sexta-feira, 4 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 9,14-17.

 Vinho Novo, Odres Vivos. 

No sábado da 13ª Semana do Tempo Comum somos  chamados  a reflexão  de  Mateus 9,14-17 que  se inicia com uma pergunta  feita pelo discípulos  de João  Batista, já tratamos em outro momento  dos conflitos  iniciais  entre  os  discípulos  de Jesus  e de João, 

A pergunta feita pelos discípulos de João Batista — “Por que motivo nós e os fariseus jejuamos, e os teus discípulos não jejuam?” — vai além de uma simples dúvida ascética. Revela, na verdade, um conflito mais profundo: o embate entre estruturas religiosas antigas e o novo horizonte que Jesus inaugura. O jejum, prática comum entre os judeus do Segundo Templo, era sinal de penitência, súplica e preparação messiânica (cf. Joel 2,12; Zac 8,19). Contudo, neste contexto, aparece como símbolo de um tempo em transição, que exige discernimento espiritual e abertura profética. Jesus responde com três imagens simbólicas: o esposo, o remendo e o vinho novo — cada uma reveladora de sua identidade e da radical novidade do Reino.

Ao se autodefinir como “o esposo”, Jesus retoma uma imagem profundamente enraizada na teologia profética do Antigo Testamento. Deus é o esposo de Israel (cf. Os 2,16-22; Is 54,5-8; Jr 2,2), e a aliança entre YHWH e o povo é descrita como um matrimônio. Quando Jesus afirma que seus discípulos não jejuam porque “o esposo está com eles”, está anunciando que, n’Ele, Deus se faz presente de modo íntimo e jubiloso — não como doutrina abstrata, mas como presença viva e transformadora. É tempo de núpcias, e ninguém jejua em meio à festa do casamento. O jejum voltará, mas apenas quando o esposo lhes for tirado — alusão velada à sua paixão e morte (cf. Mt 26,31; Mc 2,20).


Nos Evangelhos Sinópticos, essa passagem encontra paralelos em Marcos 2,18-22 e Lucas 5,33-39, mantendo estrutura semelhante: o questionamento sobre o jejum, a resposta com a imagem do esposo e as parábolas do remendo e dos odres. Em todos os relatos, Jesus responde não com condenação, mas com profunda densidade simbólica. O foco não está em proibir o jejum ou exaltá-lo, mas em reinterpretar o tempo presente à luz de sua vinda: é o kairós — o tempo oportuno e fecundo (cf. 2Cor 6,2) — no qual as práticas religiosas precisam ser reformuladas à altura do acontecimento do Reino. A fidelidade a Deus já não pode ser medida apenas por práticas exteriores, mas pela adesão interior a uma nova lógica: a do Evangelho.

As imagens do remendo novo em roupa velha e do vinho novo em recipientes ressequidos reforçam a tensão entre a novidade trazida por Jesus e as estruturas religiosas endurecidas, incapazes de acolher o dinamismo do Espírito. O remendo novo rasga ainda mais o tecido antigo, e o vinho em fermentação rompe o odre ressequido. Ambas as imagens anunciam o risco de tentar conter o Reino dentro de formas obsoletas. A antropologia e a sociologia nos ajudam a perceber como culturas e instituições, quando cristalizadas em sistemas rígidos, tendem a rejeitar tudo aquilo que desafia suas certezas. A tentativa de adaptar o Evangelho a estruturas esgotadas só amplia o rasgão — a violência é inevitável quando a graça é comprimida por estruturas mortas.

Há, portanto, um apelo radical à renovação — não apenas uma conversão pessoal, mas uma reforma da Igreja, das relações e das estruturas que a sustentam. A Igreja, segundo o Concílio Vaticano II, é chamada a uma perene reforma (semper reformanda) (cf. Unitatis Redintegratio, n. 6), pois carrega “um tesouro em vasos de barro” (2Cor 4,7). A patrística recorda que o Espírito Santo sopra onde quer (Jo 3,8), e Santo Agostinho adverte: “Teme o Espírito que passa e não volta”. Os odres novos simbolizam a renovação do coração, a abertura do entendimento (cf. Rm 12,2), o abandono de modelos religiosos legalistas e moralistas que sufocam a liberdade dos filhos e filhas de Deus (cf. Gl 5,1).

Essa crítica de Jesus às estruturas fossilizadas da religião encontra ressonância na filosofia contemporânea, especialmente nas denúncias à razão instrumental feitas por Adorno e Horkheimer, e no alerta de Nietzsche contra uma fé desconectada da vida. O jejum sem alegria, a religião sem festa, a fé sem amor — tudo isso são cascas ressecadas. Um cristianismo que apenas repete ritos, normas e doutrinas, mas não se deixa transformar pelo vinho novo do Espírito, torna-se apenas mecanismo de controle — letra que mata, como Paulo já alertava (2Cor 3,6).

No contexto atual, essa palavra ressoa com força profética. Vivemos tempos em que muitos desejam restaurar “odres velhos”: a rigidez litúrgica como identidade, o moralismo como medida da fé, a religião como instrumento de poder e exclusão. Há setores eclesiais que, em nome da “verdade”, jejuam da alegria do Evangelho, como se a graça fosse escassa ou racionada por mérito. Embora o Papa Francisco — que faleceu em abril de 2025 — tenha sido duramente combatido por tais grupos, ele insistiu até o fim: “A alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus” (Evangelii Gaudium, n. 1). E esse é o vinho novo: uma Igreja que celebra a presença do Esposo é uma Igreja que dança, que canta, que cuida dos pobres e celebra a vida, mesmo em meio à dor.

