sábado, 7 de junho de 2025

Um outro olhar no texto de João 20,19-23 — Domingo de Pentecostes

A liturgia deste Domingo de Pentecostes convida-nos a contemplar o sopro que renova a humanidade, a chama que inflama a fé e a força que rompe as portas do medo e da indiferença. As leituras — Atos dos Apóstolos 2,1-11; Salmo 103(104); 1 Coríntios 12,3b-7.12-13 ou Romanos 8,8-17; João 14,15-16.23b-26 ou João 20,19-23 — desdobram diante de nós o mistério do Espírito Santo em ação.

Já refletimos sobre o evangelho do domingo de Pentecostes  em junho de  2022 com texto,   Um olhar sobre João 20,19-23 e também já fizemos 3 vídeos falando do mesmo texto em 2022, 2023 e 2024, mas hoje vamos mergulhar mais fundo, ampliando a  nossa visão  sobre esse texto fundamental para  fé e missão de quem se diz cristão.

“Ao anoitecer do primeiro dia da semana, estando fechadas, por medo dos judeus, as portas do lugar onde os discípulos se encontravam, Jesus entrou e, pondo-se no meio deles, disse: ‘A paz esteja convosco!’” (Jo 20,19).

O “primeiro dia da semana” anuncia o tempo novo, o tempo da Ressurreição, quando a luz insiste em romper as trevas. O sol se põe no calendário humano, mas o Ressuscitado atravessa as portas fechadas — não apenas de madeira, mas também as barreiras do medo, da insegurança, da dor e da desesperança. As portas fechadas são o símbolo do coração ferido, da comunidade dispersa e traumatizada pelo drama da cruz. Jesus entra. Ele não exige, não acusa, não condena. Sua presença é uma presença de paz, de reconciliação e de esperança. Ele se põe no meio, no centro da comunidade. Seu primeiro dom é a paz — uma paz que cura, que reconstrói, que liberta (cf. Is 57,19). Esta paz não é ausência de conflito, mas a presença viva do Reino que vence o medo e a violência.

Como no início da criação, quando o Espírito pairava sobre as águas (Gn 1,2), assim agora o Ressuscitado sopra sobre o caos do coração dos discípulos e lhes concede o Espírito Santo:

“Recebei o Espírito Santo!” (Jo 20,22).

Este sopro é criação nova, um Pentecostes antecipado. Não se trata de um poder para dominar ou impor, mas da presença constante do Paráclito — o Espírito da verdade que habita nos corações, que ensina, consola e faz lembrar tudo o que Jesus disse (Jo 14,16-17.26). O Espírito Santo não vem fortalecer egos, nem impor hierarquias, mas formar um novo corpo: a Igreja. Esta Igreja não é uma casta fechada, um clube exclusivo ou um sistema rígido, mas o povo santo, convocado à comunhão e à missão. O Espírito destrói muros, derruba preconceitos, rompe fronteiras étnicas, sociais e religiosas: “Todos nós fomos batizados num único Espírito para formarmos um único corpo — judeus ou gregos, escravos ou livres — e todos bebemos de um único Espírito”  (cf. 1Cor 12,13). Ele é fermento de unidade na diversidade, força que chama e capacita todos para o serviço, cada um com seu dom, para o bem comum (1Cor 12,7).

A liturgia da Igreja, inspirada pelo Concílio Vaticano II, nos lembra que “todos os fiéis, segundo o ministério e carisma que receberam, cooperam na missão da Igreja” (Lumen Gentium 33). A Igreja é uma “comunidade de comunidades”, aberta e em saída, convocada a viver a comunhão e a missão no mundo. Como reafirma a CNBB no Documento 105 — Cristãos leigos e leigas na Igreja e na Sociedade —, o laicato é protagonista na missão evangelizadora, chamado a “ser fermento no meio da sociedade” e a testemunhar o Evangelho com vida e ação (cf. DAp 105, 102-103). Voltando a João 20, Jesus diz aos discípulos: A quem perdoardes os pecados, serão perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos” (Jo 20,23).

Este mandato não é monopólio clerical, mas missão comunitária da Igreja, o “sacerdócio real, povo santo, nação santa” (1Pd 2,9). Todos são chamados a exercer o ministério da reconciliação (cf. 2Cor 5,18), a anunciar o perdão e a vida nova que só o Espírito pode dar. É na comunidade que a cura acontece, que o Espírito renova e que o mundo encontra esperança. Pentecostes é um chamado urgente: sair do cenáculo, romper as correntes do medo, abrir as portas, enfrentar as injustiças, denunciar as idolatrias do mercado, do racismo e do clericalismo. É a política do Reino que se ergue não pelo poder dos homens, mas pela força do Espírito, que é amor, justiça e liberdade (cf. 2Cor 3,17).

O salmista proclama:  “Enviai o vosso Espírito, Senhor, e da terra toda a face renovai!” (Sl 103,30).

Renovar é transformar. É permitir que o Deus da vida quebre o ciclo da injustiça e reescreva a história. É a resposta do céu ao gemido da terra e do povo sofrido (cf. Rm 8,22). Todos os que são guiados pelo Espírito são filhos de Deus (Rm 8,14), chamados a viver não como escravos do medo, mas como herdeiros da promessa, participantes da glória e, ao mesmo tempo, comprometidos com a cruz e a missão (Rm 8,17). Diante de tantas portas fechadas — da indiferença, da apatia, do medo e da religião sem alma —, o Ressuscitado continua a entrar e a dizer: “A paz esteja convosco!”

E continua a soprar, a incendiar, a enviar. O Espírito Santo é o fermento que


transforma o pão e a força que move a Igreja em missão profética e libertadora. Como disse Santo Irineu de Lião: “Assim como o trigo seco não pode se tornar um pão vivo sem a água, tampouco nós poderíamos viver sem a água que vem do alto. E essa água é o Espírito Santo, dom do Pai e do Filho, que faz crescer em nós o Corpo de Cristo, unindo os dispersos e alimentando os famintos de justiça.”

Hoje, diante do altar, peçamos:

Vem, Espírito Santo!

Vem, incendiar nossos corações, para que nenhuma cruz seja sem sentido, nenhuma lágrima, em vão, e nenhum dom, sepultado.

Vem, Espírito de compaixão, de coragem e de justiça.

Renova a tua Igreja. Renova a nossa fé.

Renova o rosto da terra.

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DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado, sopro entre ruínas.

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