemas impuros que lucram com a opressão. Representam os interesses econômicos e políticos que se alimentam da dor. Quando Jesus os expulsa, não está negando a criação, mas denunciando seu uso profano. A queda dos porcos no abismo não é desprezo pela natureza, mas juízo contra um sistema que violenta a vida para alimentar seu lucro, o agronegócio. Onde há mercado de corpos, até os animais se tornam reféns. A criação geme, como diz Paulo (Rm 8,22), aguardando a libertação dos filhos de Deus.

A perda dos porcos é um prejuízo econômico, e é por isso que os habitantes da cidade suplicam que Jesus vá embora. A libertação custa caro. Quando o evangelho toca o bolso, a religião dominante pede que o Cristo se retire. Como escreveu Bourdieu, “a religião pode ser um instrumento de dominação, mas também pode ser um recurso para a resistência e a transformação social” (1971). O povo gadareno preferiu o primeiro uso. Como muitos hoje, preferem igrejas cheias de porcos a comunidades vivas de libertos.

A crítica não é apenas ao poder secular, mas ao religioso também. A religião vazia, que se alia ao lucro e fecha os olhos ao sofrimento, é cúmplice dos demônios que aprisionam. A extrema-direita contemporânea, com sua teologia da violência, do ódio e da idolatria nacionalista, nada mais faz do que repetir a súplica dos gadarenos: “Vai-te embora, Jesus, porque tua presença desestabiliza nossos porcos”. São igrejas que canonizam armas, silenciam sobre o racismo, condenam os pobres à meritocracia e os corpos dissidentes ao inferno. São versões modernas da religião que crucificou o Cristo porque ele ousou tocar os leprosos e sentar-se com prostitutas.

Como afirmou o Concílio Vaticano II, “as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos os que sofrem, são também as alegrias e as esperanças dos discípulos de Cristo” (GS 1). A verdadeira Igreja é aquela que caminha com os possessos libertos, não com os donos dos porcos.

Esse gesto de libertação também cumpre o espírito do Sábado e do Jubileu (cf. Lv 25), que era tempo de soltar os cativos, perdoar dívidas, devolver a terra e restaurar a dignidade. Ali, entre túmulos e porcos, acontece o verdadeiro Jubileu: os pobres são libertos e os donos do lucro são confrontados.

A pedagogia de Jesus continua: após a libertação, há reintegração e missão. Em Marcos e Lucas, o homem liberto quer seguir Jesus, mas é enviado de volta à sua casa, para testemunhar o que lhe aconteceu (Mc 5,19; Lc 8,39). O lugar da dor torna-se o lugar da missão. A evangelização não nasce de discursos, mas de cicatrizes. O evangelho não se impõe; ele se conta. Evangelizar é dar testemunho da ferida curada. E esse testemunho não é decorativo, mas memorial vivo, como no Êxodo: “com mão forte o Senhor nos tirou do Egito” (Dt 6,21). Agora, é a vida daquele homem que se torna memorial da nova criação.

A exegese do texto revela símbolos fortes: os túmulos como lugar de exclusão e morte; os porcos como estruturas impuras; o mar como abismo do caos vencido pela presença divina. A libertação é radical, não faz concessões aos demônios, nem pactos com os porcos. Jesus não negocia a dignidade de ninguém. E é por isso que é expulso. A cidade não suporta uma religião que liberta. Prefere um Cristo domesticado, que abençoe seus comércios, seus pactos e suas fronteiras. Mas o Cristo do evangelho é aquele que atravessa mares, quebra correntes e devolve voz aos silenciados. 

Hoje, os gadarenos vestem farda, empunham fuzis, ocupam púlpitos e palácios. Suas cidades continuam expulsando o Cristo sempre que Ele se levanta para defender o Yanomami, o quilombola, a travesti, o preso, o faminto. Eles temem a libertação porque ela custa caro: exige desarmar o altar do lucro e derrubar os ídolos de pedra, ouro e sangue. A fé cristã não é moral de sacristia nem dogma de gabinete; é fogo que queima tronos e consome muros. É Páscoa que não se contenta com meias-verdades. E quando os porcos se afogam em nós — nossos medos, nossos pactos, nossos demônios, o que sobra? 

Sobra o olhar de Jesus, manso e firme, a nos perguntar: queres voltar à tua casa? Queres contar o que o Senhor fez por ti, ou preferes que eu me retire, para que teus porcos permaneçam em paz?

0remos,   como resposta a Jesus:

Senhor da travessia, 

que atravessas os mares do medo 

e nos encontras entre os túmulos,

 liberta-nos de tudo o que nos prende à morte.

Dá-nos nome, voz e missão.

E quando quisermos te expulsar 

para preservar nossos porcos, 

sopra sobre nós o Espírito da verdade, 

e ensina-nos de novo a viver. 

Amém.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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