Ao mesmo tempo, Jesus não despreza o jejum. Ele diz que chegará o tempo em que jejuarão — e isso remete à dimensão escatológica da esperança. O jejum cristão não é mera penitência, mas linguagem do desejo: expressão de uma sede que ainda não se saciou por completo. O Esposo está conosco, mas ainda esperamos sua plenitude. Por isso jejuamos. Por isso também celebramos. O cristão vive neste entre-tempo, onde jejum e festa convivem como ressonâncias do já e ainda não do Reino.

A simbologia do vinho tem profundo enraizamento nas Escrituras. Desde o Gênesis, onde Melquisedec oferece pão e vinho a Abraão (Gn 14,18), até o Apocalipse, onde o vinho da ira de Deus é imagem do juízo (Ap 14,10), essa bebida representa tanto alegria quanto aliança. O salmista canta: “o vinho que alegra o coração do homem” (Sl 104,15), e os Provérbios alertam para seu uso excessivo (Pv 23,29-35). Na tradição bíblica, o vinho simboliza bênção, comunhão e festa — mas também responsabilidade e vigilância.

Na narrativa das bodas de Caná (Jo 2,1-11), Jesus transforma água em vinho — não qualquer vinho, mas o melhor vinho, guardado para o final. A cena é carregada de simbolismo: ali, o Esposo verdadeiro manifesta sua glória, inaugurando o tempo novo da abundância messiânica. O vinho novo em Caná antecipa o vinho novo do Reino. E esse mesmo vinho se tornará, na última ceia, o sangue da nova e eterna aliança (cf. Mt 26,28).

O apóstolo Paulo, por sua vez, aconselha Timóteo a não beber apenas água, mas também “um pouco de vinho, por causa do estômago e das frequentes enfermidades” (1Tm 5,23). Esse conselho pastoral e realista de Paulo confronta visões moralistas e puritanas que demonizam toda bebida alcoólica. O problema não está na substância, mas no excesso, na alienação e na hipocrisia daqueles que julgam os outros sem discernir o espírito da liberdade cristã (cf. Rm 14,17).

Hoje a a liturgia nos convida a rever nossas estruturas religiosas, comunitárias e existenciais. 

  • Estamos tentando conter vinho novo em odres endurecidos? 
  • Temos remendado com doutrinas o que só o amor pode restaurar? 
  • Transformamos o cristianismo num peso ou nos tornamos testemunhas da leveza e da presença do Esposo em nosso meio?

A maturidade da fé se revela não na adesão exterior a costumes, mas na capacidade de discernir os tempos, de ser odre novo, de sustentar a fermentação do Espírito que renova todas as coisas. Que saibamos jejuar quando for necessário, mas também celebrar com a liberdade dos filhos e filhas que reconhecem: o Esposo está conosco — “Eis que estarei convosco todos os dias até o fim dos tempos” (Mt 28,20).

Para compreender melhor a profundidade desse gesto que Jesus reinterpreta, é preciso olhar como o jejum atravessa toda a Escritura. A palavra “jejum” e seus derivados aparecem mais de 70 vezes na Bíblia, com significados que vão muito além da privação alimentar. Moisés jejua quarenta dias no Sinai antes de receber as tábuas da Lei (Ex 34,28), Elias jejua enquanto caminha rumo ao encontro com Deus no Horeb (1Rs 19,8), Ester convoca um jejum coletivo em defesa do povo (Est 4,16), e o próprio Jesus inicia seu ministério com um jejum de quarenta dias (Mt 4,2). O livro de Isaías denuncia o jejum hipócrita (Is 58), ensinando que o jejum verdadeiro rompe correntes de injustiça. O Novo Testamento mostra que o jejum, quando praticado em comunidade, prepara o discernimento do Espírito (At 13,2-3). Assim, o jejum bíblico é sempre orientado para Deus e para o outro: gesto de humildade, de escuta, de solidariedade. Quando perde esse foco, torna-se apenas disciplina ou exibicionismo religioso.

No tempo de Jesus, o jejum dos fariseus — duas vezes por semana, às segundas e quintas — era sinal de devoção, mas também de distinção social e moral (cf. Lc 18,12). Jesus não invalida o jejum, mas o desloca de lugar: não é o rito em si que salva, mas a capacidade de discernir o tempo de Deus e responder com inteireza. Enquanto o Esposo está presente, a fome é transformada em festa. Quando Ele for tirado, o jejum voltará — mas como saudade ativa, desejo ardente, vigilância amorosa.

Já os odres, objetos típicos do cotidiano camponês e nômade da Judeia e da Galileia, eram feitos com peles inteiras de animais, geralmente cabras ou ovelhas. Depois de limpas e tratadas com sal e cinza, essas peles eram costuradas e impermeabilizadas para armazenar líquidos, especialmente o vinho. O vinho novo, em fermentação, produzia gases que exigiam flexibilidade do recipiente. Se o odre estivesse envelhecido e ressecado, rachava-se e o vinho se perdia. Daí o princípio: vinho novo só em odres novos. A metáfora é clara: o Evangelho exige estruturas e corações capazes de conter sua vitalidade. Um coração endurecido não suporta a expansão da graça; uma instituição presa ao legalismo não comporta o sopro do Espírito. Mais que metáfora, é um apelo escatológico: um novo mundo fermenta entre nós, e só odres renovados poderão contê-lo sem explodir.

Que nossos odres sejam renovados pela ternura e pela justiça. Que o vinho novo da alegria do Evangelho nos embriague de esperança. E que, em cada comunidade, o Esposo encontre festa, não jejum — porque onde Ele está, há liberdade, amor e ressurreição.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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